O Jor­nal do Notário, em sua edição de Setembro/Outubro de 2019 (ano XXI, n. 193, traz, em suas pági­nas 20 a 22, entre­vista com Alfre­do Attié, Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito.

O Jor­nal é impor­tante veícu­lo de comu­ni­cação do Colé­gio Notar­i­al do Brasil, volta­do aos profis­sion­ais dos serviços notari­ais e reg­is­trais brasileiros, bem como a juízes, advo­ga­dos, estu­dantes e demais juris­tas, trazen­do infor­mações téc­ni­cas e cul­tur­ais não ape­nas do dire­ito, mas de out­ras áreas do con­hec­i­men­to.

Alfre­do Attié fala de sua for­mação e do con­tex­to em que se deu, bem como da importân­cia da edu­cação, em ger­al, e do ensi­no jurídi­co, sug­erindo mudanças e aper­feiçoa­men­to, além de ações conc­re­tas a serem empreen­di­das pela Acad­e­mia, pelas uni­ver­si­dades e pelos órgãos edu­ca­cionais das várias profis­sões do dire­ito. Dis­cute as mudanças da família e do dire­ito. Ao tratar da neces­si­dade de pen­sa­men­to e de movi­men­tos de ino­vação, referindo aspec­tos da rev­olução tec­nológ­i­ca, Attié ressalta a neces­si­dade de val­orizar o humano.

 

A seguir, leia a ínte­gra das respostas de Alfre­do Attié aos jor­nal­is­tas do impor­tante per­iódi­co nacional.

 

 

 

 

 

 

 

Jor­nal do Notário —  O sen­hor pode­ria traçar o seu breve históri­co profis­sion­al?

Alfre­do Attié:  “Muito emb­o­ra seja brasileiro de São Paulo, vivi boa parte de min­ha vida via­jan­do, sem­pre para tra­bal­har e estu­dar, pou­cas vezes para passear. Na ver­dade, pen­sar em min­has raízes é bem difí­cil, sendo, talvez, mais cor­re­to diz­er de um proces­so de for­mação, ver­dadeiro sig­nifi­ca­do dis­so que comu­mente se chama de cur­rícu­lo. O ter­mo “cur­ricu­lum” é mod­er­no, aparece no final do sécu­lo XVI, e diz respeito a um pro­ced­er em cer­to sen­ti­do, cer­ta direção. Na Antigu­idade, dizia-se “cur­sus hon­o­rum”, ou sequên­cia de ofí­cios, de funções públi­cas, numa ascen­são em bus­ca de destaque, prestí­gio, recon­hec­i­men­to e poder. A mes­ma ideia tam­bém esteve pre­sente em out­ros con­tex­tos históri­cos e cul­tur­ais, de modo ger­al, em todas as sociedades políti­cas que neces­si­tavam de uma buro­c­ra­cia para mane­jar a vida públi­ca, lidar com os assun­tos dessa vida. Buro­c­ra­cia é um ter­mo webe­ri­ano, e diz respeito a um con­jun­to de pes­soas voca­cionadas, que desen­volvem ativi­dades, em uma estru­tu­ra ou sis­tema jurídi­co-racional, por­tan­to, segun­do regras que dirigem ativi­dades e com­por­ta­men­tos, e sub­meti­das ao princí­pio da autori­dade.  Buro­c­ra­cia tam­bém pode ser enten­di­da do pon­to de vista pejo­ra­ti­vo, como retrata­do no filme “Brazil”, de Ter­ry Gilliam, que é uma adap­tação inteligente do famoso livro “1984”, de George Orwell. O escritor britâni­co imag­i­nou uma sociedade de abso­lu­to con­t­role buro­cráti­co, de com­por­ta­men­to, expressão e pen­sa­men­to. Con­t­role buro­cráti­co pre­cisa­mente porque a autori­dade é exer­ci­da por fun­cionários da estru­tu­ra estatal, segun­do a con­fig­u­ração iden­ti­fi­ca­da por Max Weber. O cineas­ta norte-amer­i­cano, porém, perce­beu que nen­hu­ma estru­tu­ra é per­fei­ta, pelo que os erros de um regime autoritário que se dese­ja pron­to e acaba­do abrem espaço para uma comé­dia, muito emb­o­ra de cur­so trági­co. As pes­soas não se enquadram no sis­tema, as máquinas ten­dem a ser defeitu­osas, e a humanidade sofre, em meio à con­strução de utopias e distopias, de crenças e descrenças. Começo dizen­do isso porque pen­so que as trans­for­mações a que ven­ho assistin­do e de que ven­ho par­tic­i­pan­do, no cur­so de min­ha for­mação, apon­tam algu­mas mudanças, às quais é necessário prestar uma atenção críti­ca e autocríti­ca. Min­ha for­mação foi sól­i­da no que diz respeito ao que se chama­va, em nos­sa tradição con­ti­nen­tal-europeia e ibéri­ca, e ain­da se chama, na tradição ingle­sa e norte-amer­i­cana, de artes lib­erais, a que podemos reser­var o nome de humanidades. Estudei em boas esco­las, já numa época de despre­zo pelo ensi­no públi­co e gra­tu­ito — que sem­pre foi a boa mar­ca de edu­cação, no Brasil — durante o proces­so inter­na­cional da Guer­ra Fria, perío­do som­brio que se sucedeu aos Grandes Con­fli­tos Mundi­ais, coin­ci­dente com os esforços da comu­nidade inter­na­cional para cri­ar um sis­tema garan­ti­dor da paz inter­na­cional, cuja prin­ci­pal insti­tu­ição foi a Orga­ni­za­ção das Nações Unidas. A Guer­ra Fria se nota­bi­liza­va por uma oposição rad­i­cal entre Oci­dente e Ori­ente, regimes cap­i­tal­is­tas cen­trais e per­iféri­cos, e regimes comu­nistas cen­trais e per­iféri­cos. Como todo o rad­i­cal­is­mo, cul­tivou estereóti­pos, exageros, incom­preen­sões, ódios, e sobre­tu­do cen­sura ou vedações autoritárias de aces­so a infor­mação e a pro­duções cul­tur­ais, especi­fi­ca­mente às que bus­cav­am com­preen­der as difer­enças e semel­hanças entre os regimes, e realizar a críti­ca de suas reais con­fig­u­rações e exper­iên­cias. Bus­car e pro­duzir infor­mação mais pre­cisa, séria e críti­ca era vis­to como trans­gressão. Con­tu­do, como nen­hum sis­tema de repressão é per­feito, isso, ain­da bem, era pos­sív­el, e aju­dou muito no proces­so que se seguiu, na con­strução de um ideário real­mente democráti­co, em que o fim das guer­ras inter­na­cionais pode­ria coin­cidir com a bus­ca efe­ti­va de real­iza­ção da paz, da justiça, da sol­i­dariedade. No Brasil, assim como em out­ros País­es, o reflexo e a expressão da Guer­ra Fria foi a ditadu­ra civ­il-mil­i­tar, que se esta­b­ele­ceu pelo golpe de 1964 e per­durou até a pro­mul­gação da Con­sti­tu­ição de 1988. Essa Con­sti­tu­ição traçou inter­es­santes pro­gra­mas para nos­so País, sobre­tu­do aque­les ref­er­entes à efe­ti­vação democráti­ca e à con­strução da igual­dade e da sol­i­dariedade por meio de políti­cas públi­cas de esta­bi­liza­ção econômi­ca e redução da pobreza, aces­so aos bens e aos serviços públi­cos. Nesse proces­so, que com­ple­tou 30 anos em 1988, a sociedade civ­il for­t­ale­ceu-se, pas­sou a se recon­hecer e a bus­car expressão, por meio de cole­tivos e movi­men­tos soci­ais, mes­mo reivin­di­cou o apri­mora­men­to insti­tu­cional. Min­ha for­mação se deu nesse con­tex­to. Estudei História e Dire­ito na Uni­ver­si­dade de São Paulo, fiz estu­dos e pesquisas no exte­ri­or, onde obtive meu Mas­ter em Dire­ito Com­para­do. Na mes­ma USP, tornei-me Mestre em Dire­ito e Doutor em Filosofia. Lecionei em várias esco­las, assim como pro­feri palestras no Brasil e no exte­ri­or, tam­bém em orga­ni­za­ções inter­na­cionais. Escrevi e publiquei livros e arti­gos, den­tre os quais “A Recon­strução do Dire­ito” (Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003), e “Mon­tesquieu” (Lis­boa: Chi­a­do, 2018). Desen­hei um per­cur­so literário que parte da cat­e­go­ria da “Alteri­dade”, talvez a mais anti­ga e impor­tante das cat­e­go­rias da filosofia, e que renasceu, na pas­sagem do sécu­lo XIX para o sécu­lo XX, percorrendo‑o inte­gral­mente, na con­sti­tu­ição de ciên­cias novas de pon­ta, e na reelab­o­ração de vel­has ciên­cias, a par­tir de pon­tos de vista mais ousa­dos. Por exem­p­lo, a antropologia/etnologia e a psi­canálise, assim como a filosofia da existên­cia, e a nova história. Empreguei essas ciên­cias para, jun­ta­mente com a críti­ca literária, desen­har um novo modo críti­co e con­stru­ti­vo de faz­er dire­ito, na teo­ria e na práti­ca. Na teo­ria, estão aí os meus tex­tos e as min­has aulas e palestras, para serem exam­i­na­dos. Num dos mais recentes, por exem­p­lo, “Trans­for­mações do Humano” (Revista Visão Jurídi­ca, número 138), dis­cu­ti a importân­cia da diver­si­dade e de sua expressão, na recon­fig­u­ração da sociedade políti­ca e do dire­ito. Em out­ro, “Poder da Ausên­cia” (em “Von­tade Pop­u­lar e Democ­ra­cia”, 2018), demon­strei a neces­si­dade de repen­sar a teo­ria dos poderes e a con­sti­tu­ição de seu con­t­role. Num ter­ceiro, “Gov­er­nance of Nat­ur­al Resources, Sus­tain­able Devel­op­ment, Imple­men­ta­tionof Laws and Con­flict Res­o­lu­tion” (Dire­ito e Justiça, VI, 2018), demon­strei a cor­re­lação entre Dire­ito Inter­na­cional Ambi­en­tal, Desen­volvi­men­to Sus­ten­táv­el e o modo como são com­preen­di­dos os con­fli­tos e se bus­ca resolvê-los. Ain­da, em “Walk­ing Democ­ra­cy, or Eman­ci­pat­ing Inter­na­tion­al Law” (Revista Forense, 425), apre­sen­tei um pro­gra­ma de redi­re­ciona­men­to de práti­cas e pesquisas em dire­ito inter­na­cional e com­para­do, que per­mi­ta a con­strução da democ­ra­cia. Em “Dire­ito e Econo­mia em con­fli­to na Reg­u­lação das Relações de Con­sumo” (em “Teses Jurídi­cas dos Tri­bunais Supe­ri­ores”, Dire­ito Civ­il, II, RT), mostrei como os mod­os de apli­cação e inter­pre­tação do dire­ito estão condi­ciona­dos por uma aprox­i­mação entre dire­ito e econo­mia, e a com­preen­são do con­tex­to em que essa relação se dá. Já na práti­ca, a par de meu tra­bal­ho na judi­catu­ra, no qual imple­mentei diver­sos mod­os de res­olução de con­fli­tos e de admin­is­tração da justiça, com a par­tic­i­pação da sociedade, e méto­dos novos de admin­is­trar o serviço forense e os con­fli­tos, com inten­sos resul­ta­dos em ter­mos de alta solução de casos, rapi­dez na prestação juris­di­cional, aceitação de decisões e exe­cução de jul­ga­dos, enga­ja­men­to de fun­cionários e da sociedade, de que resul­tou alta pro­du­tivi­dade, min­ha ini­cia­ti­va de cri­ar novas insti­tu­ições na sociedade civ­il e de par­tic­i­par de ini­cia­ti­vas nacionais e inter­na­cionais, bem como de órgãos gov­er­na­men­tais, quase-gov­er­na­men­tais, soci­etais e inter­na­cionais, resul­taram em gan­hos práti­cos para a justiça. Assim, para dar tam­bém ape­nas alguns exem­p­los, na cri­ação do “Insti­tu­to de Estu­dos do Vale do Tietê”, que tan­ta importân­cia vem ten­do na luta pela despoluição do Tietê e na dis­cussão sobre a revi­tal­iza­ção de seu Vale e da cul­tura e ambi­ente dos Rios paulis­tas e brasileiros, na cri­ação do “Setor de Asses­so­ria e Ori­en­tação Jurídi­ca e Social”, até hoje pio­neiro num novo modo de com­preen­der e solu­cionar cole­ti­va­mente con­fli­tos; na cri­ação da “Câmara Brasileira de Medi­ação e Arbi­tragem”, e em méto­dos de for­mação de jul­gadores, con­cil­i­adores, medi­adores, árbi­tros, que se desen­volveu des­de 1990; na cri­ação de órgãos region­ais de solução de con­fli­tos; na par­tic­i­pação deci­si­va nos con­fli­tos rel­a­tivos a recur­sos hídri­cos, sobre­tu­do como Mem­bro rep­re­sen­tante da Sociedade Civ­il no Comitê de Bacia Hidro­grá­fi­ca do Médio Tietê, e nos debates do Con­sel­ho de Recur­sos Hídri­cos e nas Comis­sões de Meio Ambi­ente e de Recur­sos Hídri­cos estad­u­ais; no Ban­co Mundi­al, na ONU; na Esco­la Paulista da Mag­i­s­tratu­ra, e assim por diante. Mais recen­te­mente, assu­mi a Presidên­cia da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, onde ven­ho bus­can­do imple­men­tar, com êxi­to, graças ao apoio de todos os Acadêmi­cos, um pro­gra­ma ino­vador, já com a “Poli­fo­nia: Revista Inter­na­cional da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito”, indo para seu quar­to número, a real­iza­ção de even­tos nacionais e inter­na­cionais, como o “I Con­gres­so Inter­na­cional da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, de 2018”, a par­tic­i­pação em debates impor­tantes para o dire­ito e para a sociedade con­tem­porâ­neos, e, sobre­tu­do, a cri­ação e os tra­bal­hos dos Cen­tros, Insti­tu­tos, Núcleos e Gru­pos de Pesquisa da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, que, a exem­p­lo do Cen­tro Inter­na­cional de Dire­itos Humanos e do Cen­tro Inter­na­cional da Paz, Sol­i­dariedade, Justiça e Trans­for­mação de Con­fli­tos, ambos vin­cu­la­dos à Cadeira San Tia­go Dan­tas, de que sou Tit­u­lar, con­ta com a par­tic­i­pação entu­si­as­ma­da de jovens pesquisadores e pesquisado­ras, no desen­volvi­men­to de temas de inter­esse da sociedade e no tra­bal­ho jun­to com a sociedade. No iní­cio de min­ha car­reira, além de ter leciona­do na USP e na UNESP, fui advo­ga­do e Procu­rador do Esta­do de São Paulo. Na Mag­i­s­tratu­ra, tra­bal­hei em várias Comar­cas do Inte­ri­or e na Cap­i­tal de São Paulo, em Varas, Tri­bunais do Júri, Juiza­dos de Peque­nas Causas, Juiza­dos Espe­ci­ais de Crimes de Pequeno Poten­cial Ofen­si­vo, Juiza­dos Espe­ci­ais Cíveis, e no Tri­bunal de Justiça, ten­do sido Dire­tor dos Juiza­dos Espe­ci­ais de Salto e de Jacareí, Dire­tor-Adjun­to dos Juiza­dos de Itu e de San­tana, além de Pres­i­dente dos Colé­gios Recur­sais de Jacareí e de San­to Amaro, ain­da, Dire­tor do CEDES de Itu e Região da Esco­la Paulista da Mag­i­s­tratu­ra, e Juiz Eleitoral. Fui Cor­rege­dor de vários Cartórios extra­ju­di­ci­ais, ativi­dade que me ren­deu muito apren­diza­do, muitas relações amis­tosas e agradáveis. Todos ess­es anos me troux­er­am muito tra­bal­ho, de que resul­taram muitas real­iza­ções e relações humanas con­stru­ti­vas. São alguns dos pas­sos de min­ha for­mação, em anos de políti­ca, de econo­mia difí­ceis, e de grandes trans­for­mações no Mun­do. Se pudesse escol­her entre todas essas ativi­dades, que exer­ci com mui­ta seriedade e muito gos­to, procu­ran­do sem­pre soluções cria­ti­vas e mod­os democráti­cos de imple­men­tá-las, em diál­o­go per­ma­nente com as pes­soas e a sociedade, eu diria que con­tin­uo a me sen­tir estu­dante, em leituras de livros e tex­tos que sem­pre me atraem, e escritor de temas que me envolvem e me desafi­am, ouvinte aten­to das músi­cas do mun­do, e músi­co amador dos instru­men­tos cuja arte pude apren­der, começan­do pelo piano, a com­preen­der muito cedo as par­ti­turas e as pos­si­bil­i­dades de cada tecla, espec­ta­dor do teatro e do cin­e­ma, e ator amador, enfim, alguém que exper­i­men­ta apren­der, pesquis­ar e ensi­nar, na filosofia, na políti­ca, na teo­ria do dire­ito, na justiça, na arte, nos esportes, na cor­ri­da, no dire­ito inter­na­cional e ambi­en­tal, na arte e na ciên­cia de jul­gar e con­cil­iar. Mas é sobre­tu­do na pater­nidade que me real­i­zo ple­na­mente, no diál­o­go con­stante com Fran­cis­co e Thomas, que me inspi­ram e ensi­nam com bril­ho e entu­si­as­mo, e na leitu­ra da arte e da ciên­cia que pro­duzem, mes­mo nas brin­cadeiras e aven­turas de que par­tic­i­pam.”

 

JN — Qual a opinião do sen­hor sobre o incre­men­to à pro­dução cien­tí­fi­ca na área do extra­ju­di­cial?

Alfre­do Attié: “O Brasil é um País car­ente de edu­cação. Existe uma aparente uni­ver­sal­iza­ção da edu­cação bási­ca, pois 3% de jovens em idade esco­lar não estão matric­u­la­dos em esco­las. A par dis­so, ape­nas 76% dos estu­dantes que ingres­sam no ciclo bási­co con­cluem o Ensi­no Médio, a maior parte deles já com dezen­ove anos de idade (64%). Ain­da, o índice de apren­diza­gem ade­qua­da em matemáti­ca (ape­nas 21% dess­es jovens) e por­tuguês (tão somente 39,5%) é alar­mante. É bom lem­brar que apren­diza­gem ade­qua­da não sig­nifi­ca capaci­dade avança­da no mane­jo dos con­hec­i­men­tos, mas é mais grave saber que todo o inves­ti­men­to pes­soal e mate­r­i­al em edu­cação resul­ta em um grande déficit na con­strução da cidada­nia e na con­sti­tu­ição de um ambi­ente de incen­ti­vo ao desen­volvi­men­to edu­ca­cional e cul­tur­al de nos­so povo. Com os prob­le­mas enfrenta­dos pelo sis­tema de ensi­no, não se tem uma ideia níti­da do número daque­les que não fre­quen­tam efe­ti­va­mente os cur­sos, pois as defi­ciên­cias são enormes, evi­den­ci­adas pelo resul­ta­do pouco alen­ta­dor, em números abso­lu­tos e em com­para­ção com out­ros País­es.  Segun­do o Sis­tema de Avali­ação da Edu­cação Bási­ca ain­da é muito alto o número de estu­dantes que obtêm notas cor­re­spon­dentes ao nív­el mais baixo da escala de profi­ciên­cia, rev­e­lando inca­paci­dade de com­preen­são de tex­tos de média com­plex­i­dade e de faz­er cál­cu­los sim­ples. A análise dess­es números se com­pli­ca, se adi­cion­ar­mos um ingre­di­ente tradi­cional da real­i­dade brasileira: a desigual­dade. Quan­to menor o Nív­el Socioe­conômi­co, menos esco­lar­i­dade, piores resul­ta­dos. A desigual­dade tam­bém é ter­ri­to­r­i­al (ambi­ente urbano e rur­al, cen­tro-per­ife­rias) e étni­ca. O número de uni­ver­sitários tam­bém é pequeno, se com­para­do a out­ros País­es. O desem­pen­ho dess­es que estão nas Uni­ver­si­dades tam­bém é muito desigual, na maior parte inad­e­qua­do, seja em relação às expec­ta­ti­vas soci­ais, seja em relação ao que dev­e­ria rep­re­sen­tar a mis­são das Insti­tu­ições de Ensi­no Supe­ri­or. Os inves­ti­men­tos na vida esco­lar, cal­cu­la­dos para cada estu­dante demon­stram que o Brasil está muito abaixo da média dos demais País­es, que pos­suem, assim, resul­ta­dos mel­hores, por exem­p­lo, no Pro­gra­ma Inter­na­cional de Avali­ação de Estu­dantes (PISA). Não há, por­tan­to, a demon­stração de inter­esse claro gov­er­na­men­tal na solução séria do prob­le­ma, muito menos se obser­va na sociedade a pre­sença de uma cul­tura edu­ca­cional efe­ti­va. Digo isso para salien­tar a importân­cia de ini­cia­ti­vas voltadas a incen­ti­var e a ele­var o inter­esse na edu­cação, seja o ensi­no, seja a pesquisa. Incre­men­tar a pro­dução cien­tí­fi­ca em uma deter­mi­na­da área sig­nifi­ca inve­stir ener­gia e recur­sos pes­soais e mate­ri­ais para preparar para jovens e profis­sion­ais ambi­ente, espaços e equipa­men­tos que per­mi­tam o desen­volvi­men­to do inter­esse, da vocação, das leituras, pesquisas, do ensi­no nes­sa área. O aumen­to do inter­esse na área do dire­ito notar­i­al, o cresci­men­to do número e da qual­i­dade de mono­grafias, teses, pub­li­cações é notório e decorre do impor­tante tra­bal­ho que vem sendo real­iza­do pelos tit­u­lares dos serviços notari­ais, que têm bus­ca­do con­stru­ir uma impor­tante comu­nidade cien­tí­fi­ca em torno do tema, uma ver­dadeira reflexão para o apri­mora­men­to das ativi­dades e da qual­i­dade dos serviços, bem como em sua ampli­ação, sob o sig­no da segu­rança e da qual­i­dade. A Revista de Dire­ito Notar­i­al, nesse sen­ti­do, é um veícu­lo impor­tante. Por out­ro lado, creio que, des­de que, no cam­po do aper­feiçoa­men­to insti­tu­cional, implan­taram-se os con­cur­sos na área extra­ju­di­cial, esse inter­esse cresceu. Mas me per­mi­to ousar uma sug­estão, que, em ver­dade, dirige-se ao dire­ito e a sua práti­ca em ger­al. O inves­ti­men­to em recur­sos pes­soais e mate­ri­ais no dire­ito não se pode restringir à difusão de cursin­hos preparatórios, por mais que sejam, em vários casos, úteis como meio de indi­cação para estu­dos de can­didatos – pois o alcance de um bom resul­ta­do é sem­pre dev­i­do ao esforço pes­soal de for­mação, ali­a­do à existên­cia de condições de vida e de ensi­no apro­pri­adas, no cur­so de toda a fase esco­lar, em espe­cial durante a série uni­ver­sitária, que per­mi­tam a ded­i­cação às leituras e ao apren­diza­do práti­co. O inves­ti­men­to maior, por­tan­to, deve estar em dar suporte para que a for­mação seja cada vez mel­hor, qual­i­fi­ca­da. A sug­estão que faço, por­tan­to, seria:

  1. o con­jun­to do extra­ju­di­cial pode­ria aju­dar seja na mel­ho­ra do ensi­no médio, seja naque­le uni­ver­sitário téc­ni­co, aux­il­ian­do na imple­men­tação de estru­turas para­le­las e con­ju­gadas ao sis­tema de ensi­no, sobre­tu­do públi­co, para abrir cam­in­hos para jovens brasileiros. Mel­ho­ran­do resul­ta­dos, em matérias fun­da­men­tais, e preparan­do mate­r­i­al, cur­sos, para que os jovens se inter­essem por novas áreas de con­hec­i­men­to e profis­sion­ais. Isso poderá resul­tar, em futuro próx­i­mo, no avanço do próprio uni­ver­so jurídi­co, em ger­al, e extra­ju­di­cial, em espe­cial;
  2. A for­mação de Núcleo de Pesquisa em assun­tos ati­nentes ao Dire­ito Notar­i­al, para incre­men­to, em nív­el de excelên­cia, dos estu­dos notari­ais.

Gostaria que a Acad­e­mia Paulista de Dire­ito, que presi­do, pudesse tra­bal­har em con­jun­to com o extra­ju­di­cial nesse sen­ti­do, numa parce­ria que envolvesse ensi­no bási­co e espe­cial­iza­do, pesquisas e pub­li­cações.”

 

JN —  Hoje, diver­sas insti­tu­ições de renome como a PUC, a Uni­ver­si­dade Pres­bi­te­ri­ana Macken­zie, a Damá­sio Edu­ca­cional, a EPM, entre out­ras, já ofer­e­cem cur­sos de exten­são uni­ver­sitária em Dire­ito Notar­i­al. Como enx­er­ga atual­mente a disponi­bil­i­dade de cur­sos e pro­dução acadêmi­ca volta­da à ativi­dade extra­ju­di­cial?

Alfre­do Attié: “Essa ofer­ta é impor­tante. Pesquisa e ensi­no con­ju­ga­dos, sendo a disponi­bil­i­dade de cur­sos tam­bém rel­e­vante. O incen­ti­vo aos jovens, na bus­ca de novos per­cur­sos acadêmi­cos e profis­sion­ais. Val­ori­zo sobre­tu­do todo inves­ti­men­to que for feito na super­ação das defi­ciên­cias, dos prob­le­mas de qual­i­dade, na for­mação bási­ca brasileira, igual­mente no ensi­no jurídi­co, e no com­bate à desigual­dade. Pen­so que é pre­ciso aliar ensi­no, pesquisa e exten­são à sociedade. Tornar acessíveis os serviços, as infor­mações e a for­mação. O inter­esse no dire­ito notar­i­al, bem como em out­ros cam­pos que igual­mente têm assum­i­do a pon­ta no desen­volvi­men­to da teo­ria e da práti­ca do dire­ito, pode servir de ânco­ra para uma ren­o­vação inteligente da edu­cação jurídi­ca. O Brasil merece a cri­ação e a difusão de uma cul­tura edu­ca­cional per­ma­nente, sus­ten­táv­el.”

 

JN — Neste ano, a Lei n° 11.441/2007, que pos­si­bil­i­tou a real­iza­ção de inven­tários, par­til­has e divór­cios pelos cartórios de notas, com­ple­tou 12 anos. Na opinião do sen­hor, qual tem sido a importân­cia da lavratu­ra de tais doc­u­men­tos em para­le­lo ao tra­bal­ho desen­volvi­do pelo Judi­ciário? O sen­hor é favoráv­el à ampli­ação da com­petên­cia dos notários para novas atribuições?

Alfre­do Attié: “Ten­ho defen­di­do que o poder judi­cial (o poder de jul­gar, de resolver, medi­ar, arbi­trar, con­cil­iar e trans­for­mar con­fli­tos) per­tence não ao Esta­do, mas à sociedade. Quer diz­er, é um poder soci­etal e não pro­pri­a­mente estatal. Por isso, sou favoráv­el a ini­cia­ti­vas sérias e inteligentes, cria­ti­vas, de sis­temas de solução de con­fli­tos difer­entes do tradi­cional estatal, exer­ci­do pelo Poder Judi­ciário. Con­ce­bi sis­temas e estru­turas tan­to para a solução de con­fli­tos em ger­al, quan­to para áreas especí­fi­cas, jurídi­cas, econômi­cas, soci­ais. Ajudei na implan­tação e na cri­ação e difusão do sis­tema de ADR (alter­na­tive dis­pute res­o­lu­tion), no Brasil, espe­cial­mente a arbi­tragem, a medi­ação e a con­cil­i­ação. Tem sido, há muito tem­po meu tra­bal­ho, no Brasil e no exte­ri­or, em agên­cias inter­na­cionais. Recen­te­mente, na Acad­e­mia Paulista de Dire­ito criei Cen­tro Inter­na­cional volta­do para o tema. O envolvi­men­to da estru­tu­ra e do sis­tema notar­i­al nesse proces­so é muito impor­tante. Uma parce­ria entre a Acad­e­mia e esse sis­tema será muito bem vin­da. Além dis­so, a pos­si­bil­i­dade de solver questões rel­a­ti­vas à chama­da juris­dição vol­un­tária e a prob­le­mas mais de ordem da admin­is­tração tam­bém é extrema­mente bem vin­da. Não se tra­ta de pen­sar em cartórios ou no judi­ciário, mas na sociedade, no inter­esse do povo. O poder de jul­gar per­tence a ele. Facil­i­tar, tornar a prestação de justiça (social, sem dúvi­da) célere, efe­ti­va, cada vez mais apro­pri­a­da, é um serviço de val­or ines­timáv­el, sobre­tu­do em nos­so País, em que as injustiças são tão fre­quentes, e o desca­so em sua cor­reção, desan­i­mador. Recen­te­mente, falei e escrevi sobre “Políti­cas Públi­cas para a solução de con­fli­tos, ou Políti­cas Públi­cas de Justiça”.  É pre­ciso romper obstácu­los e bus­car novos par­a­dig­mas. Isso é jog­ar para a efe­ti­vação de um ver­dadeiro Esta­do Democráti­co de Dire­ito. É tra­bal­har para a con­se­cução dos dire­itos e garan­tias pre­vis­tos em nos­sa Con­sti­tu­ição e nos Trata­dos e Con­venções Inter­na­cionais, pelos dire­itos humanos, pela democ­ra­cia.”

 

JN — Como o sen­hor enx­er­ga a ata notar­i­al no proces­so judi­cial?

Alfre­do Attié: “É mais um instru­men­to que traz segu­rança à prestação juris­di­cional. Meio de pro­va pre­vis­to no arti­go 384 do Códi­go de Proces­so Civ­il, encon­tra seu fun­da­men­to na própria con­cepção con­sti­tu­cional dos serviços notari­ais. Numa época em que as relações e os meios de comu­ni­cação se tor­nam tão flu­i­dos, é impor­tante que haja mar­cos ou pon­tos seguros, para garan­tir a própria con­vivên­cia humana, inde­pen­den­te­mente dos con­fli­tos.”

 

JN — Con­sideran­do o Dire­ito Civ­il atu­al, como o sen­hor avalia a evolução do Dire­ito de Família den­tro dos novos mod­e­los de família exis­tentes e o papel do extra­ju­di­cial para a for­mal­iza­ção da von­tade das partes?

Alfre­do Attié: “Num dos arti­gos que referi, na respos­ta à primeira questão, “Trans­for­mações do Humano”, dis­cu­to a questão da diver­si­dade e o dire­ito à sua expressão. A sociedade mudou, o humano mudou. No âmbito dos dire­itos humanos, não ape­nas os dire­itos e deveres cor­re­latos se ampli­aram, mas igual­mente a con­cepção do humano sofreu trans­for­mações impor­tantes. A sociedade e cada um de nós pre­cisamos da difer­ença. Ape­nas a iden­ti­dade não bas­ta. Há uma inter­de­pendên­cia entre igual­dade e difer­ença. Os rela­ciona­men­tos mudam e é uma car­ac­terís­ti­ca da humanidade, do hom­inídeo, o proces­so de trans­for­mação con­stante, a adap­tação, a evolução. A família con­tin­ua a ser impor­tante, como ambi­ente e relação de acol­hi­men­to, de edu­cação. Os seres humanos depen­dem dessa relação famil­iar para a sua con­sti­tu­ição. Mas o que ven­ha a ser família tam­bém é um cur­so de alter­ações. A história da vida famil­iar não é out­ra coisa senão a nar­ra­ti­va dessas alter­ações. Os mod­e­los mudam, as pes­soas se mod­i­fi­cam, as famílias pas­sam a obe­de­cer a novos com­por­ta­men­tos, novos padrões de con­vivên­cia. Pre­cisamos deixar de lado pre­con­ceitos de toda ordem, além da análise fria da ciên­cia e da filosofia. Deve­mos cam­in­har para os espaços reais de coex­istên­cia, obser­var os espaços soci­ais. Acol­her tais mudanças e expandir instru­men­tos para que se real­izem com dig­nidade, recon­hec­i­men­to, respeito, impedin­do atos de desre­speito, intol­erân­cia, exclusão e opressão. A autono­mia pri­va­da, assim como o dese­jo das partes devem con­tin­uar a ser pres­ti­gia­dos. O foro extra­ju­di­cial pode e deve desem­pen­har um papel essen­cial nes­sa con­se­cução da evolução cri­ado­ra dos dire­itos.”

 

JN — Para o sen­hor, qual é o maior desafio para o futuro do notari­a­do?

Alfre­do Attié: “Adap­tar-se à trans­for­mação do humano, da sociedade. Aju­dar na escol­ha dos mel­hores cam­in­hos para o futuro, na adap­tação e na mel­hor escol­ha das novas tec­nolo­gias. Tornar acessíveis seus serviços, aux­il­iar na super­ação das desigual­dades, tornar o dire­ito autên­ti­co, próx­i­mo do dese­jo do povo, segun­do os princí­pios do Esta­do de Dire­ito e da Democ­ra­cia, con­ser­var e expandir os dire­itos humanos e tornar efe­ti­va a real­iza­ção dos deveres estatais. Con­tin­uar a cuidar da segu­rança, no sen­ti­do democráti­co: segu­rança da sociedade. Tornar-se cada vez mais uma instân­cia segu­ra para a garan­tia das relações humanas. O humano não pode ser sub­sti­tuí­do pelas máquinas. Quan­to mais diál­o­go hou­ver, maior a aprox­i­mação e o respeito entre as pes­soas, mais a sociedade gan­hará. O notari­a­do deve estar ao alcance do humano.”

 

A entre­vista, como pub­li­ca­da, pode ser lida no site do Jor­nal, aqui.