Visando a vincular participação popular e território, os professores pesquisadores Felix Sanchez, do Observatório das Metrópoles de São Paulo, e André Leirner, do Núcleo Democracia e Ação Coletiva do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento — Cebrap, ambos ativistas dos movimentos que buscam a efetivação de mecanismos de democracia ativa e participativa e mebros da Rede Nossa São Paulo, publicaram, recentemente, o artigo a seguir, no qual procuram explicitar conceitos instrumentais para propostas de realização de planejamento territorial e controle popular sobre políticas públicas.
Notas sobre Planejamento Popular de Base Territorial e Hibridismo Participativo
Felix Sanchez
Andre Leirner
Participação social por canais não eleitorais no Município de São Paulo
A constituinte de 1988 alterou a arquitetura da administração pública e municipalizou serviços variados. Foi nesse cenário que Luiza Erundina, eleita prefeita de São Paulo (1989–1992), promulgou a Lei Orgânica do Município e a organização territorial que definiu 96 Distritos Administrativos (Lei 11.220/1992).
O governo Marta Suplicy (2001–2005) avançou no marco de representação e participação popular. Aprovou a Lei nº 13.399/2002, que conferia a subprefeitura a coordenação técnica, política e administrativa de cada localidade, e algum tempo depois, a Lei nº 13.881/2004, que criaria o Conselho de Representantes das Subprefeituras em articulação com o poder executivo central. Ainda nesse governo foi realizado um amplo processo de Orçamento Participativo – OP. Apesar ter envolvido diferentes atores sociais e retomado a participação popular e social na cidade , mesmo após a criação do Conselho Municipal do Orçamento Participativo , a iniciativa não se consolidou, gerando frustrações, desgaste político e enfraquecendo as Subprefeituras. Em que pese esse esforço de descentralização, os recursos permaneceram alocados junto às secretarias, fruto da necessidade formação de coalização política para manutenção de governabilidade (GRIN, 2015).
Esse arrefecimento permitiu que os governos Serra (2005 – 2008) e Kassab (2009 — 2012) operassem um processo de “recentralização” política, administrativa e orçamentária, quadro agravado pela judicialização da Lei nº 13.881/2004, que criara Conselho de Representantes das Subprefeituras, por José Serra.
A gestão Haddad (2013–2016) teve dificuldades para alterar esse quadro. A retomada do debate sobre o Conselho de Representantes aconteceu no bojo da promulgação da Lei nº 15.764/2013. Por sua vez, o Decreto nº 54.156/2013 passou a regulamentar o Conselho Municipal Participativo. Esse decreto foi revogado pelo Decreto nº 56.208/2015, que foi novamente revogado pelo Decreto nº 59.023/2019, de Bruno Covas, alterando novamente o Conselho Participativo Municipal. No ano seguinte, 15 anos após a sua judicialização, o STF finalmente fixou a Lei 13.881/2004 como constitucional . Considerando a legalidade dos decretos de 2013, 2015 e 2019, temos regramentos normativos contraditórios regulamentando a participação, cenário de impasse politico, metodológico e normativo. Ricardo Nunes (2021–2024), herda esse quadro de Bruno Covas.
Na eleição de conselheiros municipais de 2022, menos de 1/10 das subprefeituras — somente 3 dentre 32 — elegeram o total de conselheiros, tamanho o desprestigio dessa politica. Uma possível explicação para esses resultados é a formação de uma condição de quadro politico amotivacional: percepção de que a lei pouco direciona, ou não autoriza, o indivíduo a lutar pelos seus direitos. Desincentivo alimentado pelo desmonte de capacidades para a ação politica de base, quadro esse que gera não só sentimentos de baixa representatividade frente ao Estado, mas também incertezas acerca a efetividade da participação e como romper com a imobilidade popular (ACCIAI; CAPANO, 2021; SCHNEIDER; INGRAM, 1990).
Controles democráticos não eleitorais no limiar de uma virada sistêmica
Instrumentos políticos são formas condensadas de conhecimento que produzem efeitos estruturadores da lógica de dominação das políticas publicas (LASCOUMES; LE GALES, 2007; LE GALES, 2011). Nesse quadro, a participação social é descrita como um controle democrático, que pode tomar forma de interações mediadas e não mediadas. Interações não mediadas referem-se à responsabilização vertical externa ao Estado, que consiste essencialmente no processo eleitoral (participação direta regulada pela justiça eleitoral). As interações mediadas, mais complexas, envolvem categorias heterogêneas de relacionamento e representação entre entidades da sociedade civil e entre essas e o Estado (ISUNZA; LAVALLE, 2018).
A proliferação das democracias iliberais (ZAKARIA, 1997) sugere que atuais instrumentos de expressão das interações não mediadas têm sido insuficientes para realizar o controle social do poder. Estudos mostram que o uso de instrumentos comunicativos são cruciais para reforçar ou atenuar o impacto de valores e simbologias associados a identidade de populações e comunidades, mas que não constituem elementos estruturantes de processos deliberativos (SARTORETTO, 2014, 2015). Processo em que a comunicação política incide sobre o processo deliberativo, e seus resultados, mas que não o transforma essencialmente. Nesse contexto, perguntamos, é possível pensar um processo em que a deliberação seja capaz de organizar a comunicação política?
Uma proposta de ampla comunicação política (interação mediada) só pode ser compreendida através das lentes da democracia deliberativa se adotarmos uma abordagem sistêmica, processo em que a participação aumenta as habilidades de comunicação deliberativa dos cidadãos e a identificação de populações com suas comunidades (BURKHALTER; GASTIL; KELSHAW, 2002; RICHARDS JR; GASTIL, 2015). Essa perspectiva adota como hipótese a percepção de que a deliberação é capaz de incidir sobre a comunicação política e que, ao fazê-lo, confere centralidade à natureza político-pedagógica da participação, recurso essencial para que o juízo moral seja construído no processo democrático (GASTIL; BLACK, 2007). Estamos falando de processos que a coletividade possa, a partir de uma experiência, configurar uma atuação na realidade (inteligência) e, a partir da sua revisão, ou da revisão de experiências anteriores, arbitrar possíveis ações alternativas frente ao Estado e ao bem comum (memória), redesenhando-as se necessário. Uma arquitetura participativa em que aspectos da memória social e a ação coletiva se retroalimentam ensejando relações sistêmico-responsivas entre Estado e sociedade – inteligência coletiva (WOLPERT; TUMER, 1999; WOOLLEY; GUPTA, 2024). Isso quer dizer estabelecer não só uma relação com uma soma de perspectivas individuais ( 1*n), mas organizar uma ação comunicativa dentre componentes de um grupo ( n*n).
Ao levarmos esse debate para o território é preciso considerar que a paisagem e sua memória são um contínuo, fruto de processos comunicacionais de toda ordem. Sem descartar a importância da contribuição de pensadores como Frantz Fanon e Milton Santos (MBA, 2018; SANTOS, 2007) optamos, nesse caso, por lidar com o problema de agência e representação por meio de uma associação entre um arcabouço socioespacial e uma estrutura de informação em semitrama (ALEXANDER, 1966). Esse desenho encontra correspondência na arquitetura de sistemas relacionais (CODD, 1970), o que nos permite descrever a relação entre identidades e territórios de forma objetiva, porém, complexa: uma identidade pode estar relacionada a 1 ou N territórios e 1 território pode estar relacionado a N identidades.
Nessa formulação, cada relação identidade-território adquire natureza distinta e por isso, representação singular. Isso implica em uma mediação intermediada entre sociedade e estado hibrida, construída a partir de uma multiplicidade de interesses. Isso só é possível pelo encadeamento de variados processos representativos e metodologias participativas correspondentes, organizados em torno de uma lógica de complementaridade. Essa perspectiva aponta para a perspectiva de construção de uma arquitetura participativa que concilia métricas e metodologias que hoje disputam o campo democrático como alternativas ideais, rivais entre si.
Uma consulta popular hibrida dessa natureza foi realizada no Rio Doce, Espirito Santo (LAVALLE; CARLOS, 2022). Nela, diferentes modalidades participativas foram combinadas traçando uma consequência temporal integradora no sentido da ação politica. Isso criou, por sua vez, uma motivação participativa, responsiva ao ambiente social (LAVALLE et al., 2021). Com esse pressuposto, apresentamos abaixo uma proposta de participação de base territorial.
Uma proposta hipotética para a participação de base territorial em São Paulo
Para conceber esse modelo combinamos métodos qualitativos e quantitativos (mixed method research) e três metodologias participativas: i) a consulta popular por meio de painel de opinião popular; ii) a metodologia de modelagem de programas locais por meio de OP e iii) o debate e consolidação de conteúdos por reuniões colegiadas, como em conselhos de politicas publicas.
O trabalho tem inicio com oficinas de capacitação com lideranças populares, organizações civis e técnicos de governo, criando um corpo qualificado para conduzir o processo participativo nos territórios. No caso de São Paulo, imaginamos que o lócus dessa articulação entre o território e o Estado possa ser coordenada pela subprefeitura, haja vista sua escala de mezzo de articulação (SINGER; SAGE, 2015), expressa na Lei 13.3999/2002.
A etapa subsequente envolve o levantamento de prioridades em cada bairro. Para tal, propõe-se a metodologia de painel de opinião popular, uma modalidade de escuta cidadã por participação direta cujo diferencial é a distribuição cíclica de informações dentro e dentre territórios, permitindo tanto o levantamento de problemas prioritários quanto a elaboração de soluções compartilhadas. Propõe-se, portanto, que na base do processo participativo tenhamos uma componente de relacionamento cidadão hoje inexistente no marco participativo municipal. Essa etapa vai permitir que cada bairro possa, a partir de dinâmicas participativas locais, elaborar CARTAS DE PRIORIDADES DOS BAIRROS e identificar elementos de convergência e divergência com (as cartas dos) bairros adjacentes. Nessa etapa acontece a arregimentação de capital popular, portanto.
Para ser democrático, porém, esse processo de participação precisa ser calibrado por mecanismos que garantam a equidade. Isso implica não só submeter a massa de votação à uma gestão participativa local, como também garantir o direito de deliberação por parte de parcelas identitárias e interesses setoriais (conselhos de politicas publicas). Isso pois, caso contrário, invés de fortalecer o contexto democrático, esse expediente participativo acaba por fragiliza-lo por induzir a formação de ondas de populismo majoritário.
Esse acoplamento é um ponto delicado no desenho de processos participativos e, não raro, implica em tensões sociais de toda ordem. A solução que encontramos para lidar com essas tensões foi a de criar uma paridade entre o voto popular e voto representativo. Isso é, submeter o conjunto de preferências vindas do voto popular ao crivo do voto colegiado (conselhos), crivo este que não se traduz como um direito de veto, mas em um direito de reorganização das propostas realizadas em torno agendas setoriais e identitárias.
Essa reorganização implica em realocação de até 50% dos votos realizados, na forma de uma retirada linear e proporcional de todas as rubricas, e a realocação desses votos por meio de endosso à propostas existentes, ou em novas propostas, elaboradas pelos conselhos conforme suas prioridades politicas. Isso seria feito por cada conselho, criando agenda setoriais.
No computo geral, o resultado é obtido a partir de soma simples, computo dividido pelo numero de conselhos. Desse modo, a ideia é que cada conselho tenha peso equivalente, seja do voto popular, seja dos demais conselhos. Essa etapa vai permitir que cada bairro possa elaborar AGENDAS SETORIAIS DE OBRAS, SERVIÇOS E ATENÇÕES SOCIAIS e identificar elementos de convergência e divergência com as agendas dos bairros adjacentes. Nessa etapa acontece a arregimentação de capital social, portanto.
Ciclo continuo, o passo seguinte é a adaptação da vontade expressa pelo voto popular ao novo contexto, oriundo das diretrizes expressas pelos conselhos, portanto. Isso é, submeter as Agendas Setoriais De Obras, Serviços E Atenções Sociais a um novo crivo popular, mas agora por meio de assembleias populares mediadas por expedientes participativos do tipo OP. Assembleias em que são eleitos delegados para representação territorial, identitária e setorial, reunidos em conselho, e em que as Agendas Setoriais De Obras, Serviços E Atenções Sociais sejam pensadas regionalmente, consolidando PLANOS REGIONAIS DE OBRAS, SERVIÇOS E DE ATENÇÕES SOCIAIS. O desenvolvimento dessa formulação, por sua vez, pode tanto ser feita tanto por novas oficinas de OP, como por oficinas participativas promovidos pelos próprios conselhos de politicas publicas, correspondentes a cada rubrica, algo a ser decidido território à território. Por fim, a etapa final consiste na formulação de peças legislativas e orçamentarias (plano de metas, PPA, etc), resultado da mobilização politica.
Essa proposta propõe uma retomada de um percurso histórico, iniciado nas gestões Erundina e Suplicy, que procurou integrar uma perspectiva territorial na gestão e planejamento municipal. Isso implica na revisão das atribuições do Conselho Participativo Municipal — CPM e na revisão dos artigos 34 e 35 da Lei nº 15.764/2013. Ao faze-lo, propõe a inclusão da participação direta no processo participativo municipal, oferecendo novas perspectivas para a agência popular frente à praticas de planejamento e de desenho orçamentário (LEIRNER, 2024; LEIRNER; SANCHEZ, 2023). Uma perspectiva que enquadra a participação e a descentralização no debate sobre instrumentos políticos (LASCOUMES; LE GALES, 2007) e interações mediadas (ISUNZA; LAVALLE, 2018) em resposta ao imperativo critico de se pensar o direito à cidade pela ótica democrática (HARVEY, 2015).
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