Em mais uma medi­da de enfrenta­men­to aos princí­pios con­sagra­dos na Con­sti­tu­ição Fed­er­al brasileira, o Gov­er­no fed­er­al fez anu­lar anis­tias con­ce­di­das a cabos da Aeronáu­ti­ca, o que se fez em des­cumpri­men­to a entendi­men­to con­sagra­do pela Corte Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos, rel­a­ti­va­mente ao dire­ito ao resta­b­elec­i­men­to da ver­dade  As  anu­lações foram veic­u­ladas por atos admin­is­tra­tivos genéri­cos, sem moti­vação dev­i­da, uma vez que não foi asse­gu­ra­do, em pro­ced­i­men­to admin­is­tra­ti­vo, o dev­i­do proces­so legal.

Essa foi a con­clusão do Núcleo 4, Justiça de Tran­sição, do Cen­tro Inter­na­cional de Dire­itos Humanos de São Paulo, vin­cu­la­do à Cadeira San Tia­go Dan­tas, da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, que pode ser lida, na impor­tante sín­tese a seguir.

 

Anti­juridi­ci­dade da Revo­gação de Anis­tia por Ato Admin­is­tra­ti­vo Imo­ti­va­do, na Ausên­cia de Dev­i­do Proces­so Legal

Maria Antoni­eta Men­dizábal,   André Ricar­do dos San­tos Lopes,   Eduar­do Vig­ori­to Dri­go,  Fab­rizio Con­te Jacobuc­ci,  Fer­nan­da Cláu­dia Araújo da Sil­va,  Guil­herme Vitor de Gon­za­ga Cami­lo,  Hele­na Zani Mor­ga­do,  João Cesário Neto,  Luís Eduar­do Alves de Loio­la,  Luiz Eduar­do Camar­go Out­eiro Her­nan­des

 

Em 16 de out­ubro de 2019, o Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al jul­gou recur­so extra­ordinário (RE 817338/DF), em tema de reper­cussão ger­al, que fixou entendi­men­to sobre o exer­cí­cio do poder de auto­tutela da Admin­is­tração Públi­ca, no sen­ti­do de que ela pos­sa revis­ar atos de con­cessão de anis­tia a cabos da Aeronáu­ti­ca. A decisão se fun­da­men­tou na análise da Por­taria 1.104/1964, e deter­mi­nou sua inaplic­a­bil­i­dade nos casos em que se com­pro­ve a ausên­cia de ato com moti­vação exclu­si­va­mente políti­ca, mas asse­gu­ran­do ao anis­ti­a­do, em pro­ced­i­men­to admin­is­tra­ti­vo, o dev­i­do proces­so legal e a não devolução das ver­bas já rece­bidas. Com base nesse entendi­men­to, em 8 de jun­ho de 2020, o Min­istério da Mul­her, da Família e dos Dire­itos Humanos, por meio de ato da min­is­tra da pas­ta, Damares Alves, anu­lou a anis­tia políti­ca de 295 anis­ti­a­dos políti­cos.

As anis­tias políti­cas revo­gadas foram con­ce­di­das pela Comis­são de Anis­tia, cri­a­da pela Lei 10.559, de 13 de novem­bro de 2002, com o obje­ti­vo de reparar as víti­mas de atos de exceção, ocor­ri­dos entre 1946 e 5 de out­ubro de 1988.  A Comis­são de Anis­tia tem por mis­são exam­i­nar os requer­i­men­tos de anis­tias e asses­so­rar a Min­is­tra de Esta­do da Mul­her, da Família e dos Dire­itos Humanos em suas decisões. A decisão final, caso seja de recon­hec­i­men­to da condição de anis­ti­a­do políti­co do requer­ente, garante o dire­ito à reparação por danos decor­rentes pela perseguição políti­ca sofri­da.

As anu­lações das anis­tias políti­cas foram pos­síveis por uma mudança de inter­pre­tação acer­ca da natureza da Por­taria 1.104/1964, edi­ta­da no primeiro ano do regime mil­i­tar. O entendi­men­to expos­to em Súmu­la Admin­is­tra­ti­va 2002.07.003 (2002), expres­sa­va que: “a Por­taria 1.104, de 12 de out­ubro de 1964, expe­di­da pelo Sen­hor Min­istro de Esta­do da Aeronáu­ti­ca, é ato de exceção, de natureza exclu­si­va­mente políti­ca”. Tal entendi­men­to cor­roborou a con­cessão de anis­tia a 2.500 cabos da Aeronáu­ti­ca que tin­ham sido licen­ci­a­dos pela imple­men­tação do tem­po de serviço mil­i­tar (oito anos). Em pro­ced­i­men­to de revisão do Grupo de Tra­bal­ho Inter­min­is­te­r­i­al, insti­tuí­do pela Por­taria Inter­min­is­te­r­i­al 134/2011, con­soli­dou-se a alter­ação no entendi­men­to man­i­fes­ta­do pela Súmu­la Admin­is­tra­ti­va, con­sideran­do a por­taria como mera­mente admin­is­tra­ti­va. Entre­tan­to, as anu­lações das anis­tias políti­cas de 295 anis­ti­a­dos políti­cos, em 8 de jun­ho de 2020, real­izadas pelo Min­istério da Mul­her, da Família e dos Dire­itos Humanos, foram atos admin­is­tra­tivos genéri­cos, sem a dev­i­da moti­vação, uma vez que não foi asse­gu­ra­do, em pro­ced­i­men­to admin­is­tra­ti­vo, o dev­i­do proces­so legal e a não devolução das ver­bas já rece­bidas.

A anis­tia é dire­ito recon­heci­do pelo arti­go 8º dos Atos das Dis­posições Con­sti­tu­cionais Tran­sitórias, segun­do o qual é con­ce­di­da anis­tia aos que, no perío­do de 18 de setem­bro de 1946 até a data da pro­mul­gação da Con­sti­tu­ição, foram atingi­dos, em decor­rên­cia de moti­vação exclu­si­va­mente políti­ca, por atos de exceção, insti­tu­cionais ou com­ple­mentares, aos que foram abrangi­dos pelo Decre­to Leg­isla­ti­vo nº 18, de 15 de dezem­bro de 1961, e aos atingi­dos pelo Decre­to-Lei nº 864, de 12 de setem­bro de 1969. A anis­tia bus­ca asse­gu­rar as pro­moções, na ina­tivi­dade, ao car­go, emprego, pos­to ou grad­u­ação a que teri­am dire­ito se estivessem em serviço ati­vo, obe­de­ci­dos os pra­zos de per­manên­cia em ativi­dade pre­vis­tos pelas leis e reg­u­la­men­tos vigentes, e respeitadas as car­ac­terís­ti­cas e pecu­liari­dades das car­reiras dos servi­dores públi­cos civis e mil­itares e obser­va­dos os respec­tivos regimes jurídi­cos. Esse recon­hec­i­men­to da condição de anis­ti­a­do políti­co e as con­se­quentes reparações con­cretizam os obje­tivos da justiça de tran­sição, um con­jun­to de mecan­is­mos que incluem, den­tre out­ros, punições aos autores de crimes de vio­lação aos dire­itos humanos ocor­ri­dos, ind­eniza­ções às víti­mas e o resta­b­elec­i­men­to da ver­dade, nos proces­sos de tran­sição à democ­ra­cia de regimes políti­cos.

De acor­do com a Corte Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos, o resta­b­elec­i­men­to da ver­dade é con­sagra­do pelo dire­ito à ver­dade, que se con­cretiza no dire­ito das víti­mas e de seus famil­iares a obterem dos órgãos com­pe­tentes do Esta­do esclarec­i­men­to dos dire­itos vio­la­dos e as respon­s­abil­i­dades cor­re­spon­dentes, por meio de inves­ti­gação e jul­ga­men­to, pre­vis­tos nos arti­gos 8 e 25 da Con­venção Amer­i­cana de Dire­itos Humanos (Caso Bámaca Velásquez Vs. Guatemala). O dire­ito à ver­dade com­preende não somente a respon­s­abi­liza­ção judi­cial daque­les que come­ter­am crimes de vio­lação aos dire­itos humanos, mas tam­bém, quan­do apro­pri­a­do, a apli­cação da punição ade­qua­da aos respon­sáveis e a fix­ação de ind­eniza­ções às víti­mas pelos danos e pre­juí­zos sofri­dos (Caso Las Palmeras Vs. Colom­bia). Nesse con­tex­to, as anu­lações das anis­tias políti­cas de 295 anis­ti­a­dos políti­cos car­ac­ter­i­za mais uma vio­lação das obri­gações inter­na­cionais em matéria de defe­sa e pro­teção dos Dire­itos Humanos do Esta­do brasileiro, que sis­tem­ati­ca­mente des­cumpre decisões da Corte Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos esta­b­ele­ci­das em diver­sos jul­ga­men­tos sobre o tema.