No arti­go a seguir, Celei­da Lapor­ta, espe­cial­ista em medi­ação de con­fli­tos faz inter­es­sante análise das poten­cial­i­dades de solução de onfli­tos por meio do sis­tema on-line, com o uso de platafor­mas dig­i­tais.

O tema é rel­e­vante para o momen­to de crise e para enten­der as con­se­quên­cias jurídi­cas que advirão da sus­pen­são das ativi­dades ou quar­ente­na, necessária para o enfrenta­men­to da pan­demia.

Leia o arti­go, a seguir.

 

A DESORDEM MUNDIAL DO COVID-19 E A REFLEXÃO PARA A GESTÃO DE CONFLITOS COM O USO DE PLATAFORMAS – ODR

Celei­da Maria Celen­tano Lapor­ta[1]

 

Em tese exis­tem sete cepas (tipos) de coro­n­avírus humanos, entre­tan­to, é de con­hec­i­men­to que os referi­dos tipos de coro­n­avírus evoluíram de ani­mais.

Por vol­ta de 1960, o primeiro tipo foi diag­nos­ti­ca­do como um res­fri­a­do comum, segui­do em 2002 com a sín­drome res­pi­ratória agu­da grave (doença SARS), em 2012 com a sín­drome res­pi­ratória do médio ori­ente (doença de MERS), cul­mi­nan­do em 2019 com o COVID-19.[2]

A OMS [3](Orga­ni­za­ção Mundi­al da Saúde) emi­tiu o primeiro aler­ta sobre a doença em 31 de dezem­bro de 2019, em vista que as autori­dades chi­ne­sas noti­ficaram inúmeros casos de pneu­mo­nia na cidade de Wuhan.

Sucede que, em 07 de janeiro de 2020 o vírus foi iso­la­do, e em segui­da nomea­do como COVID-19 e declar­a­da a pan­demia do novo coro­n­avírus em 11 de março pela Orga­ni­za­ção Mundi­al da Saúde.

No Brasil em 20 de março de 2020 o Decre­to Leg­isla­ti­vo nº 6 recon­heceu a ocor­rên­cia do esta­do de calami­dade públi­ca, com efeitos até 31 de dezem­bro de 2020.

Diante desse cenário, ressalta-se o dev­as­ta­dor grau de con­t­a­m­i­nação e o fato de até a data de 13 de abril de 2020, não exi­s­tir vaci­na ou trata­men­to com eficá­cia com­pro­va­do cien­tifi­ca­mente, impon­do a mil­hares de pes­soas ao redor do mun­do a pas­saram a viv­er em esta­do de quar­ente­na e iso­la­men­to social.

De maneira repenti­na,  os cidadãos pas­saram do esta­do de liber­dade,  com o dire­ito con­sti­tu­cional art. 5º inciso XV da Con­sti­tu­ição da Repúbli­ca Fed­er­a­ti­va do Brasil de 1988, de ir e vir, da liber­dade de loco­moção para um mod­e­lo com restrições e ori­en­tações de  con­vivên­cia em reclusão nos seus lares, com recomen­dações especí­fi­cas quan­to a lavar as mãos, uso de álcool gel, man­ter os ambi­entes desin­fe­ta­dos nas super­fí­cies e o uso de más­cara.

  1. MUDANÇAS NAS RELAÇOES HUMANAS

Os lares de for­ma inédi­ta na história se trans­for­maram ao mes­mo tem­po em esco­las, ambi­entes de tra­bal­ho, shop­pings, super­me­r­ca­dos, cin­e­mas e teatros. Os alunos foram trans­porta­dos da esco­la pres­en­cial para as aulas à dis­tân­cia, os profis­sion­ais do seu ambi­ente de tra­bal­ho para a sala de sua casa, as com­pras de itens de ali­men­tação ou de con­sumo pas­saram a ser adquiri­dos por e‑commerce. O laz­er do teatro, shows, cin­e­mas, aulas de ginás­ti­ca, foram poten­cial­mente pro­je­tadas do mod­e­lo pres­en­cial de con­sumo para serem con­sum­i­das por inter­net.

Uma nova ordem de con­vivên­cia social, de con­sumo, de tra­bal­ho, de mod­e­lo famil­iar, decor­rentes de uma rev­olução provo­ca­da pelo inimi­go invisív­el COVID-19, que despon­ta em todas as direções e sen­ti­dos e provo­ca uma sociedade doente físi­ca e men­tal­mente.

Friedrich Niet­zsche cer­ta vez disse que a bus­ca obses­si­va pela saúde pes­soal é o cam­in­ho cer­to para a decadên­cia do ser humano. Um ser per­feita­mente saudáv­el se tor­na vai­doso, indo­lente e o pen­sa­men­to, no mais das vezes, reflete sua obsessão com a manutenção do eu nar­císi­co. A doença não só é um tôni­co da vida, como nos força a sair da zona de con­for­to e pen­sar a par­tir dela. O cor­po doente como per­spec­ti­va sobre a saúde nor­mal. Só sen­ti­mos o cor­po, afi­nal, quan­do ele se impõe a nós. [4]

Pode-se enten­der que diante do pen­sa­men­to niet­zschi­ano uma epi­demia pode acen­der a reflexão sobre assun­tos adorme­ci­dos pela nor­mal­i­dade social.

Inevi­tavel­mente, essa reflexão virá.

Ven­ci­das as primeiras fas­es de negação e medo, o con­fli­to se insta­la diante dessa des­or­dem ger­a­da de den­tro para fora e de fora para den­tro. Isso quer diz­er que, o “even­to coro­n­avírus” provo­cou um descom­pas­so nas emoções com o rompi­men­to da zona de con­for­to com con­se­quên­cias em um con­tex­to práti­co e fáti­co dos con­fli­tos nas vidas das pes­soas, das empre­sas, da sociedade e da humanidade.

2.CONFLITOLOGIA PANDÊMICA

O con­fli­to, a con­tro­vér­sia ou a divergên­cia de inter­ess­es tem revesti­do os rela­ciona­men­tos da humanidade ao lon­go de toda nos­sa lin­ha evo­lu­ti­va.

A palavra con­fli­to vem do Latim con­flic­tus, con­fligere, que sig­nifi­ca: choque, embate das pes­soas que lutam, reen­con­tro, dis­cussão, alter­ação, des­or­dem, antag­o­nis­mo, oposição, con­jun­tu­ra, momen­to críti­co, pre­ten­são resis­ti­da, pendên­cia, con­tro­vér­sia, dis­pu­ta, lití­gio

Viv­er e sobre­viv­er em sociedade, tem sido o grande desafio para todos, isto é, coex­i­s­tir com o cam­in­har desen­f­rea­do da evolução da humanidade que de tem­pos em tem­pos propõe o caos, a ino­vação e a des­or­dem, com infini­tas e novas interli­gações rela­cionais con­fli­tu­osas, sejam elas ori­un­das de relações inter­pes­soais e/ou interem­pre­sari­ais.

Com efeito, a des­or­dem mundi­al provo­ca­da em decor­rên­cia do   coro­n­avírus, inevi­tavel­mente poten­cial­i­zou uma sociedade con­fli­tu­osa.

Como breve­mente explana­do aci­ma, mudanças provo­cadas pelo Covid-19, trans­for­maram o modo de viv­er e sobre­viv­er, frente a quar­ente­na, o iso­la­men­to social e o desliga­men­to da engrenagem do plan­e­ta.

A con­fli­tolo­gia pandêmi­ca pode ter na sua gênese, diante das con­tro­vér­sias sobre  as regras de con­vivên­cia famil­iar, os desacor­dos em relação aos con­tratos de tra­bal­ho em mod­e­lo home office, brigas de con­vivên­cia em con­domínios,  a sus­pen­são de paga­men­tos por fal­ta de liq­uidez, can­ce­la­men­to de pas­sagem aéreas, con­tratos bancários, recla­mação de serviços de inter­net e saúde, devolução de mer­cado­ria, que­bra de empre­sas entre tan­tos out­ros.

Enfim, são inúmeros inter­ess­es con­tra­pos­tos ou vio­lações de dire­itos poten­cial­iza­dos por um esta­do de calami­dade públi­ca, que são fatos ger­adores de con­fli­tos que inevi­tavel­mente serão con­ver­tidos em lití­gios frente a suas respec­ti­vas Judi­cial­iza­ções.

A par dis­to, a gestão pre­ven­ti­va destes con­fli­tos é para pro­mover o diál­o­go e a comu­ni­cação entre as partes, con­duzin­do-os a auto­com­posição seja pelos méto­dos de nego­ci­ação, medi­ação, con­cil­i­ação ou arbi­tragem.

 

3.A APLICABILIDADE DA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ONLINE

Vale ressaltar, que o con­fli­to tem na sua essên­cia a matéria pri­ma para a nego­ci­ação, medi­ação ou arbi­tragem, seja ela pres­en­cial ou online.

No que diz respeito a res­olução de con­fli­to online, a sua aplic­a­bil­i­dade decorre de uma série de even­tos da evolução do con­fli­to da sociedade con­tem­porânea, da sua judi­cial­iza­ção e da tec­nolo­gia.

Em breve explanação, com o adven­to da Inter­net em 1992, o mer­ca­do de transações com­er­ci­ais se deparou com que­bras de par­a­dig­mas. Novos mod­e­los foram ger­a­dos para um ambi­ente vir­tu­al, de for­ma que ini­cial­mente as relações de com­pra e ven­da que eram pres­en­ci­ais pas­saram a se propa­gar na WEB, sobrevin­das pelos demais tipos de relações que exis­ti­am no âmbito pres­en­cial e se trans­portaram para o ciberes­paço.

Nesse sen­ti­do expli­ca KATSH e RIFKIN:

Con­se­quente­mente, uma série de novos mod­e­los de con­fli­tos foram ger­a­dos, entre usuários que, por terem como base para sua inter­ação o ciberes­paço, restam impos­si­bil­i­ta­dos ou encon­tram difi­cul­dades em par­tic­i­par em qual­quer proces­so de solução de con­fli­to face to face. Assim, tornou-se fun­da­men­tal a con­cepção de um for­ma­to de solução de con­fli­tos que atu­asse no mes­mo ambi­ente onde os con­fli­tos foram orig­i­na­dos (KATSH; RIFKIN, 2001; RULE, 2002).

Por­tan­to, os mod­e­los de platafor­mas para solução de con­fli­tos no ambi­ente online têm evoluí­do em para­le­lo aos novos recur­sos tec­nológi­cos e os trata­men­tos das relações de uma sociedade em trans­for­mação dig­i­tal.

Ade­mais, no que se ref­ere a segu­rança jurídi­ca no ciberes­paço da medição à dis­tân­cia, no Brasil a Lei de medi­ação 13.140/2015 out­or­ga a medi­ação online no seu arti­go 46:

Art. 46. A medi­ação poderá ser fei­ta pela inter­net ou por out­ro meio de comu­ni­cação que per­mi­ta a transação à dis­tân­cia, des­de que as partes este­jam de acor­do.

Pará­grafo úni­co. É fac­ul­ta­do à parte domi­cil­i­a­da no exte­ri­or sub­me­ter-se à medi­ação segun­do as regras esta­b­ele­ci­das nes­ta Lei.

Nesse lin­ha, acres­cen­ta-se a eficá­cia  da ODR — Online Dis­pute Res­o­lu­tion, referi­da ter­mi­nolo­gia para os mod­e­los de nego­ci­ação, medi­ação e arbi­tragem online, que abrange os princí­pios ori­un­dos da leg­is­lação da Lei de Medi­ação 13140/2015 dis­pos­tos no seu artº 2 , tais como: impar­cial­i­dade , isono­mia entre as partes, oral­i­dade, infor­mal­i­dade, autono­mia de von­tade das partes, bus­ca do con­sen­so, con­fi­den­cial­i­dade e boa-fé para mod­e­los pres­en­ci­ais de medi­ação, adi­cio­nan­do-se  os  princí­pios da transparên­cia, celeri­dade, equidade, inter­de­pendên­cia,  e da aces­si­bil­i­dade para os mod­e­los de medi­ação à dis­tân­cia.

As platafor­mas de nego­ci­ação e medi­ação online, em regra con­tem­plam pro­ced­i­men­tos que recebem ini­cial­mente o reg­istro com a descrição do prob­le­ma.  A par­tir daí, é comu­ni­ca­do a out­ra parte sobre a intenção de nego­ci­ação, de for­ma que as partes podem decidir por uma nego­ci­ação dire­ta, nego­ci­ação assis­ti­da com o auxílio de um ter­ceiro nego­ci­ador ou a medi­ação com um ter­ceiro medi­ador.

De modo a acres­cen­tar, a aplic­a­bil­i­dade da res­olução de con­fli­tos online, com o uso de platafor­mas e de pro­ced­i­men­tos será o prin­ci­pal mecan­is­mo para a gestão dos lití­gios cau­sa­dos em decor­rên­cia dos recentes acon­tec­i­men­tos super­ve­nientes, e colap­sa­dos pelo COVID-19.

4.CONCLUSÃO: O MUNDO QUE IRÁ EMERGIR PÓS CORONAVIRUS

O mun­do que irá emer­gir pós coroan­vírus está des­ig­na­do a gerir incon­táveis con­fli­tos decor­rentes de relações pes­soais, famil­iares e empresárias, ori­un­das desse momen­to con­tur­ba­do de pan­demia,

Con­sidere-se tam­bém o ingres­so sig­ni­fica­ti­vo de migrantes dig­i­tais que pas­saram a usar tec­nolo­gia para estu­dar, tra­bal­har, com­prar e vender, com impactos con­sid­eráveis para a aderên­cia do uso da medi­ação online.

Inde­pen­den­te­mente da platafor­ma que ven­ha a ser ado­ta­da, o ou pro­ced­i­men­tos com o uso de tec­nolo­gia da infor­mação e comu­ni­cação (TIC), a sociedade estará diante de um mun­do com uma nova ordem de con­vivên­cia social, resul­tan­do com a uti­liza­ção da tec­nolo­gia, seja para lab­o­rar apren­der, nego­ciar ou resolver as con­tro­vér­sias.

A aces­si­bil­i­dade provo­ca­da pela medi­ação online, cada vez mais romperá as dis­tân­cias, e provo­cará a inclusão que pos­si­bili­ta a todos resolverem seus prob­le­mas com celeri­dade, econo­mia, sus­tentabil­i­dade, autono­mia e respon­s­abil­i­dade.

Em ressal­vas a medi­ação online, cumpre esclare­cer a respon­s­abil­i­dade do medi­ador. O cyber­me­di­ador acu­mu­la funções de habil­i­dades e com­petên­cias, des­de as téc­ni­cas da medi­ação, da con­strução do pro­ced­i­men­to flexív­el, do domínio das fer­ra­men­tas de tec­nolo­gia da infor­mação e comu­ni­cação até a inter­nal­iza­ção e a sua ded­i­cação desse novo méto­do de auto­com­posição.

É esper­a­do tam­bém, que o momen­to pós coro­n­avírus seja revesti­do com um novo olhar para o trata­men­to do con­fli­to, com mui­ta reflexão, boa-fé, diál­o­go e sol­i­dariedade para um con­tex­to de paci­fi­cação social e apren­diza­do da sociedade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELISAVETSKY, Alber­to I e ALMIRÓN, Daniela P. La Mediación a La Luz de Las Nuevas Tec­nologías: Buenos Aires: Erreius,2019.

GUILHERME, Luiz Fer­nan­do do Vale de Almei­da. Man­u­al de Arbi­tragem e Medi­ação Con­cil­i­ação e Nego­ci­ação. 4 ed. São Paulo: Ed. Sarai­va, 2018.

KATSH, Ethan e RIFIKIN, Janet. Online Dis­pute Res­o­lu­tion: resolv­ing con­flicts in cyber­space. San Fran­cis­co: Jossey-Bass, 2001.

LAPORTA, Celei­da M. Celen­tano. ODR- Res­olução de Con­fli­tos Online. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

 

[1] Co — Founder da CS VIEWS câmara de Medi­ação e Arbi­tragem e do Insti­tu­to CS VIEWS. Bachare­la­do e Licen­ciatu­ra Matemáti­ca PUC/SP, Anal­ista de Sis­temas, Advo­ga­da com pós grad­u­ação Trib­utária PUC/SP, Mestre em Dire­ito pela Esco­la Paulista de Dire­ito EPD, Coach Empre­sar­i­al com for­mação e Cer­ti­fi­cação Inter­na­cional, Pro­fes­sion­al & Self Coach­ing pelo Insti­tu­to Brasileiro de Coach­ing IBC, Medi­ado­ra Judi­cial do CEJUSC – Cen­tro Judi­ciários de Solução de Con­fli­tos e Cidada­nia San­tana de Parnaíba/São Paulo, Medi­ado­ra Judi­cial CECON –TRF3 Barueri/ São Paulo, Árbi­tra, Medi­ado­ra judi­cial e extra­ju­di­cial cre­den­ci­a­da no CNJ – Con­sel­ho Nacional de Justiça. Medi­ado­ra Cer­ti­fi­ca­da Icml Insti­tu­to de Cer­ti­fi­cação de Medi­adores Lusó­fonos na Uni­ver­si­dade Por­to, Por­tu­gal. Cur­so The­o­ry and Tools of Har­vard Nego­ti­a­tion Project – EUA., Espe­cial­iza­ção Medi­ação Uni­ver­si­dad Sala­man­ca – Espan­ha, Espe­cial­iza­ção Medi­ação e Arbi­tragem Uni­ver­si­dade Por­tu­calense – Por­tu­gal. Co Auto­ra: Fenô­meno da Desjudicialização:Uma Nova Era de Aces­so à Justiça, Coor­de­nador Doutor Willis San­ti­a­go Guer­ra Fil­ho, Ed. Lumen Juris, 2018. Auto­ra do livro ODR – Res­olução de Con­fli­tos online, Ed. Lumen Júris,2020. Palestrante e pro­fes­so­ra de cur­sos na área dos Meios Ade­qua­dos de Res­olução de Con­fli­tos.

[2] Disponív­el em https://www.who.int/health-topics/coronavirus#tab=tab_1. Aces­so em 09/04/2020.

[3] Disponív­el em https://www.who.int/eportuguese/countries/bra/en/. Aces­so em 09/04/2020

[4]Disponív­el em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/596989-o-coronavirus-e-os-filosofos.Acesso em 09/04/2020