Em ver­são inte­gral, o arti­go pub­li­ca­do pelo Tit­u­lar da Cadeira San Tia­go Dan­tas e Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, em Inter­esse Públi­co, Blog/Coluna de Fred­eri­co Vas­con­ce­los, na Folha/UOL, em 19 de janeiro de 2018 (clique aqui para ler).

 

Justiça entre home­ns raivosos.

Alfre­do Attié

(Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito. Doutor em Filosofia da USP, exerce a função de Desem­bar­gador do TJSP)

 

“A primeira pági­na de um dos prin­ci­pais jor­nais brasileiros, o Estadão, de 16 de janeiro de 2018, trazia a foto de um juiz e uma juíza, con­ver­san­do num gabi­nete de um tri­bunal. A leg­en­da refe­ria que eram o pres­i­dente de um tri­bunal region­al e a pres­i­dente do tri­bunal fed­er­al e falavam sobre segu­rança do tri­bunal region­al, porque três out­ros juízes, de uma das câmaras do tri­bunal region­al, estari­am para jul­gar recur­so con­tra a sen­tença de um out­ro juiz, de uma vara fed­er­al.

Tan­tos juízes me fiz­er­am lem­brar de um filme que, no Brasil, chamou-se “Doze Home­ns e uma Sen­tença”, do dire­tor Sid­ney Lumet. O filme é um dess­es must-watch de cur­sos de dire­ito penal (assim como Cromwell, de Ken Hugh­es, é idol­a­tra­do pelos de ciên­cias soci­ais). Doze jura­dos reúnem-se numa sala fecha­da e devem pro­ferir um vere­dic­to (unân­ime, no sis­tema norte-amer­i­cano) de con­de­nação ou absolvição, de um jovem acu­sa­do de come­ter homicí­dio. Em princí­pio, a cul­pa do réu parece tão evi­dente à quase total­i­dade deles, que enten­dem que se devem livrar logo de seu dev­er, votan­do a con­de­nação do rapaz. Mas um deles diverge e começa a faz­er per­gun­tas, instau­ran­do a dúvi­da e aba­lan­do a con­vicção con­ve­niente dos demais. Faz calor e os jura­dos estão ner­vosos, dis­cutem, expõem seus pre­con­ceitos, e começam a perce­ber que ess­es pre­con­ceitos é que os levaram a inter­pre­tar a cena do crime, como recon­struí­da durante a instrução crim­i­nal. Assim como o pre­con­ceito de teste­munhas as levara a enx­er­garem e ouvirem coisas que não podi­am ter ocor­ri­do como as con­taram ou recon­struíram. No final, chegam à con­clusão unân­ime de que não existe pro­va que pos­sa levar à con­de­nação e absolvem o réu.

No orig­i­nal, o títu­lo é “Twelve Angry Men”. A palavra “angry” remete a um esta­do de beligerân­cia, à dis­posição de retal­iar, a uma emoção forte, deriva­da do ressen­ti­men­to. “Anger” é ira. Os doze home­ns estari­am ira­dos. Con­vo­ca­dos como jura­dos, eles se com­por­tavam, no iní­cio, como dota­dos da ira dos deuses ou da natureza. Em grego, esse ter­mo seria mênis, palavra que qual­i­fi­ca a emoção de Aquiles, logo no iní­cio da Ilía­da de Home­ro. A ira dos doze home­ns estaria vin­cu­la­da à natureza, ou seja, a forças irre­sistíveis advin­das do cli­ma quente e úmi­do do dia da sessão, além de paixões pes­soais, em princí­pio, descon­heci­das, mas prontas a agir sobre o cor­po do rapaz jul­ga­do. “Angry Men”, ain­da, pode­ria ser traduzi­do por home­ns enco­ler­iza­dos. A cólera, em grego, khó­los, levaria à vin­gança, cujo obje­ti­vo é a obtenção de uma reparação emo­cional a um ultra­je sofri­do. Alguém teria sofri­do um mal e teria de ser vin­ga­do. Quem come­teu esse mal pre­cis­aria ser punido. Con­fes­so que estou exageran­do a dis­tinção entre cólera e ira, na lín­gua por­tugue­sa, palavras que podem ser tomadas como sinôn­i­mas. No con­tex­to em que as emprego, aqui, con­tu­do, cólera estaria mais próx­i­ma de fúria. Como se sabe, as Fúrias (em grego, Erí­nias) eram a per­son­ifi­cação da vin­gança dirigi­da aos mor­tais Sua mais famosa aparição ocorre na trilo­gia trág­i­ca Orésteia, de Ésqui­lo, quan­do são impe­di­das de punir o herói e der­ro­tadas por Athena, na fun­dação de um tri­bunal democráti­co.

Notem que não há qual­quer relação entre ira e cólera, mênis e khó­los com justiça. A ira, mênis, é sobre-humana, algo de que são dota­dos deuses e semi­deuses, ou que impul­siona os humanos pelas forças da natureza. Nas ações decor­rentes da ira, o humano se pre­sume divi­no, em relação ao out­ro, ou, como diria Sêneca, homo, sacra res homi­ni (o homem é coisa sagra­da para o homem), que Hobbes traduz­iu por Man to Man is a kind of God (o homem é uma espé­cie de Deus para o homem). A cólera, khó­los, é sub-humana, dota­da de uma rec­i­pro­ci­dade prim­i­ti­va, faz­er o mal como respos­ta ao mal, instau­ran­do um ciclo de punições e con­tra-punições, A se vin­ga de B, punindo‑o de algum modo; B’ se vin­ga de A; A’ pune B’, o que leva à cólera de B”, a deter­mi­nar a punição de A’. Pron­to, cri­am-se os lados e a oposição entre eles. As relações soci­ais somente com­por­tam essa vin­gança per­ma­nente, todos con­tra todos: lupus est homo homi­ni, non homo (o homem é um lobo para o out­ro homem, não um homem), como dizia Plau­to, ou, no modo pop­u­lar­iza­do a par­tir de Hobbes, homo homi­ni lupus, (o homem é o lobo do homem) num esta­do em que impera a bel­lum omni­um con­tra omnes (guer­ra de todos con­tra todos). Pela ira e pela cólera, os seres humanos se tratam como supe­ri­ores ou infe­ri­ores uns em relação aos out­ros, deuses ou lobos. Não há um meio ter­mo. O homem dá ao out­ro a vida ou a morte, pro­tege ou devo­ra, sub­mete ou pune, supera ou vin­ga.

Todavia, na história dos doze ira­dos ou enco­ler­iza­dos, aparece uma voz dis­cor­dante, que diz “e se”, que duvi­da e inda­ga, argu­men­ta, antes de jul­gar. Essa voz dá vida a uma nova paixão – que, em meu livro sobre Mon­tesquieu (a ser lança­do neste ano, basea­do na tese que redi­gi em 2000), chamei de “paixão de con­tenção”. Essa nova paixão é a justiça. Ela inau­gu­ra uma nova relação entre os humanos, nem div­ina nem bes­tial, mas sim­ples­mente humana. O homem é humano em relação ao homem, digo, seguin­do o que pode­ria ser uma redar­guição de Oví­dio, que, imag­i­no, seria homo est homo homi­ni, non lupus (o homem é homem para o out­ro homem, não um lobo). Essa justiça não é ira nem cólera, nem div­ina nem ani­mal, mas humana. Ao ver o humano como semel­hante, respeitando‑o em sua condição nat­ur­al-cul­tur­al, o humano pode esta­b­ele­cer o jul­ga­men­to dos atos de que é acu­sa­do. Homem e não Deus. Homem e não Lobo. OU, como diria Pas­cal, l’homme n’est ni ange ni bête (o homem não é nem anjo nem ani­mal). E o pen­sador francês acres­cen­ta que o infortúnio deter­mi­na que aque­le que dese­ja se faz­er de anjo, torne-se ani­mal (le mal­heur veut que qui veut faire l’ange fait la bête.

Vejam que ini­ciei falan­do de uma imagem de juízes, preparan­do-se para faz­er o jul­ga­men­to de con­de­nação ou absolvição de um homem. Imagem de um jor­nal de larga cir­cu­lação que me lev­ou a uma viagem de explo­ração do sig­nifi­ca­do do jul­ga­men­to. Empreguei nesse per­cur­so a análise de um filme, de cujas per­son­agens imag­inei as paixões. Desse pon­to, fiz uma viagem à antigu­idade clás­si­ca, para demon­strar a origem e o sig­nifi­ca­do dessas paixões, pas­san­do pelas estações de pen­sadores da era mod­er­na. Enfim, apre­sen­tei meu con­ceito de justiça. Ago­ra, cumpre retornar ao momen­to pre­sente, que con­tex­tu­al­iza e inspi­ra a reflexão que empreen­di.

Esse homem que vai ser jul­ga­do não é um homem qual­quer. É uma das fig­uras mais impor­tantes da história recente brasileira, cujas ações políti­cas – sejam as de oposição, antes de assumir pelo voto o gov­er­no do País, por dois mandatos, sejam as de gov­er­nante, quan­do exerceu o poder com êxi­to que empol­gou parcela rel­e­vante da sociedade brasileira – levaram a uma trans­for­mação de nos­sa real­i­dade e dos debates em torno dessa real­i­dade. Tal papel rel­e­vante não é desmere­ci­do pelas acusações que sofre (uma peque­na parte delas aparece no proces­so que será jul­ga­do, em segun­do ato), e que se apre­sen­tam de modo difu­so na sociedade – da impren­sa às redes soci­ais, pas­san­do pelo diz-que-me-diz cotid­i­ano. Anjo ou ani­mal: essas as más­caras que assume nes­sa difusão de ataque e defe­sa.

Dos juízes que referi ao iní­cio, dois deles já man­i­fes­taram seu vere­dic­to: cul­pa­do na sen­tença da vara fed­er­al, e cul­pa­do, na declar­ação fei­ta em entre­vista (ao mes­mo jor­nal) pelo pres­i­dente do tri­bunal region­al. Out­ros três par­tic­i­parão do segun­do ato do jul­ga­men­to, fase que não encer­ra a peça, pois a aguardam as per­for­mances na Cap­i­tal da repúbli­ca brasileira.

Ain­da é pos­sív­el acres­cen­tar que nem mes­mo o jul­ga­men­to final do judi­ciário brasileiro encer­rará a questão. Não me refiro, aqui, às deman­das inter­na­cionais pro­postas ou passíveis de apre­sen­tação, mas ao fato de que a democ­ra­cia brasileira (mes­mo que imper­fei­ta, como qual­quer regime democráti­co é, por natureza, imper­feito) encon­tra-se em está­gio em que o povo ain­da pode e poderá dis­cu­tir a val­i­dade e a cor­reção do jul­ga­men­to, no dia a dia, colo­can­do os que pro­ferirem o vere­dic­to na berlin­da da con­ver­sação social, tecen­do suas críti­cas e atreven­do opiniões mais ou menos embasadas, leigas ou espe­cial­izadas, de estar cer­to ou não esse vere­dic­to, seja par­cial, seja final. Aquém e além da palavra do poder judi­cial está o poder políti­co de jul­gar, supre­mo nos bons ares da democ­ra­cia.

O que dese­jo diz­er, para con­cluir ape­nas esse primeiro capí­tu­lo de comen­tários ao tex­to e ao con­tex­to desse jul­ga­men­to, é que espero que nen­hum dess­es jul­ga­men­tos que expres­sei siga o cam­in­ho da ira nem da cólera. Pen­so que somente há o cam­in­ho da justiça, nen­hu­ma out­ra opção na repúbli­ca democráti­ca, cujos princí­pios são o dire­ito (rule of law), a democ­ra­cia, sub­meti­dos ao da justiça social, que con­sagre a dig­nidade humana. Não deve ser o jul­ga­men­to de lobos nem de deuses. Jul­ga-se um ser humano em sua dig­nidade. E esse jul­ga­men­to deve ser o de seres humanos em sua dig­nidade. Jul­ga­men­to da igual­dade, na igual­dade, do argu­men­to con­tra a ira e a cólera. Da unidade con­tra a oposição irra­cional que impera em boa parte de nos­sa sociedade. Um jul­ga­men­to de esper­ança e não de medo, se é para falar ain­da mais de paixões. Jul­ga­men­to de atos con­cre­tos, apu­ra­dos ou não em sua inteireza, e não de teses abstratas sobre cor­rupção. E, nesse sen­ti­do, o jul­ga­men­to em primeiro ato ofer­ece uma pista, mes­mo que, talvez, aponte a con­clusão diver­sa – o que dirão os demais atos e as demais inter­pre­tações da peça.

Não quero aque­les home­ns enco­ler­iza­dos ou ira­dos do iní­cio da peça, reunidos em sala sec­re­ta, no calor do verão trop­i­cal. Quero home­ns em recin­tos aber­tos, argu­men­tan­do e trazen­do as pon­der­ações ao chão do dia a dia, em que home­ns são ape­nas seres humanos diante de out­ros seres humanos. Sem temer man­i­fes­tações, que se resumam a protestos e pressões da pre­sença e da pre­sença da palavra. Enfim, é o princí­pio da repúbli­ca, do espaço públi­co, da pub­li­ci­dade, em uma palavra, da par­tic­i­pação. Como disse em recente palestra, tan­to se fala em par­tic­i­pação no Brasil, de sua neces­si­dade, mas quan­do a par­tic­i­pação efe­ti­va­mente aparece – nun­ca do jeito que os teóri­cos imag­i­nam -, é igno­ra­da, temi­da ou reprim­i­da, de que temos muitos exem­p­los em nos­sa história.  Há lim­ites, dirão alguns, talvez com bons motivos. Mas sem que a par­tic­i­pação final­mente emer­ja em sua con­cre­tude e real­i­dade nun­ca con­seguire­mos saber quais são ou serão na dinâmi­ca do mun­do con­tem­porâ­neo. Não existe neu­tral­i­dade nem isenção. A impar­cial­i­dade — como um ter­mo entre con­cepções de mun­do, ide­olo­gias, exper­iên­cias diver­sas de vida – é uma con­strução em meio à livre dis­cussão.

Pron­to, fiz o papel daque­la per­son­agem que soube inau­gu­rar a justiça entre angry men. Não dev­e­ri­am estar dis­cutin­do segu­rança, mas deixan­do fluir a voz da justiça.”