No pre­sente arti­go, o Acadêmi­co Tit­u­lar e ex-Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, Rogério Don­ni­ni, advo­ga­do, pare­cerista, livre-docente e pro­fes­sor do Mestra­do e Doutora­do da PUC-SP, explo­ra com clareza e cor­agem os graves prob­le­mas vivi­dos pelos doze mil­hões de brasileiros e brasileiras que moram nas fave­las, e pleos quarenta mil­hões que vivem sem água potáv­el, pes­soas aban­don­adas pelo Poder Públi­co, prob­le­mas cuja gravi­dade é acen­tu­a­da no momen­to da pan­demia.

 

 

Pan­demia e Fave­las: Desumanidade Assum­i­da e Expos­ta

Rogério Don­ni­ni

 

Há 2.600 anos era con­struí­da em Roma a denom­i­na­da cloa­ca max­i­ma (maior esgo­to), sis­tema de cole­ta de deje­tos, com a escav­ação de lon­gos túneis por baixo da cidade, que ain­da não tin­ha grandes dimen­sões. Em 312 a.C., no perío­do da Repúbli­ca, foi edi­fi­ca­do o primeiro aque­du­to na cidade eter­na, Acqua Appia, segui­do de dez out­ros, ao lon­go dos sécu­los seguintes, alguns com exten­são de mais de 90 km, que trazi­am água potáv­el para a cidade (1). No perío­do do Império (27 a.C. até 476 d.C.), que abar­ca­va grandes exten­sões da Europa, norte da África e Ori­ente Médio, a maior parte das cidades pos­suía rede de água e muitas delas eram dotadas de sis­tema de esgo­to. Pois bem, pas­sa­dos mais de 26 sécu­los, metade da pop­u­lação brasileira não tem aces­so a esgo­to trata­do e bas­ta cam­in­har­mos pelas vias da per­ife­ria de qual­quer cidade do País para nos deparar­mos com esgo­to a céu aber­to e fal­ta d’água. Se não bas­tasse esse fato, quase 40 mil­hões de brasileiros não pos­suem água potáv­el e mais de 18 mil­hões não recebem em seus lares água encana­da (2).

A pan­demia que esta­mos a supor­tar expõe a ver­gonha nacional: 12 mil­hões de pes­soas vivem em fave­las (segun­do o IBGE, “aglom­er­a­dos sub­nor­mais”), cuja des­ig­nação, espe­cial­mente no meio acadêmi­co, foi ban­i­da e sub­sti­tuí­da por comu­nidades, eufemis­mo que não altera, mas ape­nas ocul­ta a real­i­dade de pes­soas aban­don­adas pelo Poder Públi­co, que vivem nes­sa situ­ação desumana, sem endereço, sem as condições mín­i­mas para uma vida digna, esque­ci­das e desprezadas por todos, ver­dadeiros invisíveis que, bem de ver, inter­es­sam ape­nas àque­les que, de maneira ine­scrupu­losa, incen­ti­vam a propa­gação de novas comu­nidades, com o úni­co intu­ito de obtenção de votos.

Na cidade de São Paulo, a mais rica da Améri­ca Lati­na, mais de 2 mil­hões de pes­soas habitam em fave­las e as autori­dades, há décadas, sus­ten­tam que nada é pos­sív­el faz­er, dado o grande número de indi­ví­du­os que ocu­pam essas áreas. A segun­da favela mais pop­u­losa, Paraisópo­lis (cidade do paraí­so, ver­dadeiro para­doxo), con­cen­tra aprox­i­mada­mente 100 mil habi­tantes, suplan­ta­da ape­nas por Heliópo­lis (cidade do sol, out­ra con­tradição), com o dobro dessa pop­u­lação. O pro­gra­ma da Prefeitu­ra de São Paulo de urban­iza­ção de fave­las é pífio e jamais solu­cionará esse grave e vex­am­inoso prob­le­ma. Há que se abrir vias de cir­cu­lação para automóveis, numer­ação ade­qua­da de casas (endereços cer­tos), cri­ação de edifí­cios para abri­gar os moradores, com redes de água e esgo­to, praças, esco­las, tudo isso com a par­tic­i­pação da ini­cia­ti­va pri­va­da. E nada dis­so é impos­sív­el. Tornar mora­dias dig­nas de habitação é dev­er de todos, espe­cial­mente do Esta­do, que pouco faz para alter­ar essa situ­ação avil­tante e cru­el.  Da mes­ma for­ma, é inad­mis­sív­el e jamais seria um dire­ito dos inte­grantes das fave­las a per­pet­u­ação dessa situ­ação, pois não se tra­ta de escol­ha, mas neces­si­dade de mudança para uma vida mel­hor, nos exatos ter­mos do que deter­mi­na a nos­sa leg­is­lação.

Não existe e jamais exis­tiu von­tade políti­ca para essa tare­fa, que é tida como imprat­icáv­el e que, em ver­dade, pouco inter­es­sa às autori­dades con­sti­tuí­das. Dis­pen­sar cen­te­nas de fun­cionários con­trata­dos sem con­cur­so públi­co, que pouco ou nada fazem nos municí­pios, mil­hares deles nos Esta­dos e na União, pode­ria, num esforço con­jun­to, em âmbito nacional, em um ou dois decênios, solu­cionar, ou, ao menos, mel­ho­rar a vida de mil­hões de desam­para­dos, entre out­ras ini­cia­ti­vas, tais como des­ti­nar as receitas não mais para obras supér­flu­as, nor­mal­mente super­fat­u­radas, mas para o bene­fí­cio dire­to das pes­soas menos (ou nada) favore­ci­das. Com um sis­tema de sanea­men­to bási­co ade­qua­do, menos doentes ingres­sari­am nos hos­pi­tais públi­cos, com efe­ti­va redução de despe­sas na saúde públi­ca. No rol das pri­or­i­dades nacionais, sanea­men­to bási­co e “des­faveliza­ção” foram rel­e­ga­dos ao esquec­i­men­to, com con­se­quên­cias nefas­tas em tem­pos de pan­demia.

Esse gravís­si­mo e lamen­táv­el prob­le­ma social depende da boa von­tade e do real inter­esse de nos­sos gov­er­nantes para uma ação conc­re­ta. Todavia, até quan­do deve­mos esper­ar, enquan­to mil­hões de pes­soas vivem de maneira indigna? O Poder Exec­u­ti­vo se vale con­stan­te­mente da ale­gação do que se denom­i­na reser­va do pos­sív­el, ou seja, a fal­ta de ver­bas para solu­cionar a vas­ta gama de prob­le­mas de infraestru­tu­ra, o que o impediria de prop­i­ciar aos fave­la­dos uma vida mel­hor. Out­ro argu­men­to bas­tante uti­liza­do é o de que caberia ape­nas ao Exec­u­ti­vo a des­ti­nação do orça­men­to, em con­jun­to com o Leg­isla­ti­vo, sem qual­quer inter­fer­ên­cia exter­na.

O dire­ito à mora­dia encon­tra-se na Con­sti­tu­ição Fed­er­al entre um dos dire­itos soci­ais (art. 6º), inte­gra o rol dos dire­itos fun­da­men­tais e tem apli­cação ime­di­a­ta (§ 1º do art. 5º), o que o tor­na não ape­nas uma opção da admin­is­tração públi­ca, mas uma exigên­cia con­sti­tu­cional. Em ver­dade, o que se deter­mi­na é que todo o esforço seja real­iza­do para que as pes­soas vivam em mora­dias dig­nas, ade­quadas, o que tem sido desre­speito há décadas.

Emb­o­ra o Min­istério Públi­co ten­ha se vali­do do tex­to con­sti­tu­cional e pleit­ea­do dos nos­sos gov­er­nantes o dire­ito à mora­dia como uma pri­or­i­dade, nos­sos tri­bunais têm deci­di­do que seria uma inter­venção inad­e­qua­da do Poder Judi­ciário no Exec­u­ti­vo. Con­tu­do, novas e con­stantes ten­ta­ti­vas devem ser real­izadas, sob pena desse dire­ito a uma mora­dia digna se tornar letra mor­ta, em detri­men­to de mil­hões de desas­sis­ti­dos.

A covid 19, que atinge maior número de pes­soas nas regiões pobres, ape­nas expôs a mazela nacional das fave­las, exis­tentes des­de o final do sécu­lo XIX e que ain­da se mul­ti­pli­cam, ampara­das por indifer­ença da pop­u­lação e inter­ess­es escu­sos. Anor­mais não são as aglom­er­ações, como esta­b­elece o IBGE, mas as mentes sór­di­das e desumanas de pes­soas (gov­er­nantes e gov­er­na­dos) insen­síveis, inter­es­sa­dos ape­nas na próx­i­ma eleição, sem um mín­i­mo de altruís­mo.

 

(1) Tito Lívio, História de Roma – ab urbe con­di­ta lib­ri, São Paulo: Paumape Edi­to­ra.

(2) IBGE, 2019)