Descumprimento de decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos: incidente em execução da sentença, no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) versus Brasil
O Centro Internacional de Direitos Humanos de São Paulo, vinculado à Cadeira Santiago Dantas, da Academia Paulista de Direito, por seu Núcleo 4 — Justiça de Transição, Coordenadora, Pesquisadores e Pesquisadoras vem apresentar o seguinte informe e a seguinte manifestação:
Em 4 de maio de 2020, o Presidente da República Federativa do Brasil, Jair Bolsonaro, recebeu em seu escritório, na sede do Poder Executivo, Sebastião Curió Rodrigues de Moura, coronel da reserva do exército brasileiro que, de acordo com o informe final da Comissão Nacional da Verdade (CNV)[1], esteve no comando de operações em que guerrilheiros do Araguaia foram capturados, conduzidos a centros clandestinos de tortura, executados e desapareceram. Em 2012, Major Curió, conhecido pelo codinome “Dr. Lucchini”, foi denunciado pela primeira vez pelo Ministério Público Federal (MPF) por ter supostamente promovido, em 1974, a privação permanente de liberdade de cinco pessoas. Depois disso, foi acusado em outras cincos denúncias oferecidas pelo MPF relacionadas a crimes perpetrados no contexto da Guerrilha do Araguaia. Em depoimento registrado no livro “Mata! O major Curió e as guerrilhas do Araguaia”[2], o coronel admite ter participado da morte de Lúcia Maria de Souza e das prisões de Dinalva Oliveira Teixeira e Luiza Augusta Galirppe. Assume, ainda, ter participado da execução de 41 militantes de esquerda. Entrementes, não bastasse a ida do Major Curió ao Palácio do Planalto, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) utilizou suas contas oficiais no Twitter e Instagram para homenagear o convidado em publicações que o retratam como “Herói do Brasil”.
Diante desses fatos, o Instituto Vladimir Herzog, o Núcleo de Preservação da Memória Política e parlamentares integrantes do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) encaminharam representação à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em que denunciam graves descumprimentos e retrocessos em relação à sentença proferida pela Corte IDH no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, o primeiro a ser examinado pela Corte relacionado a graves violações aos direitos humanos perpetradas durante o regime militar.
O caso “Gomes Lund e outros vs. Brasil” apreciou demanda referente à responsabilidade do Estado em ações de detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas e execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva, militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e camponeses na região limítrofe dos estados do Pará, Maranhão e Goiás, às margens do rio Araguaia, entre 1972 e 1975[3]. Nesta região, o PCdoB tinha dado início em 1967 a atividades de preparação de uma guerrilha rural, conhecida mais tarde como Guerrilha do Araguaia, para lutar contra o regime militar. Vinculado ao Centro de Informações do Exército (CIE), Curió teria participado do comando de operações para eliminar o foco revolucionário. De acordo com informações da Comissão Nacional da Verdade, Curió esteve no comando da Casa Azul, centro de tortura localizado na cidade de Marabá (PA).[4]
Os familiares das vítimas moveram, em 1982, ação na justiça para esclarecer as circunstâncias da morte e a localização dos restos mortais dos militantes desaparecidos. Diante da demora em obter uma decisão judicial, o Centro de Estudos para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e Human Rights Watch/América (HRWA)[5] denunciaram, em 1995, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), violação do direito à verdade dos familiares e da sociedade, visto que o Estado brasileiro não havia procurado conhecer o paradeiro dos combatentes nem identificar os responsáveis das violações praticadas. Em 2008, a CIDH emitiu um conjunto de recomendações ao Estado brasileiro que, no entanto, não apresentou informações sobre o seu cumprimento.
Em março de 2009, o caso foi submetido à jurisdição da Corte IDH que, em sua sentença, proferida em 24 de novembro de 2010, considerou incompatível a aplicação da Lei de Anistia[6] com a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992. De acordo com o entendimento da Corte, o desaparecimento forçado é uma violação de caráter continuado, que se inicia com “a privação da liberdade da pessoa e a subsequente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade”.[7] A Corte IDH responsabilizou o Brasil pelo desaparecimento de 62 combatentes no marco de operações militares, executadas entre 1972 e 1975, para erradicar a Guerrilha do Araguaia. Consignou, ainda, a obrigação do Estado brasileiro de realizar todos os esforços para conhecer o paradeiro das vítimas e, se for o caso, realizar a identificação e entrega dos restos mortais a seus familiares, bem como apurar judicialmente responsabilidades individuais e tipificar o delito de desaparecimento forçado, além de outras medidas reparatórias. A decisão da Corte segue submetida à supervisão quanto ao seu cumprimento por parte do Estado brasileiro, o que ainda não ocorreu em sua integralidade.
É nesse contexto que foi apresentada perante a Corte representação que sustenta descumprimento da sentença por parte do Estado brasileiro no caso “Gomes Lund e outros vs. Brasil” e, com base no artigo 69 do Regulamento da Corte, foram requeridas urgentes medidas no sentido de convocar o Estado brasileiro e os representantes das vítimas para uma audiência de supervisão de cumprimento das decisões proferidas no referido caso, com o objetivo de que seja determinada uma nova resolução de supervisão de cumprimento de sentença por parte da Corte.
As ações do atual governo brasileiro em relação a Curió desacreditam e desafiam, segundo os representantes, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos e representam um retrocesso nos pontos resolutivos estabelecidos na sentença. Isso porque o Estado Brasileiro, além de não apurar de forma eficaz a responsabilidade do Major nos crimes perpetrados durante o combate à Guerrilha do Araguaia, decidiu homenageá-lo. Além disso, a conduta do Planalto parece ir de encontro aos direitos à memória, verdade, justiça e reparação. Por essas razões, os requerentes solicitaram medidas urgentes à Corte com vistas a garantir a autoridade da sua sentença.
Em 15 de maio de 2020, a Secretaria da Corte Interamericana de Direitos Humanos noticiou o recebimento da representação e, com base no disposto no artigo 44.3 do Regulamento da Corte e seguindo as instruções do seu Presidente, acolheu o documento como amici curiae e o submeteu à apreciação das partes e da CIDH. O caso “Gomes Lund e outros vs. Brasil” já estava submetido à etapa de supervisão, em que foram constatados descumprimentos da sentença, como, por exemplo, em relação à investigação penal, na jurisdição ordinária, dos casos em que há esclarecimento definitivo e à punição dos responsáveis pelos fatos. Como consequência dessa nova denúncia de descumprimento da sentença, poderá haver nova incidência de responsabilização internacional do Estado brasileiro, agora por não cumprir de boa-fé as decisões do órgão interamericano.
O Centro Internacional de Direitos Humanos de São Paulo — CIDHSP/APD continua a acompanhar o procedimento e voltará, em breve, a se manifestar.
Maria Antonieta Mendizábal
Coordenadora do Núcleo 4 do CIDHSP/APD
André Ricardo dos Santos Lopes
Eduardo Vigorito Drigo
Fabrizio Conte Jacobucci
Fernanda Cláudia Araújo da Silva
Guilherme Vitor de Gonzaga Camilo
Helena Zani Morgado
João Cesário Neto
Luís Eduardo Alves de Loiola
Luiz Eduardo Camargo Outeiro Hernandes
Pesquisadores da Academia Paulista de Direito
Alfredo Attié
Diretor do CIDHSP/APD
Titular da Cadeira San Tiago Dantas
Presidente da Academia Paulista de Direito
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Notas:
[1] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório, v. I. Brasília: CNV, 2014. Capítulo 16. Disponível em:
<http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/Capitulo%2016.pdf>.
[2] Nossa, Leonencio. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
[3] CORTE Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia). Sentencia de 24 de novembro de 2010. Serie C, n.º 219.
[4] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório, v. I. Brasília: CNV, 2014.
[5] CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Petição 11.552. Relatório n.º 33/01. Brasil, Guerrilha do Araguaia, 6 de março de 2001. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org> Acesso em: 30 jun. 2017, § 1.
[6] Lei nº 6.683, sancionada em agosto de 1979, cujo texto impede a investigação, julgamento e sanção de responsáveis por violações aos direitos humanos.
[7] Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010, parágrafo 103, p. 38.