Em artigo especialmente escrito para a seção Breves Artigos, da Academia Paulista de Direito, Sérgio Niemeyer, advogado em São Paulo, mestre em Direito pela USP, parecerista, professor e palestrante, critica a posição da jurisprudência brasileira a respeito da gratuidade da pretensão jurisdicional.
Para o jurista carioca, radicado em São Paulo, “o ponto central é a ilegalidade e inconstitucionalidade do § 3º do art. 98 do CPC. Se os juízes compreenderem isso, o problema acaba. Qualquer um que alegar insuficiência de recursos (rendimentos, portanto) poderá obter o benefício. O processo segue, sem suspensão. A parte contrária poderá impugnar e comprovar, até com evidências de sinais exteriores de riqueza que o beneficiário não merece o favor legal. Se o juiz se convencer disso, revoga o benefício. Se não, mantém. Ao final do processo, se o beneficiário sair vencido, a obrigação não fica sob condição suspensiva de desaparecimento da situação de ausência de rendimentos, mas poderá ser executada, como de resto qualquer outra obrigação, contra o patrimônio do beneficiário vencido. Pronto, está resolvida a celeuma que nunca deveria ter existido.”
Leia a seguir o artigo, na íntegra.
Gratuidade da justiça e as decisões “contra legem” do Judiciário
Sérgio Niemeyer (*)
“A gratuidade da justiça é matéria que a todo momento é alçada à posição de questão principal num processo sem sê-lo. Recentemente, o TJSP rejeitou o processamento de IRDR sob o argumento de que “A concessão do benefício da justiça gratuita depende da análise de circunstâncias fáticas sobre a capacidade econômica do interessado, com possibilidade de determinação de comprovação do preenchimento dos requisitos, a critério do juiz (artigo 99, § 2º, do C.P.C.)”.
Se o interessado é pessoa natural, a lei estabelece em seu favor a presunção de veracidade da alegação de insuficiência de recursos. Então, basta o interessado alegar a insuficiência de recursos, para que tenha direito ao benefício.
O problema é que os Tribunais do País, e com o TJSP não é diferente, insistem em NÃO CUMPRIR A LEI. E para isso não hesitam empregar toda sorte de argumento falacioso, intelectualmente desonesto e ilícito, sob o ponto de vista legal.
O primeiro argumento intelectualmente desonesto usado pelos juízes é o de que a presunção estabelecida no § 3º do art. 99 do CPC, segundo o qual “Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”, é que essa presunção é relativa e, portanto, admite prova em contrário.
O ser relativa e admitir prova em contrário é característica de toda presunção.(**)
As questões que se colocam, e que os juízes se esquivam de responder com honestidade intelectual, salvante um acórdão do TJAC, são:
(i) o que significa prova em contrário à alegação de insuficiência de recursos?
(ii) a quem incumbe a produção da prova em contrário?
(iii) pode o interessado ser obrigado a produzir prova cuja interpretação seja contrária a seu interesse?
As respostas às questões acima, formuladas com honestidade intelectual, são:
(i) prova em contrário é toda evidência capaz de abalar a presunção de veracidade outorgada por lei. Quando esta estabelece que o juiz só poderá indeferir o benefício se houver nos autos elementos concretos que contrariem a alegação de insuficiência de recursos, não quer dizer que o juiz possa opor à presunção legal uma presunção “hominis” ou “ex homine”, por ele mesmo formulada. O que a lei quer dizer é que deve haver nos autos documentos que demonstrem ou sugiram que o interessado possui recursos suficientes para pagar as custas sem prejuízo do sustento próprio ou familiar. Ademais, toda presunção “hominis” é mais fraca do que uma presunção legal e deve ceder o passo a esta, não o contrário.
Elemento concreto, por sua própria natureza, é inconciliável com a mera conjectura abstratamente formada e desamparada de qualquer evidência constante dos autos.
Havendo nos autos elementos concretos capazes de infirmar a presunção de veracidade da alegação, o juiz deve indicar quais são e como os interpretou de modo que desafiam a presunção de veracidade da alegação de insuficiência de recursos deduzida pelo interessado, e ensejar a este a oportunidade de, aí e somente aí sim, comprovar a veracidade da alegação, produzindo prova capaz de infirmar aqueles elementos concretos constantes dos autos indicados pelo juiz como contrários à alegação de insuficiência de recursos. A não ser assim, tudo se passará num plano etéreo, como num processo kafkiano, em que a parte interessada não sabe os motivos nem as evidências que deve refutar para assegurar o benefício pretendido.
Por isso, a contrariedade de uma presunção legal de veracidade deve consistir de elementos concretos constantes dos autos que demonstrem, “v.g.”, sinais exteriores de riqueza do interessado no benefício. Mas, repita-se, esses elementos já devem estar nos autos. Do contrário, será forçoso reconhecer a inexistência de elementos concretos capazes de infirmar a alegação do interessado, de modo que o benefício deve ser-lhe concedido incontinênti pelo juiz.
(ii) seria despiciendo responder a essa questão, não fosse a atitude intelectualmente desonesta dos juízes na maioria dos casos.
Se o juiz é parte neutra e desinteressada no processo, evidentemente nenhum interesse deve ter em provar o que quer que seja, muito menos um fato a cujo respeito a lei, do alto de sua soberania que a todos subordina, inclusive ao próprio juiz, cuja função social é aplicar a lei, dispensa a parte de produzir qualquer prova porque guarnece tal fato com a presunção legal de veracidade.
Portanto, apesar de a presunção de veracidade contida no § 3º do art. 99 do CPC ser relativa, incumbe exclusivamente à parte contrária, com quem o interessado litiga, e não ao juiz ou órgão jurisdicional, fazer prova capaz de contrariar a veracidade da alegação de insuficiência de recursos deduzida pelo interessado.
(iii) por fim, o que tem ocorrido é que os juízes e Tribunais de um modo geral, de que é exemplo gritante a decisão mencionada do TJSP (processo nº 2112022–98.2022.8.26.0000), têm exigido do interessado que comprove a alegação de insuficiência de recursos, exigindo dele a apresentação de uma série documentos que podem ser interpretados como prova contrária aos seus interesses.
Com assim agirem, negam vigência e violam tanto o § 3º do art. 99 quanto o art. 374, IV, do CPC, segundo o qual “Não dependem de prova os fatos em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade”.
Apesar da obviedade desses preceitos legais, os juízes os têm ignorado solene e arbitrariamente.
Cabe aqui uma análise histórica para compreender melhor esses preceitos legais.
Tanto o CPC de 1939 quanto a Lei 1.060/1950 em seu texto original, previam que o interessado no benefício da gratuidade da justiça demonstrasse que seus gastos pessoais e familiares consumiam seus rendimentos de tal modo que não lhe permitisse arcar com as despesas processuais. Essa situação vigorou até 1986, quando foi promulgada a Lei 7.510, decorrente do PL 880/1979, que alterou a Lei 1.060/1950 para afastar a necessidade de o interessado comprovar seu estado de insuficiência de recursos, passando a presumir verdadeira a simples declaração desse estado de coisas.
O CPC/2015 foi além e passou a guarnecer com a presunção legal de veracidade a simples alegação de insuficiência de recursos, dispensando, portanto, a declaração, quando o interessado for pessoa natural.
Essa mudança, ocorrida já com a Lei 7.510/1986 e ampliada pelo CPC/2015 tem sua razão de ser.
Como todo serviço, também a tutela jurisdicional só deveria ser paga ao final da prestação total. Mas a lei, o CPC, considera como adiantamento os pagamentos que se realizam no início e no curso da demanda (CPC, arts. 82, § 1º; 95; 98, §§ 5º e 6º; 100, parágrafo único, entre outros), o que está em harmonia com o fato de o devedor ser, na verdade, a parte sucumbente, a qual só é conhecida ao final do processo.
Três são as considerações que relevam notar.
Primeiro, o sustento próprio e familiar das pessoas naturais, bem como eventuais despesas extraordinárias que surjam são suportados pelo rendimento que possuem. Rendimento é fluxo (salário, honorários, pensões, etc.). Por isso, se a antecipação das despesas processuais, que deve sair ordinariamente do rendimento do interessado, comprometer o seu sustento próprio ou familiar, exatamente por se tratar de despesa extraordinária para a qual ele é chamado a antecipar ao Estado, ele fará jus ao benefício da gratuidade da Justiça, bastando alegar a condição de insuficiência de recursos porque a lei não o obriga mais, desde o advento da Lei 7.510/1986, a comprovar essa insuficiência. A lei presume verdadeira a simples alegação de insuficiência de recursos.
Segundo, ainda que o interessado possua portentoso patrimônio, ainda assim não faz sentido obrigá-lo a se desfazer de seu patrimônio, por mais ostensivo que seja, transformando‑o, total ou parcialmente em renda, isto é, monetizando‑o, para ter acesso aos serviços de tutela jurisdicional, ou seja, para ter acesso à Justiça, porquanto ele ainda não é o devedor das despesas, mas mero antecipador delas, já que o devedor será o vencido, sucumbente.
Terceiro, ao presumir a veracidade da alegação de insuficiência de recursos, a lei pretendeu relegar a questão da gratuidade da justiça a um plano secundário, privilegiando a prestação do serviço de tutela jurisdicional para resolver o conflito de interesses que se instaurou entre as partes litigantes e, assim, promover ou restabelecer a paz social. Por isso que presume a veracidade da alegação de insuficiência feita pelo interessado no favor legal, transferindo para a parte adversa, e não ao juiz da causa, por mais que a presunção seja relativa, o ônus da prova capaz de infirmar a presunção legal, que deverá ser por esta desempenhado em sua manifestação na contestação, réplica, contrarrazões ou por meio de petição simples (CPC, art. 100). Se a parte contrária não se desincumbir de produzir prova contra a presunção legal de veracidade da alegação de insuficiência de recursos — o que, admito, pode ser feito inclusive por demonstração dos sinais exteriores de riqueza do interessado, o qual, nesta hipótese, deverá ter a oportunidade de refutar as evidências desses sinais exteriores de riqueza por meio de outras provas capazes de infirmá-los, ainda que não sejam provas confirmatórias da insuficiência de recursos, para manter o benefício — o processo se desenvolverá rumo ao provimento final que resolve o mérito da causa.
O que importa é que a lei pretende que o debate sobre a gratuidade da justiça seja um debate acessório, secundário, e não condicionante do acesso à Justiça. Por isso que, não havendo elementos concretos nos autos que infirmem a alegação de insuficiência de recursos deduzida pelo interessado, o juiz deve deferir o benefício sem mais, sendo-lhe defeso exigir do interessado a comprovação daquilo que a este lei dispensou de provar. Por isso também que “deferido o pedido [de gratuidade da justiça] a parte contrária poderá oferecer impugnação na contestação, na réplica, nas contrarrazões de recurso ou, nos casos de pedido superveniente ou formulado por terceiro, por meio de petição simples”, no prazo legal, sem que isso tenha o condão de suspender o processo.
Esse ponto é de suma importância. O debate sobre a questão da concessão da gratuidade da justiça não suspende a marcha processual, o que a caracteriza como questão secundária, pois o devedor das despesas processuais será inexoravelmente conhecido no final do processo.
Isso tem sua razão de ser. Trata-se do privilégio que o novo CPC outorgou à solução de mérito para que o conflito de interesse seja efetivamente resolvido, em vez de ficar fermentando em decorrência de formalidades ou questões secundárias como é a que atina com a antecipação das despesas processuais cuja cobrança incumbe à Fazenda Pública, não ao juiz.
Neste passo, chamo a atenção para ponto essencial à boa compreensão da disciplina da matéria, no meu entendimento.
A questão da antecipação das despesas processuais é de somenos importância relativamente ao mérito da causa porque essas despesas deverão ser suportadas pela parte vencida ao final da demanda, a parte sucumbente, e dele cobradas pela Fazenda Pública, se já não tiverem sido recolhidas.
A esse respeito tenho sustentado a inconstitucionalidade do § 3º do art. 98 do CPC porque confere tratamento jurídico diferente a pessoas que ostentam a mesma condição jurídico-patrimonial e estão em situações de fato semelhantes.
A antecipação de despesas processuais no início e no curso do processo não representam propriamente uma obrigação.
A lei erra, no entanto, e nisso incorre em franca inconstitucionalidade, além de superfetação desnecessária, ao estabelecer no § 3º do art. 98 do CPC, que, “Vencido o beneficiário, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário”.
A superfetação reside em estabelecer o prazo de 5 anos para a cobrança das despesas processuais que o beneficiário da gratuidade deixou de pagar no curso do processo.
Isto porque, à parte a verba honorária advocatícia, todas as outras serão devidas à Fazenda Pública. Ocorre que o prazo de prescrição para a Fazenda Pública cobrar seus créditos é de 5 anos; logo, não há necessidade de o CPC repetir esse comando. A repetição não passa de redundância. Superfetação, portanto. Igualmente em relação à verba honorária, cuja ação de cobrança deve ser proposta também no prazo de 5 anos, sob pena de prescrição (Lei 8.906/1994, art. 25, II).
Já a inconstitucionalidade do § 3º do art. 98 do CPC está em subordinar a cobrança da obrigação em que o beneficiário da gratuidade da justiça foi condenado à demonstração, pelo credor, de mudança na situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade.
Isso porque a situação que justifica a concessão da gratuidade é a insuficiência de recursos financeiros (rendimento), não a insuficiência de patrimônio. Uma coisa não pode ser confundida com a outra. Como eu disse, os recursos financeiros contra os quais as pessoas extraem os pagamentos de suas despesas são representados pelo fluxo de seus rendimentos, via de regra, salários, honorários, pensões etc. Por isso, mesmo uma pessoa com patrimônio valioso, mas com rendimentos limitados, pode alegar insuficiência de recursos e ser beneficiária da gratuidade da justiça. O que não faz qualquer sentido é pretender que alguém se desfaça do patrimônio que possui (estoque de riqueza) para ter acesso à Justiça.
Porém, ao final da demanda, vencido o beneficiário da gratuidade da justiça, surge contra ele um título obrigacional, título judicial, aliás: a sentença condenatória no pagamento da verba de sucumbência.
E o que responde pelas obrigações de uma pessoa? A resposta está no art. 391 do Código Civil e no art. 789 do CPC: pelas obrigações respondem todos os bens, presentes e futuros, do devedor. Ou seja, pelas obrigações do beneficiário da gratuidade da justiça respondem seus bens, seu estoque de riqueza. Não há que se cogitar dos seus rendimentos, mas do seu patrimônio, até porque, se não tiver patrimônio, seu salário, honorários, pensão etc. são impenhoráveis (CPC, art. 833), de modo que não podem ser executados (aí a outra superfetação, já que, se o beneficiário vencido não tiver patrimônio, seus rendimentos não podem ser objeto da execução para cumprimento da sentença), respeitados os limites da impenhorabilidade definidos na lei. Ele teve acesso à Justiça, obteve o serviço da tutela estatal, mas saiu vencido. Contraiu a dívida consubstanciada na sentença. Deve pagá-la. A execução dessa obrigação se faz contra o patrimônio do devedor.
Não faz nenhum sentido, por exemplo, supondo que a sentença tenha condenado o beneficiário da gratuidade da justiça a pagar determinada indenização, que esta possa ser executada contra o patrimônio do devedor, mas as despesas processuais e honorários de sucumbência não, por não ter o credor comprovado alteração no estado de insuficiência de recursos do devedor, pois esse estado atina com o fluxo de seus rendimentos, não com o estoque de sua riqueza, que deve responder pelas obrigações contra ele constituídas.
Esse raciocínio fica ainda mais evidente se se prefigurar a seguinte hipótese: uma pessoa, beneficiária da gratuidade da justiça, litiga com outra, não beneficiária. A sentença é de parcial procedência, e condena ambas no pagamento parcial das verbas sucumbenciais. Não faz sentido que a pessoa não beneficiária da gratuidade da justiça possa ter seu patrimônio penhorado e executado para pagamento das verbas sucumbenciais em que fora condenada e o beneficiário da gratuidade da justiça não. Essa aberração torna-se ainda mais palmar se se imaginar que o patrimônio do não beneficiário é menor do que o do beneficiário da gratuidade da justiça, ainda que os rendimentos deste sejam inferiores aos daquele.
A inconstitucionalidade do § 3º do art. 98 do CPC é, portanto, patente. Confere tratamento diferente a duas pessoas em idêntica situação jurídica patrimonial, ferindo o primado da isonomia.
Por isso que a Justiça deveria acabar de vez com essa questiúncula da gratuidade, a qual levou os juízes a criarem verdadeiras aberrações da razão humana, como dizer que a presunção legal é relativa e, portanto, o juiz pode requerer prova da alegação. O ser relativa a presunção significa que admite prova em contrário a ser produzida pela parte com quem o interessado no benefício litiga, não pelo juiz, que é ou deveria ser neutro e equidistante, desinteressado na causa. Exigir prova confirmatória também constitui um acinte à inteligência até do mais biltre dos seres humanos, pois, se o interessado deve provar sua alegação, de que serve a presunção legal em seu favor? E, afinal, qual a instituição mais proeminente a que todos devem respeito num estado democrático de direito: a lei, ou ao que pensa um juiz?”
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(*)sergioniemeyer@adv.oabsp.org.br
(**) ver meu trabalho sobre presunções, disponível na Internet, no site www.academia.edu.