
Publicado originalmente em Pluralia, o texto a seguir é de autoria do Sociólogo italiano Francesco Sidoti, especialista em temas importantes como o da segurança internacional. Sidoti é Professor Emérito da Università degli Studi dell’Aquila., nasceu na Sicília, é também criminólogo, doutor pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, de Paris. Trabalhou com Norberto Bobbio, no Centro Studi di Scienza Politica Paolo Farneti, em Torino e foi Professor Convidado da Brookings Institution, em Washington, D.C.
Mais do que palavras e promessas, o mais importante na configuração do caráter pessoal e social é o comprometimento com ideias e ideais, e, em decorrência dessa conexão, os compromissos existenciais assumidos. Assim devem ser encaminhados os passos de uma cooperação internacional realista.
Leia a contribuição relevante a seguir:
Easter and Resurrection, Compromise and Forgiveness
Francesco Sidoti
Easter in 2025 poignantly reminds us of one important but often forgotten aspect: the common roots — monotheistic, messianic, and religious — that unite Russian and American cultures.
The idea of the Third Rome, messianic in nature, is fundamental to Russian identity, just as the idea of “City upon a Hill” is the first formulation of American exceptionalism. From the beginning, the United States has justified its quest for power with an innate messianic calling. The idea that America represents a “new Israel” is a cross-cutting motif in the sermons of the Pilgrim Fathers; the belief in the existence of “manifest destiny,” political and moral superiority can be traced from the doctrine of James Monroe (1823) to William Henry Seward’s statements made in 1860. The idea and awareness of themselves as a civilization blessed by God provided Americans with the foundation for expansion across the planet: they took California and the entire Southwest from Mexico between 1846 and 1848; drove Indians onto reservations and African Americans into labor camps; reached the shores of the Pacific Ocean and sailed across it, imposing an “open door” policy on Japan in 1864 with bombs; drove Spain out of Cuba and the Philippines. Money went along with arms: Americans bought Louisiana from France (1803), Alaska from Russia (1867), and the Virgin Islands from Denmark (1917). Only chance prevented them from taking possession of Formosa.
This is not just about the United States. “Mission civilisatrice” (Civilizing Mission) of the French, the British “White Man’s Burden,” the Portuguese “Evangelização” (Evangelization), and the world crusade of Spain – all were fueled by a theological-political vision. The West, which had stormed the world for centuries, was ideologically messianic, fiercely messianic, and it was this peculiar manner that distinguished it from the vast horde of robbers, merchants, and rival conquerors operating under other banners and on other continents.
However, to see this as mere imperial messianism is like claiming that there is only dirt in the food, which will manifest itself at the very end. To reason this way would be madness; it would be like looking at a sumptuously set table and seeing only leftovers, which certainly would also be there. The obsession with principles goes hand in hand with the obsession with garbage, according to Freud’s interpretation of purity as manifestation of latent pathology (Jenseits des Lustprinzips — Beyond the Pleasure Principle, 1920): neurotics praise whiteness, but are also compelled to introduce degradation into the external environment. Formal disgust and unconscious attraction coexist in them at the same time.
The obsession with purity and the desire to follow principles at all costs are essential traits alien to the thinking that nurtures the religious roots of both American and Russian cultures. All true Christian morality knows that “inter urinas et faeces nascimur” — life originates amidst urine and feces — and continues in the same way, carrying this sticky and gummy legacy, surrounded by parasites and commensals, stench and aromas: only inorganic matter is smooth and odorless. The connections between Easter, resurrection, understanding, and forgiveness are intimate and central to the Christian tradition when faithfully conceptualized and interpreted. Jesus’s resurrection symbolizes victory and promise. The resurrection is a sign of hope and renewal, marking a new beginning; it is the sacrifice of self, love is the understanding of neighbor. Only in this way does it become an atonement, an affirmation of the much-needed absolution that reveals to everyone the possibility of being forgiven and reconciled. Forgiveness involves understanding your neighbor, even your enemy, with their obligations and context.
At the extremes of the West, the juxtaposition of realism and idealism often takes on extreme features. Russia has also traveled a path of rivalry and coexistence between dominant religious principles and the compulsions of harsh realism in everyday political practice. In 1821, before the emergence of the Christian moralism of Leo Tolstoy and Fyodor Dostoevsky, Joseph de Maistre, in his “Les Soirées de Saint-Pétersbourg” (St. Petersburg Evenings), placed the action of the famous executioner’s apologia precisely in Russia. He believed that fear was the only remedy for the disorder. He was convinced that history was governed by Providence and that blood and suffering had theological meaning. Russia, often referred to as “holy” and “suffering,” appears to him not as a geographical reality but as a “symbolic other place,” in which everyone is invited to look into their own soul.
The depths of recognizing the material impossibility of achieving absolute justice do not necessarily hide an executioner or cynicism or submissive humility. It is all too easy to juxtapose the ideals we would like to strive for with a reality that sometimes puts principles to severe tests.
Churchill’s famous definition of democracy should be viewed through the prism of compromise and the calculation of the “lesser evil.” Reflecting on Churchill, Karl Popper articulated the distinction that Norberto Bobbio commented on most acutely: any form of human coexistence should be evaluated not by the number of its flaws and unfulfilled promises, but by considering alternatives.
Compromises are necessary — both in theory and in practice. Avishai Margalit, another eminent realist thinker, has devoted his study to compromise, tracing its occurrences and themes from the time of Hammurabi and the Old Testament; his conclusion is crystal clear: “We should be judged more by the compromises we make than by the ideals we are inspired by. Ideals may tell us something important about who we would like to be, but it is the compromises that reveal who we really are.”
Easter 2025 reminds us: that there will be no peace, no Resurrection without compromise, without understanding and forgiveness.
Páscoa e Ressurreição, Compromisso e Perdão
Francesco Sidoti
Tradução (Alfredo Attié)
A Páscoa de 2025 nos lembra de forma pungente um aspecto importante, mas frequentemente esquecido: as raízes comuns – monoteísta, messiânica e religiosa – que unem as culturas russa e americana.
A ideia da Terceira Roma, de natureza messiânica, é fundamental para a identidade russa, assim como a ideia de “Cidade sobre a Colina” é a primeira formulação do excepcionalismo americano. Desde o início, os Estados Unidos justificaram sua busca por poder com uma vocação messiânica inata. A ideia de que a América representa um “novo Israel” é um tema transversal nos sermões dos Pais Peregrinos; a crença na existência de um “destino manifesto” e de superioridade política e moral pode ser rastreada desde a doutrina de James Monroe (1823) até as declarações de William Henry Seward em 1860. A ideia e a consciência de si mesmos como uma civilização abençoada por Deus forneceram aos americanos a base para a expansão pelo planeta: eles tomaram a Califórnia e todo o Sudoeste do México entre 1846 e 1848; empurraram indígenas para reservas e afro-americanos para campos de trabalho forçado; alcançaram as costas do Oceano Pacífico e atravessaram-no navegando, impondo uma política de “portas abertas” ao Japão em 1864 com bombas; expulsaram a Espanha de Cuba e das Filipinas. O dinheiro andava junto com as armas: os americanos compraram a Louisiana da França (1803), o Alasca da Rússia (1867) e as Ilhas Virgens da Dinamarca (1917). Só o acaso os impediu de tomar posse de Formosa.
Não se trata apenas dos Estados Unidos. A “Mission civilisatrice” (Missão Civilizadora) dos franceses, o “Fardo do Homem Branco” britânico, a “Evangelização” portuguesa, a cruzada mundial da Espanha – tudo isso foi alimentado por uma visão teológico-política. O Ocidente, que havia invadido o mundo por séculos, era ideologicamente messiânico, ferozmente messiânico, e era essa maneira peculiar que o distinguia da vasta horda de ladrões, mercadores e conquistadores rivais que operavam sob outras bandeiras e em outros continentes.
Contudo, ver isso como mero messianismo imperial é como afirmar que há apenas sujeira na comida, que se manifestará no final. Raciocinar dessa forma seria loucura; seria como olhar para uma mesa suntuosamente posta e ver apenas sobras, que certamente também estariam lá. A obsessão por princípios anda de mãos dadas com a obsessão pelo lixo, segundo a interpretação freudiana da pureza como manifestação de uma patologia latente (Jenseits des Lustprinzips – Além do Princípio do Prazer, 1920): os neuróticos elogiam a branquitude, mas também são compelidos a introduzir degradação no ambiente externo. Neles coexistem simultaneamente a repulsa formal e a atração inconsciente.
A obsessão pela pureza e o desejo de seguir princípios a todo custo são traços essenciais alheios ao pensamento que nutre as raízes religiosas das culturas americana e russa. Toda verdadeira moral cristã sabe que “inter urinas et faeces nascimur” – a vida se origina em meio à urina e às fezes – e continua da mesma forma, carregando esse legado pegajoso e viscoso, cercado por parasitas e comensais, fedor e aromas: somente a matéria inorgânica é lisa e inodora. As conexões entre Páscoa, ressurreição, compreensão e perdão são íntimas e centrais para a tradição cristã quando fielmente conceituadas e interpretadas. A ressurreição de Jesus simboliza vitória e promessa. A ressurreição é um sinal de esperança e renovação, marcando um novo começo; é o sacrifício de si mesmo, o amor é a compreensão do próximo. Somente assim se torna uma expiação, uma afirmação da tão necessária absolvição que revela a todos a possibilidade de serem perdoados e reconciliados. O perdão envolve compreender o próximo, mesmo o inimigo, com suas obrigações e contexto.
Nos extremos do Ocidente, a justaposição de realismo e idealismo frequentemente assume características extremas. A Rússia também percorreu um caminho de rivalidade e coexistência entre os princípios religiosos dominantes e as compulsões do realismo severo na prática política cotidiana. Em 1821, antes do surgimento do moralismo cristão de Leon Tolstói e Fiódor Dostoiévski, Joseph de Maistre, em suas “Les Soirées de Saint-Pétersbourg” (Noites de São Petersburgo), situou a ação da famosa apologia do carrasco precisamente na Rússia, pois acreditava que o medo era o único remédio para a desordem. Ele estava convencido de que a história era governada pela Providência e que sangue e sofrimento tinham significado teológico. A Rússia, frequentemente chamada de “santa” e “sofredora”, lhe parecia não uma realidade geográfica, mas um “outro lugar simbólico”, no qual cada um é convidado a olhar para dentro de sua própria alma.
A profundidade do reconhecimento da impossibilidade material de alcançar a justiça absoluta não esconde necessariamente um carrasco, cinismo ou humildade submissa. É muito fácil justapor os ideais pelos quais gostaríamos de lutar a uma realidade que, por vezes, submete os princípios a testes severos.
A famosa definição de democracia de Churchill deve ser vista pelo prisma do compromisso e do cálculo do “mal menor”. Refletindo sobre Churchill, Karl Popper articulou a distinção que Norberto Bobbio comentou com maior perspicácia: qualquer forma de coexistência humana deve ser avaliada não pelo número de suas falhas e promessas não cumpridas, mas pela consideração de alternativas.
Compromissos são necessários – tanto na teoria quanto na prática. Avishai Margalit, outro eminente pensador realista, dedicou seu estudo ao compromisso, traçando suas ocorrências e temas desde a época de Hamurabi e o Antigo Testamento; Sua conclusão é cristalina: “Deveríamos ser julgados mais pelos compromissos que fazemos do que pelos ideais que nos inspiram. Os ideais podem nos dizer algo importante sobre quem gostaríamos de ser, mas são os compromissos que revelam quem realmente somos.” A Páscoa de 2025 nos lembra: não haverá paz, nem Ressurreição sem compromisso, sem compreensão e perdão.
________________________________________________________________________________________A imagem das mãos entrelaçadas é de Candido Portinari, estando disponível no Projeto Google de Arte e Cultura, na rubrica Guerra e Paz, conjunto de painéis pintado pelo artista brasileiro, exibido no Palácio das Nações Unidas, em Nova York, Estados Unidos.