O atual Governo federal tem-se notabilizado por não apenas abandonar as funções que lhe são exigidas pela Constituição Federal, mas sobretudo por militar contra os deveres e responsabilidades que essas funções indicam. Assim, pela abdicação de compromissos constitucionais de proteção do meio ambiente e da cultura, por exemplo.
Por esse motivo, Alfredo Attié, Presidente da Academia Paulista de Direito e Titular da Cadeira San Tiago Dantas, tem denominado o regime sob o qual temos experienciado nosso sistema jurídico-político de Regime Anticonstitucional (veja, aqui, artigo em refere tal categoria, bem como, na TV Academia, duas palestras, em que a explicita: “Síncope na Composição do Direito Constitucional Brasileiro”„ aqui; e “Sobre o Regime Anticonstitucional”, neste link).
Recentemente, a Academia Paulista de Direito, também por seu Presidente, exortou a comunidade jurídica e a sociedade brasileira a se mobilizarem para proteger a Cinemateca Brasileira.
Já pela incompreensão da natureza jurídica da organização — ignorância que se mostra extremamente grave, quando se apresenta na expressão de uma autoridade da esfera constitucional brasileira, tal a Presidência da República -, que constitui a Cinemateca, a evidência é a de indiferença pelo patrimônio cultural de nosso País. Recentemente, dando um passo a mais nessa postura antirrepublicana, o Presidente da República tentou simular a nomeação da ex-atriz Regina Duarte para a direção da instituição, ao demiti-la da função de Secretária da Cultura. Uma nomeação, do ponto de vista jurídico, inexistente, e que alçou a evidência da indiferença ao patamar de desprezo pela atividade de preservação do patrimônio cinematográfico, que é função da Cinemateca realizar, afirmou Alfredo Attié.
Segundo o Titular da Cadeira San Tiago Dantas, “o atual governo brasileiro comete um atentado atrás do outro contra o Brasil, sua natureza, sua cultura.O mais recente é a destruição da cinemateca. Primeiro, o descaso, depois, o desprezo. Por último, a extinção disfarçada de transferência para Brasília”. Para Attié, é preciso impedir que isso ocorra, mesmo em face do impasse político-jurídico em que se encontra a sociedade brasileira, no qual “o Congresso Nacional se omite, em levar avante o impeachment, mesmo diante de sérias denúncias de cometimento de vários crimes de responsabilidade, delegando ao Supremo Tribunal Federal o exercício exclusivo de um poder de controle que caberia ao parlamento ou aos partidos de oposição, o que custa muito caro à Democracia brasileira”. Para ele, tudo se passa como se a sociedade e os agentes políticos estivessem em compasso de espera, pelo resultado das eleições municipais brasileiras, e presidenciais americanas. A extinção, velada ou não, da Cinemateca Brasileira é mais uma pauta-bomba, lançada à sociedade civil e aos movimentos sociais, que necessitam mobilizar-se a todo instante, para impedir o avanço do Regime Anticonstitucional e a perda ainda maior de direitos e garantias, com o abandono das políticas públicas determinadas pela Constituição.
Desse modo, a Academia Paulista de Direito conclamou a todos e todas a uma luta pela preservação da já combalida estrutura da Cinemateca.
A história resumida do percurso do patrimônio guardado pela Cinemateca pode ser acompanhada no site oficial da instituição. A Cinemateca foi incorporando vários acervos importantes, não apenas para o estudo e a pesquisa das artes visuais, mas igualmente, para a compreensão de momentos e movimentos históricos brasileiros.
Até recentemente, a Cinemateca vinha sendo administrada pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto – Acerp (acesse, neste link, o site da Organização Social), que é uma organização social voltada à execução de projetos mais ligados à educação do que à cultura, englobando em seu contrato de gestão com o Governo federal, a preservação e acesso de acervos audiovisuais, cuja institucionalização se dava por desse contrato, firmado em 2018, ora extinto.
Dentre os deveres do Estado brasileiro em relação à associação e ao contrato estão o respeito à configuração institucional da organização e o provimento de recursos para a preservação do patrimônio. Nem é preciso dizer que a atuação do Governo aponta exatamente para o oposto do cumprimento de tais obrigações.
O patrimônio guardado pela Cinemateca é constituído por por cerca de 250 mil rolos de filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema, como fotos, roteiros, cartazes e livros, entre outros.
Os deveres referidos não têm apenas origem contratual e legal, mas encontram fundamento na Constituição Federal, mormente nos artigos 215, 216 e 216‑A.
O artigo 216 define patrimônio cultural, expressando-se do seguinte modo: “constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem s formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.”
O mesmo dispositivo constitucional aponta os deveres do Poder Público, isto é, da Administração pública, nas três esferas da federação brasileira — federal, estadual e miunicipal: promover e proteger “o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação; na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem.”
Tais deveres devem ter em conta requisitos explicitadores previstos em Lei, bem como ser executados com a colaboração da sociedade civil e das comunidades locais, inclusive por meio de incentivos, havendo, ainda, outras previsões relativas à punição pelo descumprimemto de tais obrigações, bem como pelos danos causados aos bens protegidos.
Já o artigo 215 estabelece as finalidades a serem alcançadas por meio da proteção do patrimônio cultural, bem como estabelece um Plano Nacional de Cultura, com o objetivo de sua plena realização: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais; protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais; A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à: defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro; produção, promoção e difusão de bens culturais; formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões; democratização do acesso aos bens de cultura; valorização da diversidade étnica e regional. ”
A estipulação das finalidades — que atendem à necessária expressão da diversidade cultural brasileira — e do Plano são resultado da mobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais, em tempo recente, tendo sido inseridos na Constituição por Emenda de 2005.
Finalmente, em 2012, foram inseridos, na Constituição, dispositivos relativos ao Sistema Nacional de Cultura, voltado à proteção e à expressão culturais, por meio do referido artigo 216‑A: “O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais; fundamenta-se na política nacional de cultura e nas suas diretrizes, estabelecidas no Plano Nacional de Cultura, e rege-se pelos seguintes princípios: diversidade das expressões culturais; universalização do acesso aos bens e serviços culturais; fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais; cooperação entre os entes federados, os agentes públicos e privados atuantes na área cultural; integração e interação na execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; complementaridade nos papéis dos agentes culturais; transversalidade das políticas culturais; autonomia dos entes federados e das instituições da sociedade civil; transparência e compartilhamento das informações; democratização dos processos decisórios com participação e controle social; descentralização articulada e pactuada da gestão, dos recursos e das ações; ampliação progressiva dos recursos contidos nos orçamentos públicos para a cultura.”
O Sistema é constituído por órgãos gestores, conselhos de política cultural, conferências de cultura, comissões intergestoras; planos de cultura; sistemas de financiamento à cultura; sistemas de informações e indicadores culturais; programas de formação na área da cultura; e sistemas setoriais de cultura. Lei federal deve regulamentar a atuação e a articulação de tal Sistema seja com outros sistemas setoriais seja com outras políticas públicas.
A Constituição, é claro, preserva a autonomia dos entes federativos, no que diz respeito ao estabelecimento de suas próprias políticas e seus próprios Planos.
É interessante observar, sem prejuízo, que a Constituição chama tanto os sistemas quanto as políticas impropriamente de “governamentais” (sic), quando, em realidade, devem-se chamar públicos. Entretanto, tal lapso constitucional serve a demonstrar que a Administração — o Governo — possui, em primeiro plano, responsabilidades de cujo cumprimento não pode abdicar, sob pena de cometimento, no limite, de crime de responsabilidade, pela desobediência deliberada a dever constitucional expresso.
O fato evidente, todavia, é o estado de ilicitude, pela desatenção deliberada a tais determinações constitucionais pelo Governo federal.
Reportagem recente da revista Veja São Paulo (visite, aqui), analisa o estado da Cinemateca e a falta de repasse de verbas estipuladas pelo contrato de gestão. No último dia 4 de junho, já houve protesto, tanto dos gestores, quanto de funcionários e da sociedade. Onze milhões retidos indevidamente pela desastrosa administração da cultura já comprometem o pagamento de despesas básicas. Tudo está a indicar a tentativa deliberada de se desvencilhar do patrimônio.
Afinal, no último dia 15 de julho, o Ministério Público ingressou com ação civil pública (leia a petição inicial, aqui), visando a levar o Governo a cumprir seu dever, assim protegendo a Cinemateca.
Falta, porém, uma mobilização maior da sociedade brasileira. É seu patrimônio que está em xeque, portanto a vida de seus direitos a uma sociedade justa e solidária, de que cada cidadã e cada cidadão possam se orgulhar, pela reivindicação de seu passado e pela capacidade de desenharem seu futuro.