Os Acadêmi­cos Tit­u­lares da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito Pro­fes­sores Hamil­ton D. de Souza, Ives Gan­dra Mar­tins, Kiyoshi Hara­da e Roque Car­raz­za, em coau­to­ria com  os Pro­fes­sores Ever­ar­do Maciel e Hum­ber­to Ávi­la, pub­licaram arti­go, orig­i­nal­mente no Estadão, em 26 de jul­ho de 2019, em que dis­cutem a per­t­inên­cia, eco­nomi­ci­dade e juri­ci­dade da PEC 45/2019, inda­gan­do: “se a neces­si­dade de mudanças é inequívo­ca, a aprovação desse pro­je­to deve pas­sar pela seguinte questão: as alter­ações pro­postas são boas para o Brasil?”

Leia o arti­go a seguir:

“Recém-aprova­da pela Comis­são de Con­sti­tu­ição e Justiça da Câmara dos Dep­uta­dos, a refor­ma trib­utária obje­to da Pro­pos­ta de Emen­da à Con­sti­tu­ição (PEC) 45/2019 con­ta com respeitáveis apoios. Nada mais nat­ur­al, pois a com­plex­i­dade do sis­tema trib­utário causa efeitos per­ver­sos sobre a econo­mia, muito incô­mo­d­os em tem­pos de retração. Entre­tan­to, se a neces­si­dade de mudanças é inequívo­ca, a aprovação desse pro­je­to deve pas­sar pela seguinte questão: as alter­ações pro­postas são boas para o Brasil?

O foco da PEC 45/2019 é a trib­u­tação sobre o con­sumo. Ten­ta-se cri­ar o Impos­to sobre Bens e Serviços (IBS) em sub­sti­tu­ição ao ICMS, IPI, ISS e PIS/Cofins. Ele seria insti­tuí­do e dis­ci­plina­do por lei com­ple­men­tar da União. Esta­dos e municí­pios pode­ri­am ape­nas alter­ar suas alíquo­tas, porém com sev­eras restrições. Real­mente, os por­centu­ais dev­e­ri­am ser os mes­mos “para todos os bens e serviços”, respei­tan­do-se os mín­i­mos fix­a­dos pelo Sena­do para cobrir gas­tos com saúde e edu­cação. Seria proibi­da a redução do trib­u­to em função da essen­cial­i­dade do item (ces­ta bási­ca, por exem­p­lo) ou de políti­cas de desen­volvi­men­to local. Além dis­so, o IBS seria reg­u­la­men­ta­do, arrecada­do e fis­cal­iza­do por comitê gestor vin­cu­la­do à União.

Esse caráter cen­tral­izador é uma evidên­cia inequívo­ca da incon­sti­tu­cional­i­dade do pro­je­to. De fato, segun­do dados do Tesouro Nacional cita­dos no voto do rela­tor da matéria na Comis­são de Con­sti­tu­ição e Justiça (CCJ) da Câmara, 43% da atu­al arrecadação dos municí­pios e 88% das receitas trib­utárias dos Esta­dos pas­sari­am a ser con­tro­la­dos pelo poder cen­tral. Tal remane­ja­men­to de com­petên­cias e receitas trib­utárias não se afi­na com o pacto fed­er­a­ti­vo. Afi­nal, tende a enfraque­cer a autono­mia finan­ceira dos entes descen­tral­iza­dos, com efeitos deletérios sobre a real­iza­ção de suas atribuições con­sti­tu­cionais, na medi­da em que eles não estari­am autor­iza­dos a insti­tuir e arrecadar o IBS, pro­mover a vari­ação de alíquo­tas em função do setor, do pro­du­to ou das cir­cun­stân­cias econômi­co-soci­ais de cada momen­to.

Insista-se que den­tre as cláusu­las inte­grantes do pacto fed­er­a­ti­vo em vig­or está a autono­mia dos entes descen­tral­iza­dos, o que supõe repar­tição de com­petên­cias e receitas de trib­u­tos. Tais divisões são “pilares da autono­mia dos entes políti­cos” (STF, RE 591.033, min­is­tra Ellen Gra­cie), porque “con­sagram a fór­mu­la de divisão de cen­tros de poder em um Esta­do de Dire­ito” (STF, ADI 4228, min­istro Alexan­dre de Moraes) e per­mitem que Esta­dos e municí­pios real­izem suas incum­bên­cias con­sti­tu­cionais. Logo, “não pode emen­da con­sti­tu­cional suspendê-la(s) ou afastá-la(s), porque, se o fiz­er, ofend­erá o pacto fed­er­a­ti­vo, enfraquecendo‑o, pelo que é ten­dente a aboli-lo” (STF, ADI-MC 926–5, voto do min­istro Car­los Vel­loso, tri­bunal pleno, DJ 6/5/94).

Esse vício é grave e merece ser dis­cu­ti­do com pro­fun­di­dade nas instân­cias próprias, mas a pro­pos­ta exam­i­na­da lev­an­ta questões para além do âmbito jurídi­co.

A primeira per­plex­i­dade é que a PEC 45/2019 impli­cará aumen­to de impos­tos. De fato, o IBS seria “uni­forme para todos os bens e serviços” e englo­baria o ICMS, IPI, ISS e PIS/Cofins. Assim, quase todos os setores sofre­ri­am algu­ma ele­vação trib­utária. Pro­du­tos agrí­co­las que atual­mente não se sujeitam ao IPI pas­sari­am a absorvê-lo par­cial­mente. Serviços tradi­cionais, como advo­ca­cia, con­tabil­i­dade, etc., hoje sub­meti­dos ao ISS com alíquo­ta média de 4,38%, teri­am sua trib­u­tação acresci­da de por­centu­ais equiv­a­lentes ao IPI e ao ICMS. Se o IBS tiv­er alíquo­ta de 25%, como se noti­cia, esti­ma-se que have­ria majo­ração de mais de 300% para serviços presta­dos por pes­soas jurídi­cas optantes pelo lucro pre­sum­i­do. Para os autônomos o impacto seria ain­da maior, poden­do chegar a quase 700%, pois seria adi­ciona­do não só o equiv­a­lente ao IPI e ao ICMS, mas tam­bém ao PIS/Cofins, que hoje não alcança tais pes­soas físi­cas.

Mas não é só.

A PEC 45/2019 tam­bém ten­ta cri­ar um Impos­to Sele­ti­vo para “deses­tim­u­lar o con­sumo” de bens e serviços que gerem exter­nal­i­dades neg­a­ti­vas. Todavia não há quais­quer lim­ites a serem obser­va­dos pela figu­ra, nem critérios que defi­nam os pro­du­tos e setores atingi­dos. Essa car­ta bran­ca pode resul­tar na insti­tu­ição de um impos­to de amp­lo espec­tro, inci­dente em dupli­ci­dade sobre os mes­mos itens obje­to do IBS. Nesse sen­ti­do, por exem­p­lo, veícu­los movi­dos a com­bustíveis fós­seis pode­ri­am ser alvo desse trib­u­to, pois são polu­idores e podem ser sub­sti­tuí­dos por car­ros a álcool ou elétri­cos. Em suma, a pre­tex­to de supos­ta extrafis­cal­i­dade, o Impos­to Sele­ti­vo pode­ria incidir sobre vas­ta gama de itens.

Out­ro prob­le­ma é a com­plex­i­dade. Ambi­ciona-se revog­ar 19 dis­pos­i­tivos e intro­duzir 141 out­ros na Con­sti­tu­ição. Com isso, quase 40 novos con­ceitos seri­am cri­a­dos. Nos primeiros dois anos, o sis­tema seria adap­ta­do na base de “ten­ta­ti­va e erro”. Durante a primeira déca­da, o País con­vive­ria com dois mod­e­los para­le­los, o novo e o atu­al. Os con­tribuintes prestari­am con­tas aos três níveis de fis­cal­iza­ção exis­tentes e àquele a ser cri­a­do para tratar do IBS. Pas­sa­da a tran­sição ini­cial, nada garante que o sis­tema seguiria sem alter­ações. Por isso, o próprio pra­zo de 50 anos para Esta­dos e municí­pios serem repara­dos pelas per­das resul­tantes do novo trib­u­to é duvi­doso. Afi­nal, há mais de 15 anos os Esta­dos lutam para que a União com­pense os pre­juí­zos ori­un­dos da elim­i­nação do ICMS-Expor­tação, pro­movi­da pela Emen­da Con­sti­tu­cional (EC) 42/2003. De resto, admi­ti­da a supos­ta neu­tral­i­dade arreca­datória do mod­e­lo, em ter­mos agre­ga­dos, as per­das have­ri­am de ser com­pen­sadas com mais car­ga trib­utária.

Em suma, o País neces­si­ta de refor­ma trib­utária que não implique aumen­to de impos­tos e garan­ta segu­rança, transparên­cia, sim­pli­fi­cação e neu­tral­i­dade. Tais imper­a­tivos não são sat­is­feitos pela PEC 45/2019.”