Em arti­go espe­cial­mente escrito para a seção Breves Arti­gos, da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, Sér­gio Niemey­er, advo­ga­do em São Paulo, mestre em Dire­ito pela USP, pare­cerista, pro­fes­sor e palestrante, crit­i­ca a posição da jurisprudên­cia brasileira a respeito da gra­tu­idade da pre­ten­são juris­di­cional.

Para o jurista car­i­o­ca, rad­i­ca­do em São Paulo, “o pon­to cen­tral é a ile­gal­i­dade e incon­sti­tu­cional­i­dade do § 3º do art. 98 do CPC. Se os juízes com­preen­derem isso, o prob­le­ma aca­ba. Qual­quer um que ale­gar insu­fi­ciên­cia de recur­sos (rendi­men­tos, por­tan­to) poderá obter o bene­fí­cio. O proces­so segue, sem sus­pen­são. A parte con­trária poderá impug­nar e com­pro­var, até com evidên­cias de sinais exte­ri­ores de riqueza que o ben­efi­ciário não merece o favor legal. Se o juiz se con­vencer dis­so, revo­ga o bene­fí­cio. Se não, man­tém. Ao final do proces­so, se o ben­efi­ciário sair ven­ci­do, a obri­gação não fica sob condição sus­pen­si­va de desa­parec­i­men­to da situ­ação de ausên­cia de rendi­men­tos, mas poderá ser exe­cu­ta­da, como de resto qual­quer out­ra obri­gação, con­tra o patrimônio do ben­efi­ciário ven­ci­do. Pron­to, está resolvi­da a celeu­ma que nun­ca dev­e­ria ter exis­ti­do.”

Leia a seguir o arti­go, na ínte­gra.

 

Gra­tu­idade da justiça e as decisões “con­tra leg­em” do Judi­ciário

Sér­gio Niemey­er (*)

 

“A gra­tu­idade da justiça é matéria que a todo momen­to é alça­da à posição de questão prin­ci­pal num proces­so sem sê-lo. Recen­te­mente, o TJSP rejeitou o proces­sa­men­to de IRDR sob o argu­men­to de que “A con­cessão do bene­fí­cio da justiça gra­tui­ta depende da análise de cir­cun­stân­cias fáti­cas sobre a capaci­dade econômi­ca do inter­es­sa­do, com pos­si­bil­i­dade de deter­mi­nação de com­pro­vação do preenchi­men­to dos req­ui­si­tos, a critério do juiz (arti­go 99, § 2º, do C.P.C.)”.

Se o inter­es­sa­do é pes­soa nat­ur­al, a lei esta­b­elece em seu favor a pre­sunção de veraci­dade da ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos. Então, bas­ta o inter­es­sa­do ale­gar a insu­fi­ciên­cia de recur­sos, para que ten­ha dire­ito ao bene­fí­cio.

O prob­le­ma é que os Tri­bunais do País, e com o TJSP não é difer­ente, insis­tem em NÃO CUMPRIR A LEI. E para isso não hesi­tam empre­gar toda sorte de argu­men­to fala­cioso, int­elec­tual­mente des­on­esto e ilíc­i­to, sob o pon­to de vista legal.

O primeiro argu­men­to int­elec­tual­mente des­on­esto usa­do pelos juízes é o de que a pre­sunção esta­b­ele­ci­da no § 3º do art. 99 do CPC, segun­do o qual “Pre­sume-se ver­dadeira a ale­gação de insu­fi­ciên­cia deduzi­da exclu­si­va­mente por pes­soa nat­ur­al”, é que essa pre­sunção é rel­a­ti­va e, por­tan­to, admite pro­va em con­trário.

O ser rel­a­ti­va e admi­tir pro­va em con­trário é car­ac­terís­ti­ca de toda pre­sunção.(**)

As questões que se colo­cam, e que os juízes se esquiv­am de respon­der com hon­esti­dade int­elec­tu­al, sal­vante um acórdão do TJAC, são:

(i) o que sig­nifi­ca pro­va em con­trário à ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos?

(ii) a quem incumbe a pro­dução da pro­va em con­trário?

(iii) pode o inter­es­sa­do ser obri­ga­do a pro­duzir pro­va cuja inter­pre­tação seja con­trária a seu inter­esse?

As respostas às questões aci­ma, for­mu­ladas com hon­esti­dade int­elec­tu­al, são:

(i) pro­va em con­trário é toda evidên­cia capaz de abalar a pre­sunção de veraci­dade out­or­ga­da por lei. Quan­do esta esta­b­elece que o juiz só poderá inde­ferir o bene­fí­cio se hou­ver nos autos ele­men­tos con­cre­tos que con­trariem a ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos, não quer diz­er que o juiz pos­sa opor à pre­sunção legal uma pre­sunção “homin­is” ou “ex homine”, por ele mes­mo for­mu­la­da. O que a lei quer diz­er é que deve haver nos autos doc­u­men­tos que demon­strem ou sugi­ram que o inter­es­sa­do pos­sui recur­sos sufi­cientes para pagar as cus­tas sem pre­juí­zo do sus­ten­to próprio ou famil­iar. Ade­mais, toda pre­sunção “homin­is” é mais fra­ca do que uma pre­sunção legal e deve ced­er o pas­so a esta, não o con­trário.

Ele­men­to con­cre­to, por sua própria natureza, é inc­on­cil­iáv­el com a mera con­jec­tura abstrata­mente for­ma­da e desam­para­da de qual­quer evidên­cia con­stante dos autos.

Haven­do nos autos ele­men­tos con­cre­tos capazes de infir­mar a pre­sunção de veraci­dade da ale­gação, o juiz deve indicar quais são e como os inter­pre­tou de modo que desafi­am a pre­sunção de veraci­dade da ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos deduzi­da pelo inter­es­sa­do, e ense­jar a este a opor­tu­nidade de, aí e somente aí sim, com­pro­var a veraci­dade da ale­gação, pro­duzin­do pro­va capaz de infir­mar aque­les ele­men­tos con­cre­tos con­stantes dos autos indi­ca­dos pelo juiz como con­trários à ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos. A não ser assim, tudo se pas­sará num plano etéreo, como num proces­so kafkiano, em que a parte inter­es­sa­da não sabe os motivos nem as evidên­cias que deve refu­tar para asse­gu­rar o bene­fí­cio pre­tendi­do.

Por isso, a con­trariedade de uma pre­sunção legal de veraci­dade deve con­si­s­tir de ele­men­tos con­cre­tos con­stantes dos autos que demon­strem, “v.g.”, sinais exte­ri­ores de riqueza do inter­es­sa­do no bene­fí­cio. Mas, repi­ta-se, ess­es ele­men­tos já devem estar nos autos. Do con­trário, será forçoso recon­hecer a inex­istên­cia de ele­men­tos con­cre­tos capazes de infir­mar a ale­gação do inter­es­sa­do, de modo que o bene­fí­cio deve ser-lhe con­ce­di­do incon­tinên­ti pelo juiz.

(ii) seria despicien­do respon­der a essa questão, não fos­se a ati­tude int­elec­tual­mente des­on­es­ta dos juízes na maio­r­ia dos casos.

Se o juiz é parte neu­tra e desin­ter­es­sa­da no proces­so, evi­den­te­mente nen­hum inter­esse deve ter em provar o que quer que seja, muito menos um fato a cujo respeito a lei, do alto de sua sobera­nia que a todos sub­or­di­na, inclu­sive ao próprio juiz, cuja função social é aplicar a lei, dis­pen­sa a parte de pro­duzir qual­quer pro­va porque guarnece tal fato com a pre­sunção legal de veraci­dade.

Por­tan­to, ape­sar de a pre­sunção de veraci­dade con­ti­da no § 3º do art. 99 do CPC ser rel­a­ti­va, incumbe exclu­si­va­mente à parte con­trária, com quem o inter­es­sa­do lit­i­ga, e não ao juiz ou órgão juris­di­cional, faz­er pro­va capaz de con­trari­ar a veraci­dade da ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos deduzi­da pelo inter­es­sa­do.

(iii) por fim, o que tem ocor­ri­do é que os juízes e Tri­bunais de um modo ger­al, de que é exem­p­lo gri­tante a decisão men­ciona­da do TJSP (proces­so nº 2112022–98.2022.8.26.0000), têm exigi­do do inter­es­sa­do que com­pro­ve a ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos, exigin­do dele a apre­sen­tação de uma série doc­u­men­tos que podem ser inter­pre­ta­dos como pro­va con­trária aos seus inter­ess­es.

Com assim agirem, negam vigên­cia e vio­lam tan­to o § 3º do art. 99 quan­to o art. 374, IV, do CPC, segun­do o qual “Não depen­dem de pro­va os fatos em cujo favor mili­ta pre­sunção legal de existên­cia ou de veraci­dade”.

Ape­sar da obviedade dess­es pre­ceitos legais, os juízes os têm igno­ra­do solene e arbi­trari­a­mente.

Cabe aqui uma análise históri­ca para com­preen­der mel­hor ess­es pre­ceitos legais.

Tan­to o CPC de 1939 quan­to a Lei 1.060/1950 em seu tex­to orig­i­nal, pre­vi­am que o inter­es­sa­do no bene­fí­cio da gra­tu­idade da justiça demon­strasse que seus gas­tos pes­soais e famil­iares con­sum­i­am seus rendi­men­tos de tal modo que não lhe per­mi­tisse arcar com as despe­sas proces­suais. Essa situ­ação vig­or­ou até 1986, quan­do foi pro­mul­ga­da a Lei 7.510, decor­rente do PL 880/1979, que alter­ou a Lei 1.060/1950 para afas­tar a neces­si­dade de o inter­es­sa­do com­pro­var seu esta­do de insu­fi­ciên­cia de recur­sos, pas­san­do a pre­sumir ver­dadeira a sim­ples declar­ação desse esta­do de coisas.

O CPC/2015 foi além e pas­sou a guarnecer com a pre­sunção legal de veraci­dade a sim­ples ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos, dis­pen­san­do, por­tan­to, a declar­ação, quan­do o inter­es­sa­do for pes­soa nat­ur­al.

Essa mudança, ocor­ri­da já com a Lei 7.510/1986 e ampli­a­da pelo CPC/2015 tem sua razão de ser.

Como todo serviço, tam­bém a tutela juris­di­cional só dev­e­ria ser paga ao final da prestação total. Mas a lei, o CPC, con­sid­era como adi­anta­men­to os paga­men­tos que se real­izam no iní­cio e no cur­so da deman­da (CPC, arts. 82, § 1º; 95; 98, §§ 5º e 6º; 100, pará­grafo úni­co, entre out­ros), o que está em har­mo­nia com o fato de o deve­dor ser, na ver­dade, a parte sucum­bente, a qual só é con­heci­da ao final do proces­so.

Três são as con­sid­er­ações que rel­e­vam notar.

Primeiro, o sus­ten­to próprio e famil­iar das pes­soas nat­u­rais, bem como even­tu­ais despe­sas extra­ordinárias que sur­jam são supor­ta­dos pelo rendi­men­to que pos­suem. Rendi­men­to é fluxo (salário, hon­orários, pen­sões, etc.). Por isso, se a ante­ci­pação das despe­sas proces­suais, que deve sair ordi­nar­i­a­mente do rendi­men­to do inter­es­sa­do, com­pro­m­e­ter o seu sus­ten­to próprio ou famil­iar, exata­mente por se tratar de despe­sa extra­ordinária para a qual ele é chama­do a ante­ci­par ao Esta­do, ele fará jus ao bene­fí­cio da gra­tu­idade da Justiça, bas­tan­do ale­gar a condição de insu­fi­ciên­cia de recur­sos porque a lei não o obri­ga mais, des­de o adven­to da Lei 7.510/1986, a com­pro­var essa insu­fi­ciên­cia. A lei pre­sume ver­dadeira a sim­ples ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos.

Segun­do, ain­da que o inter­es­sa­do pos­sua por­ten­toso patrimônio, ain­da assim não faz sen­ti­do obrigá-lo a se des­faz­er de seu patrimônio, por mais osten­si­vo que seja, transformando‑o, total ou par­cial­mente em ren­da, isto é, monetizando‑o, para ter aces­so aos serviços de tutela juris­di­cional, ou seja, para ter aces­so à Justiça, porquan­to ele ain­da não é o deve­dor das despe­sas, mas mero ante­ci­pador delas, já que o deve­dor será o ven­ci­do, sucum­bente.

Ter­ceiro, ao pre­sumir a veraci­dade da ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos, a lei pre­tendeu rel­e­gar a questão da gra­tu­idade da justiça a um plano secundário, priv­i­le­gian­do a prestação do serviço de tutela juris­di­cional para resolver o con­fli­to de inter­ess­es que se instau­rou entre as partes lit­i­gantes e, assim, pro­mover ou resta­b­ele­cer a paz social. Por isso que pre­sume a veraci­dade da ale­gação de insu­fi­ciên­cia fei­ta pelo inter­es­sa­do no favor legal, trans­ferindo para a parte adver­sa, e não ao juiz da causa, por mais que a pre­sunção seja rel­a­ti­va, o ônus da pro­va capaz de infir­mar a pre­sunção legal, que dev­erá ser por esta desem­pen­hado em sua man­i­fes­tação na con­tes­tação, répli­ca, con­trar­razões ou por meio de petição sim­ples (CPC, art. 100). Se a parte con­trária não se desin­cumbir de pro­duzir pro­va con­tra a pre­sunção legal de veraci­dade da ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos — o que, admi­to, pode ser feito inclu­sive por demon­stração dos sinais exte­ri­ores de riqueza do inter­es­sa­do, o qual, nes­ta hipótese, dev­erá ter a opor­tu­nidade de refu­tar as evidên­cias dess­es sinais exte­ri­ores de riqueza por meio de out­ras provas capazes de infir­má-los, ain­da que não sejam provas con­fir­matórias da insu­fi­ciên­cia de recur­sos, para man­ter o bene­fí­cio — o proces­so se desen­volverá rumo ao provi­men­to final que resolve o méri­to da causa.

O que impor­ta é que a lei pre­tende que o debate sobre a gra­tu­idade da justiça seja um debate acessório, secundário, e não condi­cio­nante do aces­so à Justiça. Por isso que, não haven­do ele­men­tos con­cre­tos nos autos que infirmem a ale­gação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos deduzi­da pelo inter­es­sa­do, o juiz deve deferir o bene­fí­cio sem mais, sendo-lhe defe­so exi­gir do inter­es­sa­do a com­pro­vação daqui­lo que a este lei dis­pen­sou de provar. Por isso tam­bém que “deferi­do o pedi­do [de gra­tu­idade da justiça] a parte con­trária poderá ofer­e­cer impug­nação na con­tes­tação, na répli­ca, nas con­trar­razões de recur­so ou, nos casos de pedi­do super­ve­niente ou for­mu­la­do por ter­ceiro, por meio de petição sim­ples”, no pra­zo legal, sem que isso ten­ha o condão de sus­pender o proces­so.

Esse pon­to é de suma importân­cia. O debate sobre a questão da con­cessão da gra­tu­idade da justiça não sus­pende a mar­cha proces­su­al, o que a car­ac­ter­i­za como questão secundária, pois o deve­dor das despe­sas proces­suais será inex­o­rav­el­mente con­heci­do no final do proces­so.

Isso tem sua razão de ser. Tra­ta-se do priv­ilé­gio que o novo CPC out­or­gou à solução de méri­to para que o con­fli­to de inter­esse seja efe­ti­va­mente resolvi­do, em vez de ficar fer­men­tan­do em decor­rên­cia de for­mal­i­dades ou questões secundárias como é a que ati­na com a ante­ci­pação das despe­sas proces­suais cuja cobrança incumbe à Fazen­da Públi­ca, não ao juiz.

Neste pas­so, chamo a atenção para pon­to essen­cial à boa com­preen­são da dis­ci­plina da matéria, no meu entendi­men­to.

A questão da ante­ci­pação das despe­sas proces­suais é de somenos importân­cia rel­a­ti­va­mente ao méri­to da causa porque essas despe­sas dev­erão ser supor­tadas pela parte ven­ci­da ao final da deman­da, a parte sucum­bente, e dele cobradas pela Fazen­da Públi­ca, se já não tiverem sido recol­hi­das.

A esse respeito ten­ho sus­ten­ta­do a incon­sti­tu­cional­i­dade do § 3º do art. 98 do CPC porque con­fere trata­men­to jurídi­co difer­ente a pes­soas que osten­tam a mes­ma condição jurídi­co-pat­ri­mo­ni­al e estão em situ­ações de fato semel­hantes.

A ante­ci­pação de despe­sas proces­suais no iní­cio e no cur­so do proces­so não rep­re­sen­tam pro­pri­a­mente uma obri­gação.

A lei erra, no entan­to, e nis­so incorre em fran­ca incon­sti­tu­cional­i­dade, além de super­fe­tação desnecessária, ao esta­b­ele­cer no § 3º do art. 98 do CPC, que, “Ven­ci­do o ben­efi­ciário, as obri­gações decor­rentes de sua sucum­bên­cia ficarão sob condição sus­pen­si­va de exi­gi­bil­i­dade e somente poderão ser exe­cu­tadas se, nos 5 (cin­co) anos sub­se­quentes ao trân­si­to em jul­ga­do da decisão que as cer­ti­fi­cou, o cre­dor demon­strar que deixou de exi­s­tir a situ­ação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos que jus­ti­fi­cou a con­cessão de gra­tu­idade, extin­guin­do-se, pas­sa­do esse pra­zo, tais obri­gações do ben­efi­ciário”.

A super­fe­tação reside em esta­b­ele­cer o pra­zo de 5 anos para a cobrança das despe­sas proces­suais que o ben­efi­ciário da gra­tu­idade deixou de pagar no cur­so do proces­so.

Isto porque, à parte a ver­ba hon­orária advo­catí­cia, todas as out­ras serão dev­i­das à Fazen­da Públi­ca. Ocorre que o pra­zo de pre­scrição para a Fazen­da Públi­ca cobrar seus crédi­tos é de 5 anos; logo, não há neces­si­dade de o CPC repe­tir esse coman­do. A repetição não pas­sa de redundân­cia. Super­fe­tação, por­tan­to. Igual­mente em relação à ver­ba hon­orária, cuja ação de cobrança deve ser pro­pos­ta tam­bém no pra­zo de 5 anos, sob pena de pre­scrição (Lei 8.906/1994, art. 25, II).

Já a incon­sti­tu­cional­i­dade do § 3º do art. 98 do CPC está em sub­or­di­nar a cobrança da obri­gação em que o ben­efi­ciário da gra­tu­idade da justiça foi con­de­na­do à demon­stração, pelo cre­dor, de mudança na situ­ação de insu­fi­ciên­cia de recur­sos que jus­ti­fi­cou a con­cessão da gra­tu­idade.

Isso porque a situ­ação que jus­ti­fi­ca a con­cessão da gra­tu­idade é a insu­fi­ciên­cia de recur­sos finan­ceiros (rendi­men­to), não a insu­fi­ciên­cia de patrimônio. Uma coisa não pode ser con­fun­di­da com a out­ra. Como eu disse, os recur­sos finan­ceiros con­tra os quais as pes­soas extraem os paga­men­tos de suas despe­sas são rep­re­sen­ta­dos pelo fluxo de seus rendi­men­tos, via de regra, salários, hon­orários, pen­sões etc. Por isso, mes­mo uma pes­soa com patrimônio valioso, mas com rendi­men­tos lim­i­ta­dos, pode ale­gar insu­fi­ciên­cia de recur­sos e ser ben­efi­ciária da gra­tu­idade da justiça. O que não faz qual­quer sen­ti­do é pre­tender que alguém se des­faça do patrimônio que pos­sui (estoque de riqueza) para ter aces­so à Justiça.

Porém, ao final da deman­da, ven­ci­do o ben­efi­ciário da gra­tu­idade da justiça, surge con­tra ele um títu­lo obri­ga­cional, títu­lo judi­cial, aliás: a sen­tença con­de­natória no paga­men­to da ver­ba de sucum­bên­cia.

E o que responde pelas obri­gações de uma pes­soa? A respos­ta está no art. 391 do Códi­go Civ­il e no art. 789 do CPC: pelas obri­gações respon­dem todos os bens, pre­sentes e futur­os, do deve­dor. Ou seja, pelas obri­gações do ben­efi­ciário da gra­tu­idade da justiça respon­dem seus bens, seu estoque de riqueza. Não há que se cog­i­tar dos seus rendi­men­tos, mas do seu patrimônio, até porque, se não tiv­er patrimônio, seu salário, hon­orários, pen­são etc. são impen­horáveis (CPC, art. 833), de modo que não podem ser exe­cu­ta­dos (aí a out­ra super­fe­tação, já que, se o ben­efi­ciário ven­ci­do não tiv­er patrimônio, seus rendi­men­tos não podem ser obje­to da exe­cução para cumpri­men­to da sen­tença), respeita­dos os lim­ites da impen­hora­bil­i­dade definidos na lei. Ele teve aces­so à Justiça, obteve o serviço da tutela estatal, mas saiu ven­ci­do. Con­traiu a dívi­da con­sub­stan­ci­a­da na sen­tença. Deve pagá-la. A exe­cução dessa obri­gação se faz con­tra o patrimônio do deve­dor.

Não faz nen­hum sen­ti­do, por exem­p­lo, supon­do que a sen­tença ten­ha con­de­na­do o ben­efi­ciário da gra­tu­idade da justiça a pagar deter­mi­na­da ind­eniza­ção, que esta pos­sa ser exe­cu­ta­da con­tra o patrimônio do deve­dor, mas as despe­sas proces­suais e hon­orários de sucum­bên­cia não, por não ter o cre­dor com­pro­va­do alter­ação no esta­do de insu­fi­ciên­cia de recur­sos do deve­dor, pois esse esta­do ati­na com o fluxo de seus rendi­men­tos, não com o estoque de sua riqueza, que deve respon­der pelas obri­gações con­tra ele con­sti­tuí­das.

Esse raciocínio fica ain­da mais evi­dente se se pre­fig­u­rar a seguinte hipótese: uma pes­soa, ben­efi­ciária da gra­tu­idade da justiça, lit­i­ga com out­ra, não ben­efi­ciária. A sen­tença é de par­cial pro­cedên­cia, e con­de­na ambas no paga­men­to par­cial das ver­bas sucum­ben­ci­ais. Não faz sen­ti­do que a pes­soa não ben­efi­ciária da gra­tu­idade da justiça pos­sa ter seu patrimônio pen­ho­ra­do e exe­cu­ta­do para paga­men­to das ver­bas sucum­ben­ci­ais em que fora con­de­na­da e o ben­efi­ciário da gra­tu­idade da justiça não. Essa aber­ração tor­na-se ain­da mais pal­mar se se imag­i­nar que o patrimônio do não ben­efi­ciário é menor do que o do ben­efi­ciário da gra­tu­idade da justiça, ain­da que os rendi­men­tos deste sejam infe­ri­ores aos daque­le.

A incon­sti­tu­cional­i­dade do § 3º do art. 98 do CPC é, por­tan­to, patente. Con­fere trata­men­to difer­ente a duas pes­soas em idên­ti­ca situ­ação jurídi­ca pat­ri­mo­ni­al, ferindo o pri­ma­do da isono­mia.

Por isso que a Justiça dev­e­ria acabar de vez com essa questiún­cu­la da gra­tu­idade, a qual lev­ou os juízes a cri­arem ver­dadeiras aber­rações da razão humana, como diz­er que a pre­sunção legal é rel­a­ti­va e, por­tan­to, o juiz pode requer­er pro­va da ale­gação. O ser rel­a­ti­va a pre­sunção sig­nifi­ca que admite pro­va em con­trário a ser pro­duzi­da pela parte com quem o inter­es­sa­do no bene­fí­cio lit­i­ga, não pelo juiz, que é ou dev­e­ria ser neu­tro e equidis­tante, desin­ter­es­sa­do na causa. Exi­gir pro­va con­fir­matória tam­bém con­sti­tui um acinte à inteligên­cia até do mais bil­tre dos seres humanos, pois, se o inter­es­sa­do deve provar sua ale­gação, de que serve a pre­sunção legal em seu favor? E, afi­nal, qual a insti­tu­ição mais proem­i­nente a que todos devem respeito num esta­do democráti­co de dire­ito: a lei, ou ao que pen­sa um juiz?

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(*)sergioniemeyer@adv.oabsp.org.br

(**) ver meu tra­bal­ho sobre pre­sunções, disponív­el na Inter­net, no site www.academia.edu.