No arti­go a seguir, Meli­na Sil­va Pec­o­ra, Médi­ca for­ma­da pela Fac­ul­dade de Med­i­c­i­na de Riberirão Pre­to da Uni­ver­si­dade de São Paulo, espe­cial­ista em neona­tolo­gia e pedi­a­tria, Advo­ga­da, e Asses­so­ra da Câmara Munic­i­pal de São Paulo, anal­isa a noção de saúde em sua relação com as políti­cas públi­cas necessárias à sua uni­ver­sal­iza­ção.

 

Saúde: como garan­tir sua uni­ver­sal­i­dade.

Meli­na Sil­va Pec­o­ra

 

Estu­dar a gestão de saúde não é tare­fa fácil.

Impor­tante anal­is­ar a seguinte dico­to­mia: de um lado temos os inter­ess­es econômi­cos diante de uma ciên­cia extre­mante cara, e que, para­doxal­mente, não pode vis­ar o lucro. Assim é a saúde.

O dire­ito à saúde é garan­ti­do con­sti­tu­cional­mente, sendo cláusu­la pétrea, não poden­do ser suprim­i­do ou sequer restringi­do. Pre­screve o arti­go 196 da Car­ta Magna: “A saúde é dire­ito de todos e dev­er do Esta­do, garan­ti­do medi­ante políti­cas soci­ais e econômi­cas que visem à redução do risco de doença e de out­ros agravos e ao aces­so uni­ver­sal e igual­itário às ações e serviços para sua pro­moção, pro­teção e recu­per­ação.”

E o que vem a ser saúde?

A Orga­ni­za­ção Mundi­al de Saúde (OMS) define saúde como “um esta­do de com­ple­to bem-estar físi­co, men­tal e social e não somente ausên­cia de afecções e enfer­mi­dades”.  Em Encon­tro Inter­na­cional do Dire­ito à Saúde (Cober­tu­ra Uni­ver­sal e Inte­gral­i­dade Pos­sív­el), segun­do os autores, con­ceitu­ou-se saúde como sendo: “Dire­ito social, iner­ente à condição de cidada­nia, que deve ser asse­gu­ra­do sem dis­tinção de raça, de religião, ide­olo­gia políti­ca ou condição socioe­conômi­ca, a saúde é assim apre­sen­ta­da como um val­or cole­ti­vo, um bem de todos.” (1)

A Lei 8.142/90, que dis­põe sobre a par­tic­i­pação da comu­nidade na gestão do Sis­tema Úni­co de Saúde (SUS) e sobre as trans­fer­ên­cias inter­gov­er­na­men­tais de recur­sos finan­ceiros na área da saúde, tem seu fun­da­men­to neste mes­mo arti­go, o 196 da  Con­sti­tu­ição fed­er­al.

A Lei 8080 – Lei Orgâni­ca da Saúde de setem­bro de 1990 (leg­is­lação do SUS), que dis­põe sobre as condições para a pro­moção, pro­teção e recu­per­ação da saúde, a orga­ni­za­ção e o fun­ciona­men­to dos serviços cor­re­spon­dentes, pos­sui den­tre os seus princí­pios e dire­trizes os seguintes:

  • A uni­ver­sal­i­dade de aces­so aos serviços de saúde em todos os níveis de assistên­cia;
  • A inte­gral­i­dade de assistên­cia, enten­di­da como con­jun­to artic­u­la­do e con­tín­uo das ações e serviços pre­ven­tivos e cura­tivos, indi­vid­u­ais e cole­tivos, exigi­dos para cada caso em todos os níveis de com­plex­i­dade do sis­tema;
  • A preser­vação da autono­mia das pes­soas na defe­sa de sua inte­gri­dade físi­ca e moral;
  • A igual­dade da assistên­cia à saúde, sem pre­con­ceitos ou priv­ilé­gios de qual­quer espé­cie;
  • O dire­ito à infor­mação, às pes­soas assis­ti­das, sobre sua saúde;
  • A divul­gação de infor­mações quan­to ao poten­cial dos serviços de saúde e a sua uti­liza­ção pelo usuário;
  • A uti­liza­ção da epi­demi­olo­gia para o esta­b­elec­i­men­to de pri­or­i­dades, a alo­cação de recur­sos e a ori­en­tação pro­gramáti­ca;
  • A par­tic­i­pação da comu­nidade;
  • A descen­tral­iza­ção políti­co-admin­is­tra­ti­va, com direção úni­ca em cada esfera de gov­er­no:
  • A inte­gração em nív­el exec­u­ti­vo das ações de saúde, meio ambi­ente e sanea­men­to bási­co;
  • A con­ju­gação dos recur­sos finan­ceiros, tec­nológi­cos, mate­ri­ais e humanos da União, dos Esta­dos, do Dis­tri­to Fed­er­al e dos Municí­pios na prestação de serviços de assistên­cia à saúde da pop­u­lação;
  • A capaci­dade de res­olução dos serviços em todos os níveis de assistên­cia; e
  • A orga­ni­za­ção dos serviços públi­cos de modo a evi­tar dupli­ci­dade de meios para fins idên­ti­cos.
  • A orga­ni­za­ção de atendi­men­to públi­co especí­fi­co e espe­cial­iza­do para mul­heres e víti­mas de vio­lên­cia domés­ti­ca em ger­al, que garan­ta, entre out­ros, atendi­men­to, acom­pan­hamen­to psi­cológi­co e cirur­gias plás­ti­cas reparado­ras, com redação dada pela Lei 13.427 de 2017.

A descen­tral­iza­ção tem sua pre­sença fun­da­men­tal na hier­ar­quia, ou seja trata­men­to hier­ar­quiza­do, o que tam­bém está pau­ta­do no sis­tema de reg­u­lação de refer­ên­cia e con­tra refer­ên­cia.

Mel­hor explic­i­tan­do: o paciente deve ser aten­di­do con­forme o grau e com­plex­i­dade de sua doença, favore­cen­do sem­pre a pre­venção, ou seja atenção bási­ca e primária.

Este sis­tema é alta­mente con­cate­na­do para que fun­cione sem nen­hu­ma que­bra de estru­tu­ra ou fal­ha, o que pode ocor­rer quan­do a logís­ti­ca não é segui­da.

Caso esta logís­ti­ca não seja rig­orosa­mente segui­da os dis­pên­dios serão altos e pouco efe­tivos; o trata­men­to será inefi­caz a cus­tos despro­por­cionais. Para a saúde ser efe­ti­va deve ser hier­ar­quiza­da e descen­tral­iza­da. A atenção bási­ca e primária, deve, nec­es­sari­a­mente, ser efe­t­u­a­da a nív­el munic­i­pal. Isto porque é no municí­pio onde estão pre­sentes as neces­si­dades de inter­esse local, pois a este nív­el con­hecem-se car­ac­terís­ti­cas pecu­liares a fim de se abor­dar as patolo­gias em seu iní­cio e, mais do que isso em pre­veni-las, de modo que a atenção pre­ven­ti­va seja mais efi­caz, evi­tan­do a med­i­c­i­na cura­ti­va.

A Uni­ver­sal­iza­ção ref­ere-se no sen­ti­do de que o SUS é uni­ver­sal deven­do aten­der a todos, sem qual­quer dis­crim­i­nação. Todos tem dire­ito à saúde, inde­pen­den­te­mente de sua condição socioe­conômi­ca não sendo con­tribu­ti­va.

A descen­tral­iza­ção, com direção úni­ca em cada esfera de gov­er­no, com­preende: atendi­men­to inte­gral, com pri­or­i­dade para as ativi­dades pre­ven­ti­vas, sem pre­juí­zo dos serviços assis­ten­ci­ais.

Foi esta que­bra em um sis­tema alta­mente hier­ar­quiza­do que ger­ou o retorno de patolo­gias anti­gas, já inex­is­tentes em nos­so meio.

E como pre­venir este retorno? Através de decisões da Admin­is­tração Públi­ca, de onde e como se inve­stir os recur­sos des­ti­na­dos à saúde, que envolvem políti­cas públi­cas em saúde, levan­do em con­ta dados epi­demi­ológi­cos, demográ­fi­cos, sazon­ais entre out­ros…

E o que vem a ser políti­ca públi­ca? Políti­ca públi­ca nada mais é do que dire­cionar um inves­ti­men­to através de estu­do de metas e resul­ta­dos, mel­hor explic­i­tan­do, é uma decisão de onde se aplicar o din­heiro, fun­da­men­ta­da em um plane­ja­men­to de metas em deter­mi­na­da área.

Em meio às mudanças nas esferas do poder exec­u­ti­vo hou­ve uma alter­ação de pri­or­i­dades. Inde­pen­den­te­mente da posição políti­ca que se siga e deixan­do claro que não é este o escopo deste tex­to, é sabido que:

A atenção bási­ca, o primeiro degrau de hier­ar­quia em saúde ( não vou falar em saúde públi­ca, para que não haja vieses, mas saúde em sen­ti­do lato, amp­lo), deve ser pri­or­iza­da pois aí está a pre­venção de várias patolo­gias.

Quan­do se rompe esta cadeia os pre­juí­zos são enormes. Uma vez que gas­ta-se com trata­men­to, quan­do o mal pode­ria ser evi­ta­do a menores cus­tos.

A atenção primária em saúde é volta­da para respon­der de for­ma region­al­iza­da, con­tínua e sis­tem­ati­za­da. Aqui se encon­tra a maior parte das neces­si­dades de saúde de uma pop­u­lação, com ações tan­to pre­ven­ti­vas quan­to cura­ti­vas.

No Brasil, após a refor­ma san­itária as atenções bási­cas e primária se con­fluem em pre­venção e pro­moção à saúde.

His­tori­ca­mente, a ideia de atenção primária foi uti­liza­da como for­ma de orga­ni­za­ção dos sis­temas de saúde pela primeira vez no chama­do Relatório Daw­son em 1920: “Os serviços domi­cil­iares de um dado dis­tri­to devem estar basea­d­os num Cen­tro de Saúde Primária — uma insti­tu­ição equipa­da para serviços de med­i­c­i­na cura­ti­va e pre­ven­ti­va para ser con­duzi­da por clíni­cos gerais daque­le dis­tri­to, em con­jun­to com um serviço de enfer­magem efi­ciente e com o apoio de con­sul­tores e espe­cial­is­tas vis­i­tantes. Os Cen­tros de Saúde Primários vari­am em seu taman­ho e com­plex­i­dade de acor­do com as neces­si­dades locais, e com sua local­iza­ção na cidade ou no país. Mas, a maior parte deles são for­ma­dos por clíni­cos gerais dos seus dis­tri­tos, bem como os pacientes per­tencem aos serviços chefi­a­dos por médi­cos de sua própria região. (Min­istry of Health, 1920)”

Como já foi dito o relatório Daw­son tem sido con­sid­er­a­do um dos primeiros doc­u­men­tos que sin­te­ti­zou um modo especí­fi­co de pen­sar políti­cas públi­cas de saúde medi­ante a cri­ação de Sis­temas Nacionais. Pode-se con­sid­er­ar que as prin­ci­pais dire­trizes do Sis­tema Úni­co de Saúde, aprova­do na Con­sti­tu­ição de 1988 e reg­u­la­men­ta­do em 1990,  fil­iam-se a essa tradição. Alguns dess­es con­ceitos que pos­te­ri­or­mente serviri­am de base para o SUS – o fun­ciona­men­to em rede, a orga­ni­za­ção de serviços e equipes com base na region­al­iza­ção e na ter­ri­to­ri­al­iza­ção, a inte­gração san­itária da clíni­ca e da saúde públi­ca, e a hier­ar­quiza­ção dos serviços em graus difer­en­ci­a­dos de com­plex­i­dade tam­bém servi­ram de refer­ên­cia analíti­ca para os autores desse estu­do real­iza­do há 35 anos. (2)

Em tese apre­sen­ta­da para pro­fes­sor tit­u­lar, Araújo (1975) estu­do real­iza­do, demon­strou o con­sid­eráv­el ônus que a mor­tal­i­dade por doenças per­feita­mente evitáveis rep­re­sen­ta para um esta­do como a Bahia que se encon­tra­va empen­hado em notáv­el esforço para a super­ação do sub­de­sen­volvi­men­to. Os acha­dos demon­straram que medi­das urgentes são necessárias para incluir as ativi­dades de saúde públi­ca como parte inte­grante deste esforço. Acred­i­tou tam­bém poder esten­der esta afir­ma­ti­va a todo o país, mostran­do forte evi­den­cia de que os gas­tos no setor saúde, den­tro de uma escala racional de pri­or­i­dades, devem ser vis­tos pelos plane­jadores como inves­ti­men­to e não como despe­sa de consumo.(3)

1. https://www.almg.gov.br/export/sites/default/acompanhe/eventos/hotsites/2016/encontro_internacional_ saude/documentos/textos_referencia/00_palavra_dos_organizadores.pdf

2. (Health reform in São Paulo dur­ing the 70’s and the Uni­fied Health Sys­tem (SUS) Gastão Wag­n­er de Sousa Cam­pos Depar­ta­men­to de Med­i­c­i­na Pre­ven­ti­va e Social. Fac­ul­dade de Ciên­cias Médi­cas. Uni­ver­si­dade Estad­ual de Camp­inas. Camp­inas, SP, Brasil)

3. (The cost of dis­ease: eco­nom­i­cal con­se­quences in the city of Sal­vador, BA, Brazil) José Duarte de Araújo, Chefe do Depar­ta­men­to de Med­i­c­i­na Pre­ven­ti­va da Fac­ul­dade de Med­i­c­i­na da Uni­ver­si­dade Fed­er­al da Bahia.

https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5858:folha-informativa-atencao-primaria-de-saude&Itemid=843

http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/ateprisau.html