Nas últimas duas semanas, reuniu-se, na Faculdade de Direito da USP, na Sala 3, do 2o. andar, o grupo de organizadores do Liberarte: primeiro festival de criminologia cultural. O Liberarte vai trazer ao Largo São Francisco não apenas especialistas nacionais e internacionais no estudo dos temas do crime e da violência, mas sobretudo oferecer um espaço de ocupação cultural das Arcadas, possibilitando a expressão de resistência e afirmação de movimentos culturais, ancorados por artistas de vanguarda e de reconhecimento.
O novo festival, a se realizar no primeiro semestre de 2020, tem como vínculo simbólico o Bote pra Fora, festival realizado na mesma FD.USP, no demorado entardecer da ditadura iniciada em 1964. Liberarte tem a mesma inspiração, realizando-se, porém, em momento de significado inverso. O Brasil vive, hoje, momento dramático, em que a cultura e seus agentes, além de movimentos sociais, imprensa, minorias são novamente estigmatizados por um regime antipolítico, que expressa palavras e se manifesta de modo autoritário, inclusive buscando valorizar figuras de ditadores e impor uma anticultura do silêncio e da submissão. A arte e a sociedade têm sido vítimas de atos de violência e de censura, às vezes velada, a outras expressa. O festival, pois, visa a mostrar que a sociedade está viva e atenta, disposta a prosseguir em seu processo de afirmação democrática, de expressão de sua riqueza e diversidade, bem como a resistir contra as tentativas de fazer renascer estruturas autoritárias estatais e paraestatais, de repressão e opressão.
Em 1981, o Brasil vivia o décimo-sétimo ano de instalação do regime ditatorial, mas já iniciava o processo de “abertura lenta, gradual e controlada”, imposto pelo governo militar como condição de transição para a democracia A lei de anistia, 6683, de agosto de 1979, fazia parte do simulacro de negociação, em que uma das partes, a sociedade brasileira, submetia-se às determinações do governo, de modo a permitir que se amenizasse a violência de Estado, e a política se pudesse reorganizar no sentido da recuperação do Estado de Direito. Voltar a eleger Presidente, Governadores, Prefeitos das Capitais e outras cidades importantes, a totalidade dos Senadores, a luta pelas eleições diretas, mas sobretudo pela recuperação da legitimidade, por meio da convocação de uma assembléia constituinte, eram pautas que já se desenhavam no horizonte de sonhos dos movimentos sociais, ainda reprimidos, e da sociedade civil, desfalcada de lideranças e de figuras simbólicas, mortas pelos detentores do poder, torturadas, desaparecidas, exiladas, caladas.
A Carta aos Brasileiros, de autoria do então Acadêmico Titular da Cadeira San Tiago Dantas, da Academia Paulista de Direito, Goffredo da Silva Telles Jr, em 1977, já clamara por “Estado de Direito Já!”
Na década de 80, era preciso não apenas lutar contra a censura a todas as manifestações culturais legítimas, mas sobretudo incentivar novas manifestações de um povo intimidado, pleno de energia criadora, mas temeroso de dizer e fazer, seja pela possibilidade ainda viva de repressão violenta (o “Atentado do Rio Centro“ocorreria em abril de 1981), seja por evitar que qualquer esforço de liberdade pudesse provocar a reação do regime e retrocesso.
Não apenas isso, a América Latina, varrida, no curso da Guerra Fria, especialmente a partir da década de 60, por golpes de Estado, que impuseram alianças autoritárias e governos violentos, ainda vivia sob ditaduras, em vários Países.
Figuras importantes do movimento libertário musical, por exemplo, ainda eram proibidas de se apresentar em muitos lugares. Joan Baez, a estrela folk norteamericana, revelada no documentário Woodstock, de Michael Wadleigh, de 1970 (veja, na Rolling Stone, a reportagem sobre o filme, aqui), sobre o icônico festival de 1969, fora proibida de cantar na Argentina e no Chile, durante a turnê em que somava, como sempre, seu talento artístico com a militância pelos direitos humanos.
Na mesma turnê, veio ao Brasil, para shows no aterro do Flamengo, no RJ, e no TUCA, em SP. Mas foi impedida de realizar os espetáculos, limitando-se a avisar o público da proibição da Polícia Federal e, após muita insistência de fãs, cantar algumas poucas músicas a capella, tanto no Rio quanto em São Paulo.
O que não é divulgado e poucos sabem, é que Baez, estando em São Paulo, naquele ano, onde chegou a se encontrar com o então líder sindical em ascensão Luiz Inácio Lula da Silva, para conversar e beber uma cerveja (veja, aqui, no New York Times, a reportagem sobre Phil Ochs, autor do documentário There but for Fortune, de 1982), fez um show, no pátio das Aracadas, na Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco.
A cantora foi a atração mais importante do festival Bote pra Fora, organizado pelos estudantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, em que também se apresentaram Arrigo Barnabé e a Banda Sabor de Veneno, tendo por backing vocal nada menos que a performance de Suzana Salles, Tetê Espíndola e Vânia Bastos, além de uma dezena de músicos importantes. Bote pra Fora porque uma chamada a estudantes para se expressarem e revelarem seu talento nas artes, libertando-se das amarras da censura e do ensino extremamente formal da época.
Na coordenação do evento o hoje advogado e professor Maurides Ribeiro e Quelita Moreno, então estudantes.
Maurides conta que recebeu carta branca da gestão do XI de Agosto de 1981, que reunia uma frente ampla de opositores ao regime de extrema-direita, para realizar o festival, fazer os convites. A Faculdade ficou tomada por eventos artísticos, espetáculos circenses, barraquinhas, além do grande palco e a lona protetora, no pátio. O contato com Baez foi proporcionado por Carlito Maia, que indicou o caminho para o encontro com o empresário da artista. A negociação com o Delegado da Polícia Federal, no Aeroporto de Viracopos foi importante, recorda-se, “para possibilitar que fosse apanhada ainda na pista do aeroporto, e levada a seu hotel, na avenida Duque de Caixas, no centro histórico paulistano.” Ali, entre pizzas e algumas canções de Baez, planejou-se a operação de escolta até a Faculdade. Baez se preparou no camarim improvisado, na biblioteca circulante da São Francisco, foi cumprimentada pelo então diretor, professor Antonio Chaves, e dirigiu-se ao palco, para seu primeiro show no Brasil, para onde retornaria apenas em 2014.
O grupo inicial de coordenação do Liberarte conta com a participação e apoio da Academia Paulista de Direito, além do Centro Acadêmico XI de Agosto, que, a exemplo de 1981, tomará a vanguarda da realização dessa nova ocupação do espaço da Velha Academia pela liberdade e pelo clamor de defesa do Estado Democrático de Direito e dos Direitos Humanos, na essência de suas manifestações culturais. A Faculdade de Direito da USP também participa e apoia o evento. Outras entidades vão-se juntar à iniciativa, como o IBCCRIM, o Instituto Manoel Pedro Pimentel, do Departamento de Direito Penal da FD. USP e a CDH/OAB-SP, assim como outras estão sendo convidadas e vão se juntar nesse processo democrático de construção de um projeto duradouro, que será documentado e gerará muitos frutos, dando margem a outras iniciativas.
Será, ainda, lançado edital para possibilitar a mais ampla e democrática participação de estudantes, artistas, entidades e movimentos.
Das reuniões iniciais participaram Maurides Ribeiro, que lidera a iniciativa, Alfredo Attié, Titular da Cadeira San Tiago Dantas e Presidente da Academia Paulista de Direito, Ítalo Cardoso, Bernardo Boris Jorge Vergaftig, Letícia Lé, Sérgio Salomão Shecaira, Otávio Pinto e Silva, e Danilo Cynrot. Foram recebidos pelo Secretário Municipal de Cultura, Alexandre Youssef, em 27 de janeiro.
O apoio da Secretaria de Cultura é esperado, mostrando-se muito importante para o evento. Alexandre Youssef é formado em direito pelo Mackenzie, além de mestre em filosofia política. Quando estudante, realizou, como Presidente do Diretório Acadêmico João Mendes Jr, o festival Terra, em que, por ocasião do lançamento do livro homônimo de Sebastião Salgado, logrou reunir o fotógrafo e Chico Buarque, no auditório Rui Barbosa daquela Universidade, em evento de debate e apoio ao movimento sem terra. Como Secretário, realiza, neste ano, de 17 a 31 de Janeiro, o Festival Verão Sem Censura, acolhendo manifestações culturais e artistas censurados e oprimidos, numa forma de defender a liberdade de expressão e a democracia, em um conjunto de mais de quarenta e cinco espetáculos.
Alfredo Attié fez acentuar o liame histórico que liga as manifestações culturais originais e revolucionárias do presente à história da construção da Secretaria de Cultura, que tomou esse nome em 1947, sucedendo o Departamento de Cultura. O Departamento nasceu do sonho e do emprenho de vários intelectuais e políticos ligados ao Movimento Modernista dos anos 20 e 30 do século passado, como Sérgio Milliet, Mário de Andrade e Paulo Duarte. Paulo Duarte foi o autor do primeiro projeto enviado, em 1935, para o Prefeito Fábio Prado, que, adotando‑o, acabou por criar o Departamento pelo Ato 861, nomeando como primeiro Diretor o escritor Mário de Andrade. Além disso, “o LIberarte também pode recuperar as iniciativas importantes democráticas, de resistência e afirmação, que se conectam com o sentido e o espírito que pretendemos estabelecer para o festival, como o Terra e o Verão sem Censura”, concluiu Attié.
Do encontro surgiu a ideia de se fazer um paralelo entre os artistas que se apresentaram em 1981, como Baez, Artigo, Cida Moreira, a Banda Sabor de Veneno, e os que despontam na cena contemporânea.
A comissão de organização ainda foi recebida pelo Professor Floriano de Azevedo Marques Neto, diretor atual da FD.USP e Acadêmico Titular da Academia Paulista de Direito, que deu todo apoio ao evento.
A Comissão de Cultura e Extensão da FD.USP, dirigida pelo Professor Marcos Perez, Professor Associado da FD.USP e Acadêmico Titular da Academia Paulista de Direito, participará da coordenação.
Na medida em que os trabalhos se forem desenvolvendo, novas notícias serão divulgadas. Acompanhem.