Sentido, vocação e missão da Fundação Academia Paulista de Direito (1)
Alfredo Attié (2)
Uma instituição sem fins lucrativos, voltada para promover reflexões e discussões sobre os grandes desafios do direito e da sociedade contemporânea, em todos os seus diferentes aspectos.
A Fundação Academia Paulista de Direito foi criada, em 1972, para reunir os melhores juristas brasileiros que possuíssem ou viessem a ter laços com São Paulo.
Em cada uma de suas gestões, seus Presidentes tiveram a oportunidade de acrescentar algo a esse projeto inicial, já rico, na ambição de renovar o direito e preservar sua ciência.
Bem assim, a partir de agosto de 2017, quando tomei posse do cargo de Presidente da Fundação Academia Paulista de Direito, essa passou a contar também com a participação e o diálogo permanente com outros intelectuais, artistas, empresários, políticos, economistas, cientistas da sociedade e da natureza, educadores e estudantes, do Brasil e do exterior, e de centros e instituições de cultura, educação, informação e pensamento nacionais, estrangeiros e internacionais. que trabalham em nível de excelência e também acreditam no pensamento e na comunicação trans- e interdisciplinares, em seus variados matizes, escolas, doutrinas, teorias, práticas, experimentos e experiências, , com os quais estabeleci, no curso de minha experiência de educador, pesquisador, filósofo, escritor, cientista social e jurista, laços formais e informais, que estendi à Fundação Academia Paulista de Direito.
Diante das constantes mudanças paradigmáticas pelas quais passam, do ponto de vista sincrônico e diacrônico, os ambientes, as sociedades e suas ciências, não apenas em suas vertentes aparentes, de ordem tecnológica e cognitiva, mas sobretudo na observação da complexidade de suas configurações e expressões, a Fundação Academia Paulista de Direito passou a procurar identificar e decifrar valores e perspectivas que movem e são movidas por tais mudanças ou transformações, sempre em processo, seja no que diz respeito à inovação estrutural, institucional e sistêmica, seja no que figuram fragmentações, fluxos disruptivos, forças centrífugas, seja ainda na especificação de componentes de unificação, forças centrípetas, levando em consideração facetas negativas e positivas.
Por tais motivos, é que, aqui, ensaio a formulação de uma nova missão para a Fundação Academia Paulista de Direito, como provocação e convite para a contribuição e participação dos Acadêmicos, Acadêmicas e da sociedade, integralmente.
Assumindo inteira responsabilidade pelo presente texto, de minha autoria, e pela formulação dessa missão, a intenção, ao fazer expor texto e missão, no site, é a de poder receber as sugestões, contribuições e críticas, que permitam aperfeiçoar, sempre, os caminhos da Fundação Academia Paulista de Direito.
A Fundação Academia Paulista de Direito é um laboratório de pensamento, um estúdio de criação, invenção, reflexão, ensaio e experimentação de saberes e fazeres, usina de ideias e de sua exposição ao livre debate e à composição de políticas sociais e públicas construtivas.
Lugar de encontro do humano, na composição e expressão de sua integralidade e complexidade, pessoas que se constróem como pensadores e agentes das diversas culturas históricas e territoriais, de pesquisas e estudos, além de experiências e práticas de sua extensão e difusão.
A Fundação Academia Paulista de Direito tem por missão a livre pesquisa, o livre pensamento, a livre discussão, em diálogo democrático com todas as pessoas e todos os grupos e formulações da vida em sociedade.
Escutar, Sentir., Formar, Opinar, Criticar, Construir, Transformar, Criar, Inventar, Garantir, Preservar constituem os modos de ser e fazer desse empreendimento.
A Fundação Academia Paulista de Direito é fábrica (thinktank, Denkfabrik), mas também empório de pensamento.
Ela realiza esse seu modo de ser e fazer por meio de cada uma das Cadeiras (καθέδραι) de seus Acadêmicos Titulares, às quais e aos quais é atribuída liberdade de pensamento, pesquisa, ensino e comunicação, bem como da integração e debate entre os Acadêmicos e seus projetos e obras.
Ainda, por meio de seus Centros, Institutos, Núcleos de Pesquisa, Estudo e Extensão à Sociedade, que são vinculados a uma ou mais Cadeiras, e das publicações acadêmicas, entre as quais se destaca a Polifonia: Revista Internacional da Academia Paulista de Direito.
Cada um desses Centros, institutos, Núcleos e Grupos de Pesquisa, Estudos e Extensão à Sociedade constitui, individualmente e em sua integração com os demais, e em seu diálogo com a sociedade, uma instituição e um processo de educação e ensino avançados, na dialética, na retórica, e na gramática de convergência e divergência, de alta qualidade, excelência, de envolvimento e memória, desenvolvimento e projeção, da justiça, dos direitos humanos, dos valores da democracia — assim a liberdade, a igualdade e a solidariedade — e da paz positiva e construtiva, interna e internacional, com a distribuição equânime dos bens e valores econômicos, culturais e sociais e a preservação e o uso sustentável dos recursos naturais.
Diversidade. Pluralidade, Multidimensionalidade. Complexidade. Interdisciplinaridade, Transdiciplinaridade, Interseccionalidade. Inclusão. Integração são os vetores e os polos de composição e conexão desses modos de ser e de fazer.
A Fundação Academia Paulista de Direito é um entreposto de trocas e comunicação, arco nos espaços e nos tempos da natureza e das culturas.
A concepção e a experiência das Academias é global e não apenas localizada em pontos da história e dos territórios das velhas dicotomias centro-periferia, norte-sul, ocidente-oriente. Ela transcende e busca compreender, curar, restaurar e conciliar as marcas do passado e do presente de conversão, representação, julgamento, opressão, exploração e ilusão, de colonialidade e submissão cultural, de destruição da natureza e da humanidade, buscando a recuperação da alteridade, no tempo e no espaço, empregando as ciências e artes de ponta, na constante experimentação humana.
O pensamento e a experiência de cada um dos territórios e tempos necessita de uma conexão criadora, uma poética e uma pragmática conjugadas, tendo o humano e sua relação com a natureza, e seu relançamento na natureza, em seus vários espaços e tempos, em que se sucedem e conjugam constantemente as expressões dos ainda vigentes vetores e estruturas de desigualdade, mediante superações micro- e macropolíticas para a compreensão e reconhecimento das diferenças e a abertura a sua expressão em termos concretos de liberdade, igualdade e solidariedade.
A Fundação Academia Paulista de Direito é tempo e espaço da justiça que se faz acolhimento das diferenças, mas igualmente construção de um novo pacto ou processo de convivência, reunindo valores e bens, no engendramento de um direito renovado, instrumento e sujeito de civilização e de civilizações que, guardando as narrativas do que foi, não deseja mais retornar nem preservar os momentos dolorosos de desesperança e sectarismo, as persistentes vedações autoritárias, mas, refletindo tais experiências e concedendo relevo ao reconhecimento das diferenças e de suas contribuições, aos sonhos do presente e as capacidades do futuro e de suas gerações, quer firmemente continuar sua busca criadora da felicidade e da justiça.
É a partir da elucidação dessa missão da Fundação Academia Paulista de Direito que podemos reler o lema escolhido por seus Fundadores: iussum quia iustum ius.
Até aqui, o texto tem sido interpretado segundo adoutrina escolástica, do jusnaturalismo advindo da tradição medieval, que estabeleceu uma ruptura com a doutrina romana clássica, ao optar pelo percurso iniciado pela codificação de Justiniano. Ao fazer tal opção, essa corrente de pensamento do direito fez dotar os termos derivados da jurisprudência romana de um sentido distinto daquele resultante da influência das correntes filosóficas helenísticas, que formaram a base para a evolução do direito romano clássico. Por conseguinte, os contornos da prática e da teoria do direito acabaram sendo condicionados seja pela concepção da tradição do cristianismo medieval, seja pela tradição imperial, ligada à cultura do chamado Império do Oriente, com sede em Bizâncio/Constantinopla.. Essas duas influências deram ao direito uma conotação mais ligada à nova moral cristã, e uma configuração gramatical imperativa. O direito, diziam os romanos da era clássica, dizia-se no modo indicativo e não no modo imperativo. Era uma forma de dar resposta a perguntas sobre a atribuição de coisas a pessoas, portanto uma maneira de descrever relações de pertencimento. As várias distinções do direito romano clássico visavam a dotar as coisas de determinadas qualidades, correspondendo-as ao apossamento de pessoas, cuja qualidade, por sua vez, dependia exatamente dessa capacidade (das coisas, segundo sua concepção) de se deixarem apossar. O status das pessoas dependia basicamente da acomodação das coisas. Daí as definições do direito para os romanos parecerem estranhas ao leitor moderno, que já perdera de vista sua ligação com a cultura greco-romana, em decorrência mesmo do corte havido com a doutrina imperial bizantina e com o desenvolvimento do pensamento cristão medieval. O direito não era mais a arte ou ciência do bom e do equitativo ou equilibrado; nem a ciência ou arte do direito, a relação das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do injusto. O direito, impregnado da nova cultura e derivado da nova ordem, passou a ser praticado e visto como aquilo que decorria de um comando..O próprio termo usado pelos romanos para dizer direito deixa de ser ius (justo) e passa a ser directu (dirigido). Para os romanos o termo ius derivava da palavra iustitia, era um componente da ideia de justiça. Se havia uma direção para o jurídico, essa era dada pela justiça (claro que na forma como os romanos a entendiam e conceituavam). Para o pensamento medieval, do qual ainda somos tributários, direito e justiça não se ligam mais, pelo que é necessário que um novo vocábulo expresse um novo direito. Direito passa a ser dever, algo obrigatório, ordenado, e não mais equilibrado. Os comandos passam a ser sua linguagem. o direito não mais descreve. a regra não mais narra. O direito determina e a regra manda. A relação do direito passa a ser a da ordem e da obediência. Não mais uma relação entre iguais, mas de desiguais.
Iussum quis justem ius é expressão medieval, portanto já impregnada da nova doutrina jurídica. Foi lida e ainda é lida como “é obrigatório porque é justo”, ou “é ordenado por ser justo”, ainda, “é legal porque é justo”.
Desse modo, a expressão assume o caráter de conformação a uma ordenação estabelecida. Pode, é claro, ser lido de outro modo, exatamente o oposto, inconformista: por exemplo, de somente dever ser obedecido por ser justo, se for justo. Portanto, somente é legal o que for justo, em decorrência de que uma teoria da desobediência pode ser depreendida.
Mas talvez não seja necessário tal desvio interpretativo. Isso se tentarmos entender a frase no sentido que seria apontado segundo a origem cultural romano-helenística de seus termos. Nesse sentido, a oração parece uma tautologia, algo como “é justo o que é justo”. Mas não é tautológico se compreendermos o contexto cultural original da criança da pratica do direito e de sua teoria, Se o direito (ius) deriva de justiça e exprime, em concreto, o que seria a expressão de apossamento das coisas, portanto a narrativa do que são as coisas (quae rem quae est breuiter enarrat), então existe algo que é direito segundo a concepção de justiça.
Sugiro, portanto, a tradução “é jurídico o que é justo”, para dizer que o direito corresponde à justiça. Não em abstrato, mas segundo uma operação de constituição da linguagem e da ação/paixão, assim conhecer e fazer o jurídico e a justiça. Isso se dá em paralelo ao que exprimi acima, a respeito da importância da conexão entre uma poética e uma pragmática do direito e da justiça, na construção e formulação de uma política jurídica.
Essa é a principal nova trazida pela missão da Fundação Academia Paulista de Direito, a partir do momento em que assumi, graças à confiança que gentilmente me foi conferida pelos importantes Acadêmicos e Acadêmicas que a compõem. E que aceitei de bom grado, por ter sentido que a vocação verdadeira da Fundação Academia paulista de Direito poderia ser expressa nessa nova missão. E que refletir sobre ela e práticas-la seria o melhor modo de pensar e fazer com que o jurídico se tornasse justo.
Enfim, como escrevi no frontispício de minha tese — que serve de base a essa crítica empreendida no presente texto — “Sobre a Alteridade: para uma Crítica da Antropologia do Direito”(Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo), que se tornou meu livro “A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade”(Porto Alegre: Sergio Fabris, 2003), alterius non sit qui suus esse potest. Convenci-me que ninguém pode ser seu se todos não puderem desfrutar da mesma sorte. A Fundação Academia Paulista de Direito por vocação e missão empenha-se em tornar o destino comum essa experiência de sermos todas as pessoas livres, iguais e solidárias.
Como decorrência desses princípios, mas sobretudo do fato de que cada um deles flui de relações humanas concretas, assim como as imagens e conceitos que deles procedem, em sua multiplicidade e variedade, é que a Fundação Academia Paulista de Direito se põe o compromisso de se manifestar de modo crítico a respeito dos problemas da sociedade contemporânea brasileira e internacional, da conjuntura política e das políticas de ordem ambiental, econômica, cultural e social que a acompanham, bem como sobre o estado da arte do direito, fazendo ressaltar questões atinentes não apenas ao desenvolvimento de suas teorias, mas ao contorno de suas práticas. Finalmente, para apontar o grave prejuízo a umas e outras que é consequência de uma linha cinzenta, uma área de atuação que se vai tornando de preferência de muitas entidades de ensino e de eventos, no sentido de captar e difundir modas, correntes, ideias e tendências de modo superficial, sem cuidado exatamente crítico, por mínimo que se apresente, passando a ideia de que a informação e a formação jurídicas resumem-se a estar apto a consumir e reproduzir modelos estabelecidos e indicações superficiais de tecnologias, sem que se conheça suas razões e interesses, muito menos a segurança ou insegurança que podem trazer para o curso da vida política e das pessoas envolvidas nos vários mundos do direito e dos direitos. Enfim, a ganância que consome energias, espaço e tempo, e constitui empecilho para a informação e a formação jurídica continuada, séria e democrática das várias gerações de estudantes e profissionais.
A Fundação Academia Paulista de Direito impõe-se a missão de devir constantemente referência de construção e crítica da experiência jurídica.Narrar o passado, apontar o presente e ajudar a escolher os caminhos para o futuro dos direitos e da sociedade, das cidades e das civilizações.
(1) Veja no link.
(2)‘Alfredo Attié é Doutor em Filosofia da Universidade de São Paulo.