Em ensaio, o dramaturgo Mauricio Paroni refaz e reinventa as relações entre realidade e ficção, por meio da desconstrução da formação disciplinar, entre a ironia jurídica, o jornalismo falso e narração surrealista.
Nosso momento histórico nos encaminha para qual tipo de realidade, para qual estilo de ficção?
Vale a pena a leitura.
CENA CINERÁRIA — ARTIGO DE JORNALISMO FAJUTO
CINERARY SCENE — FAKE JOURNALISM REPORT
Mauricio Paroni de Castro[1]
RESUMO:
Artigo apresentado como falso jornalismo, mergulhado na narração surrealista de um escrivão que ironiza a formação jurídica de sua primeira juventude. A dupla narração traz o autor que narra o narrador; fatos criminosos jazem uns dentro de outros na mente de dois convivas alteradas por improváveis substancias estupefacientes. O paralelismo cria ambiguidade e uma precisão pseudojurídica cria vertigem na inútil busca do que se pretende verdadeiro.
PALAVRAS-CHAVE: Cinerária – Cinzas – Diretor – mictório — Velório – surrealismo — sadomasoquismo jurídico — Teatro
ABSTRACT:
Report presented as false journalism, steeped in surreal story of a writer who mocks the legal formation of his early youth. A dual narration brings the author recounts the narrator; criminal acts lie within each other in the minds of two fellows disturbed by unlikely drug substances. A parallelism creates ambiguity and a fake juridical precision creates vertigo in a futile search of what is intended true.
KEYWORDS:Cinerary – Ashes – Director – Funeral – Loo ‑Surrealism – Legal sadomasochism — Theatre
- Introdução
Num banheiro de bar da Zona Oeste da maior megalópole brasileira, um repórter descolado e um escrivão de uma delegacia de policia não muito descolada cheiram cocaína.
- Puríssima. Agora fala do inquérito.
- Puríssima. Vai com tudo, bacharel.
- Com tudo o que sabemos também?
- Classe A.
- Não sei os nomes direito.
- Anda. Vai logo.
O escrivão respira ofegante. A narração evoluí para uma vertiginosa prestação de contas:
- Dos Fatos
(…)
Num Antro de nome eslavo, a Espectadora N… aprendeu como esfaquear o coração por trás da vitima. Ali, era apreciadora contumaz de uma cena de um espetáculo apresentado em dois cubículos que perfaziam, no máximo, quinze metros quadrados; apinhados de gente; cerca de trinta pessoas no que chamavam de plateia; entre outras irregularidades, os espectadores eram consultados se queriam ficar em pé ou sentados ao chão; eliminava-se cadeiras e banquinhos para caber mais pessoas no lugar; talvez houvesse mesmo uma tragédia anunciada; excesso de gente; nenhum extintor; primeiro andar; madeira; nenhuma saída de emergência; verdadeiro cortiço;
O Diretor D… tinha muita dificuldade deambulatórias; havia usado uma parte do faturamento da bilheteria para comprar uma picareta; que abrisse a parede em caso de pânico;
Outra parte da renda serviu para pagar um cachê simbólico aos jovens atores; foram seus primeiros dinheiros; muitos atores usaram para comprar maconha; o que aborreceu muito o Diretor.
O espetáculo era apresentado de Segunda a Quinta-feira; Nos dias em que a Espectadora N… o assistia – de uma a duas vezes por semana – a platéia ficava estranhamente desolada; umas dez pessoas, no máximo; Ela assistia à cena da faca e saia; Isso aborrecia a todos;
O Barão Z… era mulherengo e culto; com leve sotaque estrangeiro, ninguém sabia de onde vinha; dizia ter morado na Toscana, onde nascera seu filho – que estudava no curso para diplomatas em Roma; Quando via o Diretor D… subir ou descer as escadas do decadente casarão secular que abrigava o Antro, perguntava-lhe com afetuosa preocupação se ele viria a melhorar, pois o achava elegante, de voz rouca e a bengala de ébano presenteada por uma amiga desenhista de aparências; esta exigia ser chamada assim na ficha técnica do espetáculo — jamais de “figurinista”.
Era tudo pobre, com honra; tinham um senhor programa de sala; uma imensidão de livros em línguas ininteligíveis jazia nas estantes anteriores aos cubículos; o Antro havia sido um sebo; coisa em moda na primeira década do século XXI.
Havia nobreza; Depois do fato, soube-se que o mulherengo era um barão húngaro, e tudo se encaixava: a sua elegância sem ostentação; o seu modo chique; a sua cultura; o seu charme; o afetuoso juízo orgulhoso em perceber o sexo casual; nobre; selvagem; realizado no mal cheiroso mictório masculino ao lado de onde replicava-se o espetáculo; os atores fagocitavam, do palco ao lado, barulhos e expressões chulas praticadas nos reservados por patricinhas perfumadas à forra sexual; no limite da escatologia, ao saberem não poderem desfrutar das seções lotadas.
(…)
- É nóis.
- É nóis.
(…)
Após o óbito do Barão, houve prisão em flagrante da Espectadora; jamais passionais mas por vingança, muitas ex paixões compareceram em juízo para tecer horríveis conjecturas relativas á intimidade do nobre; Poucos testemunharam em favor da acusação; Sem dinheiros pagar advogados, a ré levou um bom tempo para livrar-se do encarceramento.
(…)
O Diretor havia trabalhado com o Dramaturgo H.M.; herdeiro de uma tradição política alemã que acalmava agitadores de celular descolados; os que pensam-se libertadores do Continente A…; O Dramaturgo declarava que a arte não tinha importância quando um critico a via enquanto tal; mas quando a censura a vitimava; apesar de ser um dramaturgo importantíssimo para os dois lados da Guerra Fria, o seu lado o censurou a ponto de ele jamais ter podido estrear um texto seu na companhia nacional em que trabalhava; ganhava muito dinheiro nos teatros do lado oposto por ser muitíssimo encenado; Alguns o encenavam por suas reais qualidades poéticas, de aparências politicamente camufladas com o fim de obtenção de sucesso financeiro;
O ensinamento inspirava a criação cênica do Diretor; entretanto, não havia ganho financeiro; um destino de desgraça estava inscrito no Antro;
(…)
- Bate mais duas.
- Vou bater tudo.
(…)
Sofisticadas eram essas conversas entre o Barão e o Diretor; A Espectadora N… se aquietava, porque sua conversação amatória era bastante diferente daqueles altos assuntos; sentia-se — e era — excluída do assunto; também porque não se pretendia política, somente passional; sobretudo porque o casal consumia muita daquela droga imprescindível para descolados acharem-se geniais; tentava, desesperada, uma maior participação na própria existência; acreditava um dia chegar ao coração da inteligência do Barão;
Aquele membro-da-nobreza-húngara-foragido-do-outro-lado-da-Cortina-de-Ferro-estabelecido-em-Itália-de-onde-viria-a-São-Paulo infelizmente havia sido dotado de uma cultura europeia heteronormativa que a fazia cada vez mais passional e isolada do mundo do amante.
(…)
O escrivão monologante prossegue veloz no banheiro descolado.
(…)
Aquela pessoa-da-baixa-sociedade-pagadora-de-dividas-contraídas-pelo-apego-à-maldição-da-droga prestava contas não ao demônio, mas a um suposto censor desempregado pelo fim da ditadura militar; sedizente investigador de policia; respondia pela alcunha de Grego C…; este subornava honestas autoridades municipais para que o pecado sumisse abaixo da linha do equador; Assim o dizia o Barão; Havia pagamento com sexo de boa qualidade; “o melhor do mais barato”; tudo segundo o sócio do Barão, o cultíssimo Diretor K…, carioca que geria a administração do Antro; Havia uma briga feia entre artistas rivais pela posse do local tornado trend; corria ação judicial de burgueses progressistas contra o gestor culto; era quotidiana a entrada de droga no Antro; através de lícitas estradas nos cérebros cultos que o frequentavam; isso amansava pretensões fálicas; civilizava e tornava aceitáveis algumas modalidades de selvageria sexual chique praticas no banheiro; estas eram elementos inocentes de uma sobrevivência teatral doméstica.
(…)
3. Dos alegados indícios artístico-criminais
Quando levou o golpe por instrumento perfuro-contundente que levou o Barão a óbito, havia na tela do computador uma reprodução da pintura de El Tres de Mayo, de Francisco Goya; o endereço eletrônico da imagem era de uma loja de copias de pintores, especializada em Goya e El Greco.
Havia também um bilhete sobre a escrivaninha, com estes dizeres: ”Os soldados libertadores franceses combatiam para livrar esses camponeses da ordem feudal servil. Para isso, obrigaram-se a fuzilá-los, enquanto soldados do antigo regime espanhol… Aqui não há pecado, há o meu carma ibérico…”
El Tres de Mayo. Madrid. Prado.
Dos méritos e discordâncias ao espetáculo
(…)
Havia uma cena de sexo grupal com quatro falos de borracha, tornados criveis pela iluminação; pelo desenho de aparência das personagens; pelo trabalho das atrizes e dos atores; muitos invejavam a solidez daquela arte; drogados; ao final das replicas, dirigiam-se apressadamente ao banheiro fétido para desafogo de suas mentes decrepitas; satisfaziam os desejos das patricinhas excluídas da sala lotada; O Diretor D. odiava qualquer tipo de droga; aconselhava os mais desprovidos de recursos à prática de sexo chique no mictório; expressão poética empregada pelo Barão; a coisa rolava, contumaz, naquele banheiro para a sua nobre alegria.
(…)
Era comum alguns protestos depois de as cenas do espetáculo ficarem particularmente tristes; Tratava-se de uma comedia resolvida pelo drama; uma cena cinerária impressionou uma patricinha no dia do velório do Barão; Sua urna cinerária fora velada e embalada sob o choro da sua mãe, a Baronesa V…;
Na sala ao lado, em cena, a Atriz T… acendia uma vela, despia-se, untava o seu corpo sensualíssimo com óleo de amêndoas; terminava por masturbar-se em memoria desesperada pela ausência de sua namorada precocemente falecida; após o ato, usava as cinzas da amante morta; recolocava tudo numa urna cinerária decorada com fofuras de adolescente; prometia fazer isso todas as semanas em que estivesse nesta vida;
A patricinha saiu da sala confusa e excitada; Deparou-se com a cena real do velório. Perguntou ao Diretor K…, o administrador do Antro, o que era aquilo; o ocorrido foi a ela explicado; saiu do lugar urrando ofensas a todos;
(…)
- Coisa fina.
- Coisa fina.
(…)
- De demais fatos cinerários
Ao conduzir o carro com a urna das cinzas do Barão posta no banco do carona, o Diretor entendeu a precariedade da vida em relação à arte; banco no qual o Barão costumava sentar-se vivo para admirar em silencio o caos da cidade que amara; esse pensamento foi atravessado pela voz da Baronesa a instar a filha, em perfeito francês de sotaque occitânico, ao cumprimento da vontade do morto; cujas cinzas deveriam jazer no leito carroçável da Avenida Paulista. Essa filha, elegante condessa mercadora de arte, preferia ver as cinzas espalhadas num parque citadino; Venceu o Barão, em sua serenidade: suas cinzas foram esparsas pela avenida, lentamente, a seguir o trafego congestionado.
(…)
- Da ficção sadomasoquística justa
Algumas testemunhas sopraram ares de antipatia àquelas de acusação; o promotor ficou tão silencioso quanto a inexistente tumba da vitima. Quem mais haveria de lamentar o sangue derramado era a sua família do Barão; Mas viveu-se com os atores a catarse pela perda comum – proporcionada pelo velório ritual no Antro.
O Diretor S…, um cineasta presente, quis inserir o acontecimento – o velório – em seu filme a realizar; como o caso estava em juízo, o Diretor sugeriu criar outro espetáculo a ser encenado em outro antro mais arejado; O Diretor S.… convidou o Diretor e o Advogado F… para integrarem-se a seu filme em gestação; criaram boa parte daquele trabalho; Cenas sadomasoquistas foram inseridas no roteiro; sequencias de viés iconoclasta foram encomendadas e escritas, sob pseudônimo, pelo Editor E…, pelo Escritor L… e pelo Escritor R…; terminaram encenadas e filmadas num clube sadomasoquista.
(…)
- Isso é classe.
- Classe A.
- Classe A.
(…)
- De manifestações jornalísticas
A pergunta menos rasa que apareceu nos jornais sobre o filme do Diretor B…:
[…Um crítico de teatro consagrado dedica madrugadas a escrever suas criticas impessoais. Nutre relacionamentos afetivos com frieza épica para manter seu equilíbrio emocional. Deixa-se seduzir por uma garota sem uma perna, o que ele descobre depois de ter se apaixonado por ela. Cai numa neurose de ciúme pela relação ambígua dela com um pintor mais velho, de improvável iconoclastia formal. Poesia, música, teatro e pintura são elementos constitutivos dessa narrativa cinematográfica onde arte e vida se chocam ate’ o direito criminal. Onde termina uma coisa e começa a outra?]
(…)
- Da sociedade descolada
Uma socialite bate à porta do banheiro. Os dois silenciam. Continuam a cheirar. Saem empurrando-se entre si e a derrubam, concitados. No chão, a socialite resolve meditar com calma, com o nobre fim de não desejar a morte daqueles dois. Calmamente, passa a expor a si mesma as suas razōes.
- Egoístas. Comunas. Covardes.
Os dois convivas do mictório principiam a ofender a mulher.
- Cala a boca, perua ordinária.
- O que foi que o Jung disse dessa gente? acho que em alemão.… acho que li de uma entrevista do Jung…
- Então diz aí pra essa perua.
- “We walk in shoes too small for us…”
A socialite responde, indignada.
- Isso não é alemão, é inglês.
Os dois beócios afastam-se, aos gritos.
- Vai calar essa boca ou não?
- Perua não fala inglês.
- Nem alemão.
- O referido é verdade e dou fé.
A socialite murmura.
- Egoístas. Comunas. Covardes.
[1]Maurício Paroni de Castro é diretor de teatro, roteirista, dramaturgo, filmmaker, ator e pedagogo ítalo-brasileiro. É autor de peças em italiano, português e tradutor de autores como Luigi Pirandello e William Shakespeare. No cinema, roteirizou Crime Delicado (2005), Distopia (2016), Metaxu em 8 (2013) and Mundo Invisível (2012).
Mauricio Paroni de Castro is an Italian theatre director, writer, playwright, filmmaker, actor and educator; translator of authors like Luigi Pirandello and William Shakespeare. In the film arts, scripted Delicate Crime (2005) Distopia (2016), Metaxu 8 (2013) and Invisible World (2012).