Miguel Reale Jr, Pro­fes­sor Tit­u­lar da Uni­ver­si­dade de São Paulo e Acadêmi­co Eméri­to da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, em mais uma impor­tante con­tribuição para a com­preen­são do momen­to políti­co-jurídi­co brasileiro, rev­ela a natureza das práti­cas do gov­er­no pas­sa­do, em que despon­ta a inten­cional­i­dade condi­ciona­da pelo despre­zo à vida indí­ge­na, com a final­i­dade de come­ti­men­to do crime de genocí­dio.

O arti­go foi pub­li­ca­do, orig­i­nal­mente, no jor­nal O Esta­do de S. Paulo.

 

Genocídio

Miguel Reale Jr

O gov­er­no Bol­sonaro deixou ras­tro de destru­ição da qual a bar­bárie de 8 de janeiro é exem­p­lo. Porém, chocam ain­da mais as ima­gens do exter­mínio de cen­te­nas de cri­anças Yanomamis, rev­e­ladas pelo jor­nal Sumaú­ma, fru­to da explo­ração ile­gal de minérios nas Ter­ras Indí­ge­nas.

Con­forme Hutukara Associação Yanoma­mi, o mon­i­tora­men­to do garim­po em ter­ra indí­ge­na indi­ca que em 2.018 havia ocu­pação de 1.200 hectares (ha), que em dezem­bro de 2.021 quase trip­licara, pas­san­do a 3.272 ha.

No ano pas­sa­do foi maior a invasão por garimpeiros, cau­san­do des­mata­men­to, destruição de habi­tat, contaminação da água e dos solos. Hou­ve a disseminação de doenças infec­to­con­ta­giosas (em espe­cial a malária), a contaminação pelo metilmercúrio, a sub­nu­trição atingin­do metade da pop­u­lação Yanoma­mi, dado azo à pneu­mo­nia.

O garim­po causa ele­va­da con­cen­tração de mer­cúrio, a pon­to de cri­ança de três anos apre­sen­tar o equiv­a­lente a sete vezes o lim­ite esta­b­ele­ci­do pela OMS e o dobro do lim­ite para sur­girem efeitos adver­sos à saúde.

As comu­nidades sob domínio de garimpeiros ficaram sem pos­tos de saúde e sem remé­dios desvi­a­dos pelos inva­sores. Cri­anças indí­ge­nas mor­rem em pro­porção dez vezes maior que as não indí­ge­nas, mul­heres são estupradas, ten­do razão o Procu­rador da Repúbli­ca Alis­son Maru­gal: “a defe­sa do ter­ritório indí­ge­na é a defe­sa da vida”.

Tin­ha dúvi­da se con­figu­ra-se genocí­dio ou crime con­tra a humanidade. Ambos têm a mes­ma gravi­dade, pre­vis­tos no Estatu­to de Roma, que criou o Tri­bunal Penal Inter­na­cional.

O genocí­dio con­s­ta de nos­sa leg­is­lação des­de 1.956, car­ac­ter­i­za­do pelos atos de matar mem­bros de grupo, causar-lhes lesão grave, sub­metê-los a condições de existên­cia capazes de os destru­ir. Essas ações devem ser pre­si­di­das pela intenção de elim­i­nar, no todo ou em parte, grupo nacional, étni­co, racial ou reli­gioso. Assim está pre­vis­to tam­bém no Estatu­to de Roma. Sylvia Stein­er, ex juíza do Tri­bunal Penal Inter­na­cional (TPI), ensi­na requer­er o genocí­dio ele­men­to inten­cional especí­fi­co a pre­sidir a con­du­ta, qual seja, de o ato realizar-se, por exem­p­lo, em razão da etnia ou raça do grupo.

     O Estatu­to de Roma cria tam­bém o crime con­tra a humanidade. Este crime con­siste no ataque, gen­er­al­iza­do (com diver­sas víti­mas) e sis­temáti­co (reit­er­a­do e plane­ja­do), con­tra qual­quer pop­u­lação civ­il, por meio de homicí­dio, exter­mínio, escravidão ou atos desumanos de caráter semel­hante, que causem inten­cional­mente grande sofri­men­to, em um con­tex­to no qual haja a políti­ca de um Esta­do ou de uma orga­ni­za­ção na con­cepção e real­iza­ção desse ataque.

 Percebe-se sem per­calços um crime con­tra a humanidade, pois há o exter­mínio de parte da pop­u­lação Yanoma­mi, com assus­ta­do­ra morte de 570 cri­anças, em pro­porção dez vezes maior que a mor­tal­i­dade infan­til de não indí­ge­nas, decor­rente da ori­en­tação gov­er­na­men­tal de incen­ti­var e pro­te­ger a invasão de ter­ras dos Yanoma­mi, para explo­ração de ouro, além de desas­si­s­tir dolosa­mente estes indí­ge­nas.

No entan­to, vários fatos indicam ter ocor­ri­do genocí­dio, em vista da perseguição volta­da à etnia Yanoma­mi. Como mostra o jor­nal­ista Lira Neto, des­de homolo­ga­da a Reser­va de Ter­ra Yanoma­mi, esta pop­u­lação foi persegui­da por Bol­sonaro, que, dep­uta­do fed­er­al, propôs em 1.993 tornar sem efeito decre­to insti­tu­idor da reser­va. Em 1.995, reeleito, retornou com essa pro­pos­ta, à qual pediu regime de urgên­cia. Em 1.998, reap­re­sen­ta a pro­pos­ta e diz: “A Cav­alar­ia brasileira foi muito incom­pe­tente”. “Com­pe­tente, sim, foi a Cav­alar­ia norte-amer­i­cana, que diz­imou seus índios”.

Bol­sonaro par­al­isou a demar­cação de ter­ras indí­ge­nas e a Funai baixou a Por­taria 09/20 per­mitin­do a emis­são de títu­los de pro­priedade a inva­sores.

 Para aten­der aos empreende­dores, Bol­sonaro envi­ou pro­je­to de lei n. 191/20, per­mitin­do explo­ração de minério em ter­ras indí­ge­nas, que não cam­in­hou.  No entan­to, por via de Instrução con­jun­ta da Funai e do Iba­ma, de fevereiro de 2.021, bus­cou-se driblar a con­sti­tu­ição per­mitin­do explo­ração de minério por enti­dade for­ma­da por indí­ge­nas e não indí­ge­nas, dis­pen­sa­dos licen­ci­a­men­to ambi­en­tal e autor­iza­ção do Con­gres­so, como exige a con­sti­tu­ição.

Na pan­demia, o desca­so com os índios foi patente e desta­ca­do em pare­cer à CPI, por comis­são que coor­denei. Bol­sonaro vetou no pro­je­to de lei rel­a­ti­vo à assistên­cia aos índios, o fornec­i­men­to de água potáv­el; a dis­tribuição gra­tui­ta de mate­ri­ais de higiene; a ofer­ta emer­gen­cial de leitos hos­pi­ta­lares

Foram igno­ra­dos: dezenas de aler­tas do Min­istério Públi­co e de enti­dades acer­ca da calami­dade san­itária dos Yanoma­mi; a deter­mi­nação da Corte Inter­amer­i­cana de Dire­itos Humanos de reti­ra­da dos inva­sores; decisão do Supre­mo Tri­bunal Fed­er­al (STF) no mes­mo sen­ti­do, em voto de Rober­to Bar­roso.

 Bro­ta das con­du­tas de Bol­sonaro e de seu gov­er­no a rev­e­lação da inten­cional­i­dade coman­da­da pelo despre­zo à vida dos indí­ge­nas e em espe­cial dos Yanomamis, sub­meti­dos, por con­ta de sua condição étni­ca, a condições capazes de os destru­ir, sendo visív­el o fim especí­fi­co da figu­ra do genocí­dio, como bem sus­pei­ta o STF.