O Jornal do Notário, em sua edição de Setembro/Outubro de 2019 (ano XXI, n. 193, traz, em suas páginas 20 a 22, entrevista com Alfredo Attié, Presidente da Academia Paulista de Direito.
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Alfredo Attié fala de sua formação e do contexto em que se deu, bem como da importância da educação, em geral, e do ensino jurídico, sugerindo mudanças e aperfeiçoamento, além de ações concretas a serem empreendidas pela Academia, pelas universidades e pelos órgãos educacionais das várias profissões do direito. Discute as mudanças da família e do direito. Ao tratar da necessidade de pensamento e de movimentos de inovação, referindo aspectos da revolução tecnológica, Attié ressalta a necessidade de valorizar o humano.
A seguir, leia a íntegra das respostas de Alfredo Attié aos jornalistas do importante periódico nacional.
Jornal do Notário — O senhor poderia traçar o seu breve histórico profissional?
Alfredo Attié: “Muito embora seja brasileiro de São Paulo, vivi boa parte de minha vida viajando, sempre para trabalhar e estudar, poucas vezes para passear. Na verdade, pensar em minhas raízes é bem difícil, sendo, talvez, mais correto dizer de um processo de formação, verdadeiro significado disso que comumente se chama de currículo. O termo “curriculum” é moderno, aparece no final do século XVI, e diz respeito a um proceder em certo sentido, certa direção. Na Antiguidade, dizia-se “cursus honorum”, ou sequência de ofícios, de funções públicas, numa ascensão em busca de destaque, prestígio, reconhecimento e poder. A mesma ideia também esteve presente em outros contextos históricos e culturais, de modo geral, em todas as sociedades políticas que necessitavam de uma burocracia para manejar a vida pública, lidar com os assuntos dessa vida. Burocracia é um termo weberiano, e diz respeito a um conjunto de pessoas vocacionadas, que desenvolvem atividades, em uma estrutura ou sistema jurídico-racional, portanto, segundo regras que dirigem atividades e comportamentos, e submetidas ao princípio da autoridade. Burocracia também pode ser entendida do ponto de vista pejorativo, como retratado no filme “Brazil”, de Terry Gilliam, que é uma adaptação inteligente do famoso livro “1984”, de George Orwell. O escritor britânico imaginou uma sociedade de absoluto controle burocrático, de comportamento, expressão e pensamento. Controle burocrático precisamente porque a autoridade é exercida por funcionários da estrutura estatal, segundo a configuração identificada por Max Weber. O cineasta norte-americano, porém, percebeu que nenhuma estrutura é perfeita, pelo que os erros de um regime autoritário que se deseja pronto e acabado abrem espaço para uma comédia, muito embora de curso trágico. As pessoas não se enquadram no sistema, as máquinas tendem a ser defeituosas, e a humanidade sofre, em meio à construção de utopias e distopias, de crenças e descrenças. Começo dizendo isso porque penso que as transformações a que venho assistindo e de que venho participando, no curso de minha formação, apontam algumas mudanças, às quais é necessário prestar uma atenção crítica e autocrítica. Minha formação foi sólida no que diz respeito ao que se chamava, em nossa tradição continental-europeia e ibérica, e ainda se chama, na tradição inglesa e norte-americana, de artes liberais, a que podemos reservar o nome de humanidades. Estudei em boas escolas, já numa época de desprezo pelo ensino público e gratuito — que sempre foi a boa marca de educação, no Brasil — durante o processo internacional da Guerra Fria, período sombrio que se sucedeu aos Grandes Conflitos Mundiais, coincidente com os esforços da comunidade internacional para criar um sistema garantidor da paz internacional, cuja principal instituição foi a Organização das Nações Unidas. A Guerra Fria se notabilizava por uma oposição radical entre Ocidente e Oriente, regimes capitalistas centrais e periféricos, e regimes comunistas centrais e periféricos. Como todo o radicalismo, cultivou estereótipos, exageros, incompreensões, ódios, e sobretudo censura ou vedações autoritárias de acesso a informação e a produções culturais, especificamente às que buscavam compreender as diferenças e semelhanças entre os regimes, e realizar a crítica de suas reais configurações e experiências. Buscar e produzir informação mais precisa, séria e crítica era visto como transgressão. Contudo, como nenhum sistema de repressão é perfeito, isso, ainda bem, era possível, e ajudou muito no processo que se seguiu, na construção de um ideário realmente democrático, em que o fim das guerras internacionais poderia coincidir com a busca efetiva de realização da paz, da justiça, da solidariedade. No Brasil, assim como em outros Países, o reflexo e a expressão da Guerra Fria foi a ditadura civil-militar, que se estabeleceu pelo golpe de 1964 e perdurou até a promulgação da Constituição de 1988. Essa Constituição traçou interessantes programas para nosso País, sobretudo aqueles referentes à efetivação democrática e à construção da igualdade e da solidariedade por meio de políticas públicas de estabilização econômica e redução da pobreza, acesso aos bens e aos serviços públicos. Nesse processo, que completou 30 anos em 1988, a sociedade civil fortaleceu-se, passou a se reconhecer e a buscar expressão, por meio de coletivos e movimentos sociais, mesmo reivindicou o aprimoramento institucional. Minha formação se deu nesse contexto. Estudei História e Direito na Universidade de São Paulo, fiz estudos e pesquisas no exterior, onde obtive meu Master em Direito Comparado. Na mesma USP, tornei-me Mestre em Direito e Doutor em Filosofia. Lecionei em várias escolas, assim como proferi palestras no Brasil e no exterior, também em organizações internacionais. Escrevi e publiquei livros e artigos, dentre os quais “A Reconstrução do Direito” (Porto Alegre: Fabris, 2003), e “Montesquieu” (Lisboa: Chiado, 2018). Desenhei um percurso literário que parte da categoria da “Alteridade”, talvez a mais antiga e importante das categorias da filosofia, e que renasceu, na passagem do século XIX para o século XX, percorrendo‑o integralmente, na constituição de ciências novas de ponta, e na reelaboração de velhas ciências, a partir de pontos de vista mais ousados. Por exemplo, a antropologia/etnologia e a psicanálise, assim como a filosofia da existência, e a nova história. Empreguei essas ciências para, juntamente com a crítica literária, desenhar um novo modo crítico e construtivo de fazer direito, na teoria e na prática. Na teoria, estão aí os meus textos e as minhas aulas e palestras, para serem examinados. Num dos mais recentes, por exemplo, “Transformações do Humano” (Revista Visão Jurídica, número 138), discuti a importância da diversidade e de sua expressão, na reconfiguração da sociedade política e do direito. Em outro, “Poder da Ausência” (em “Vontade Popular e Democracia”, 2018), demonstrei a necessidade de repensar a teoria dos poderes e a constituição de seu controle. Num terceiro, “Governance of Natural Resources, Sustainable Development, Implementationof Laws and Conflict Resolution” (Direito e Justiça, VI, 2018), demonstrei a correlação entre Direito Internacional Ambiental, Desenvolvimento Sustentável e o modo como são compreendidos os conflitos e se busca resolvê-los. Ainda, em “Walking Democracy, or Emancipating International Law” (Revista Forense, 425), apresentei um programa de redirecionamento de práticas e pesquisas em direito internacional e comparado, que permita a construção da democracia. Em “Direito e Economia em conflito na Regulação das Relações de Consumo” (em “Teses Jurídicas dos Tribunais Superiores”, Direito Civil, II, RT), mostrei como os modos de aplicação e interpretação do direito estão condicionados por uma aproximação entre direito e economia, e a compreensão do contexto em que essa relação se dá. Já na prática, a par de meu trabalho na judicatura, no qual implementei diversos modos de resolução de conflitos e de administração da justiça, com a participação da sociedade, e métodos novos de administrar o serviço forense e os conflitos, com intensos resultados em termos de alta solução de casos, rapidez na prestação jurisdicional, aceitação de decisões e execução de julgados, engajamento de funcionários e da sociedade, de que resultou alta produtividade, minha iniciativa de criar novas instituições na sociedade civil e de participar de iniciativas nacionais e internacionais, bem como de órgãos governamentais, quase-governamentais, societais e internacionais, resultaram em ganhos práticos para a justiça. Assim, para dar também apenas alguns exemplos, na criação do “Instituto de Estudos do Vale do Tietê”, que tanta importância vem tendo na luta pela despoluição do Tietê e na discussão sobre a revitalização de seu Vale e da cultura e ambiente dos Rios paulistas e brasileiros, na criação do “Setor de Assessoria e Orientação Jurídica e Social”, até hoje pioneiro num novo modo de compreender e solucionar coletivamente conflitos; na criação da “Câmara Brasileira de Mediação e Arbitragem”, e em métodos de formação de julgadores, conciliadores, mediadores, árbitros, que se desenvolveu desde 1990; na criação de órgãos regionais de solução de conflitos; na participação decisiva nos conflitos relativos a recursos hídricos, sobretudo como Membro representante da Sociedade Civil no Comitê de Bacia Hidrográfica do Médio Tietê, e nos debates do Conselho de Recursos Hídricos e nas Comissões de Meio Ambiente e de Recursos Hídricos estaduais; no Banco Mundial, na ONU; na Escola Paulista da Magistratura, e assim por diante. Mais recentemente, assumi a Presidência da Academia Paulista de Direito, onde venho buscando implementar, com êxito, graças ao apoio de todos os Acadêmicos, um programa inovador, já com a “Polifonia: Revista Internacional da Academia Paulista de Direito”, indo para seu quarto número, a realização de eventos nacionais e internacionais, como o “I Congresso Internacional da Academia Paulista de Direito, de 2018”, a participação em debates importantes para o direito e para a sociedade contemporâneos, e, sobretudo, a criação e os trabalhos dos Centros, Institutos, Núcleos e Grupos de Pesquisa da Academia Paulista de Direito, que, a exemplo do Centro Internacional de Direitos Humanos e do Centro Internacional da Paz, Solidariedade, Justiça e Transformação de Conflitos, ambos vinculados à Cadeira San Tiago Dantas, de que sou Titular, conta com a participação entusiasmada de jovens pesquisadores e pesquisadoras, no desenvolvimento de temas de interesse da sociedade e no trabalho junto com a sociedade. No início de minha carreira, além de ter lecionado na USP e na UNESP, fui advogado e Procurador do Estado de São Paulo. Na Magistratura, trabalhei em várias Comarcas do Interior e na Capital de São Paulo, em Varas, Tribunais do Júri, Juizados de Pequenas Causas, Juizados Especiais de Crimes de Pequeno Potencial Ofensivo, Juizados Especiais Cíveis, e no Tribunal de Justiça, tendo sido Diretor dos Juizados Especiais de Salto e de Jacareí, Diretor-Adjunto dos Juizados de Itu e de Santana, além de Presidente dos Colégios Recursais de Jacareí e de Santo Amaro, ainda, Diretor do CEDES de Itu e Região da Escola Paulista da Magistratura, e Juiz Eleitoral. Fui Corregedor de vários Cartórios extrajudiciais, atividade que me rendeu muito aprendizado, muitas relações amistosas e agradáveis. Todos esses anos me trouxeram muito trabalho, de que resultaram muitas realizações e relações humanas construtivas. São alguns dos passos de minha formação, em anos de política, de economia difíceis, e de grandes transformações no Mundo. Se pudesse escolher entre todas essas atividades, que exerci com muita seriedade e muito gosto, procurando sempre soluções criativas e modos democráticos de implementá-las, em diálogo permanente com as pessoas e a sociedade, eu diria que continuo a me sentir estudante, em leituras de livros e textos que sempre me atraem, e escritor de temas que me envolvem e me desafiam, ouvinte atento das músicas do mundo, e músico amador dos instrumentos cuja arte pude aprender, começando pelo piano, a compreender muito cedo as partituras e as possibilidades de cada tecla, espectador do teatro e do cinema, e ator amador, enfim, alguém que experimenta aprender, pesquisar e ensinar, na filosofia, na política, na teoria do direito, na justiça, na arte, nos esportes, na corrida, no direito internacional e ambiental, na arte e na ciência de julgar e conciliar. Mas é sobretudo na paternidade que me realizo plenamente, no diálogo constante com Francisco e Thomas, que me inspiram e ensinam com brilho e entusiasmo, e na leitura da arte e da ciência que produzem, mesmo nas brincadeiras e aventuras de que participam.”
JN — Qual a opinião do senhor sobre o incremento à produção científica na área do extrajudicial?
Alfredo Attié: “O Brasil é um País carente de educação. Existe uma aparente universalização da educação básica, pois 3% de jovens em idade escolar não estão matriculados em escolas. A par disso, apenas 76% dos estudantes que ingressam no ciclo básico concluem o Ensino Médio, a maior parte deles já com dezenove anos de idade (64%). Ainda, o índice de aprendizagem adequada em matemática (apenas 21% desses jovens) e português (tão somente 39,5%) é alarmante. É bom lembrar que aprendizagem adequada não significa capacidade avançada no manejo dos conhecimentos, mas é mais grave saber que todo o investimento pessoal e material em educação resulta em um grande déficit na construção da cidadania e na constituição de um ambiente de incentivo ao desenvolvimento educacional e cultural de nosso povo. Com os problemas enfrentados pelo sistema de ensino, não se tem uma ideia nítida do número daqueles que não frequentam efetivamente os cursos, pois as deficiências são enormes, evidenciadas pelo resultado pouco alentador, em números absolutos e em comparação com outros Países. Segundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica ainda é muito alto o número de estudantes que obtêm notas correspondentes ao nível mais baixo da escala de proficiência, revelando incapacidade de compreensão de textos de média complexidade e de fazer cálculos simples. A análise desses números se complica, se adicionarmos um ingrediente tradicional da realidade brasileira: a desigualdade. Quanto menor o Nível Socioeconômico, menos escolaridade, piores resultados. A desigualdade também é territorial (ambiente urbano e rural, centro-periferias) e étnica. O número de universitários também é pequeno, se comparado a outros Países. O desempenho desses que estão nas Universidades também é muito desigual, na maior parte inadequado, seja em relação às expectativas sociais, seja em relação ao que deveria representar a missão das Instituições de Ensino Superior. Os investimentos na vida escolar, calculados para cada estudante demonstram que o Brasil está muito abaixo da média dos demais Países, que possuem, assim, resultados melhores, por exemplo, no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Não há, portanto, a demonstração de interesse claro governamental na solução séria do problema, muito menos se observa na sociedade a presença de uma cultura educacional efetiva. Digo isso para salientar a importância de iniciativas voltadas a incentivar e a elevar o interesse na educação, seja o ensino, seja a pesquisa. Incrementar a produção científica em uma determinada área significa investir energia e recursos pessoais e materiais para preparar para jovens e profissionais ambiente, espaços e equipamentos que permitam o desenvolvimento do interesse, da vocação, das leituras, pesquisas, do ensino nessa área. O aumento do interesse na área do direito notarial, o crescimento do número e da qualidade de monografias, teses, publicações é notório e decorre do importante trabalho que vem sendo realizado pelos titulares dos serviços notariais, que têm buscado construir uma importante comunidade científica em torno do tema, uma verdadeira reflexão para o aprimoramento das atividades e da qualidade dos serviços, bem como em sua ampliação, sob o signo da segurança e da qualidade. A Revista de Direito Notarial, nesse sentido, é um veículo importante. Por outro lado, creio que, desde que, no campo do aperfeiçoamento institucional, implantaram-se os concursos na área extrajudicial, esse interesse cresceu. Mas me permito ousar uma sugestão, que, em verdade, dirige-se ao direito e a sua prática em geral. O investimento em recursos pessoais e materiais no direito não se pode restringir à difusão de cursinhos preparatórios, por mais que sejam, em vários casos, úteis como meio de indicação para estudos de candidatos – pois o alcance de um bom resultado é sempre devido ao esforço pessoal de formação, aliado à existência de condições de vida e de ensino apropriadas, no curso de toda a fase escolar, em especial durante a série universitária, que permitam a dedicação às leituras e ao aprendizado prático. O investimento maior, portanto, deve estar em dar suporte para que a formação seja cada vez melhor, qualificada. A sugestão que faço, portanto, seria:
- o conjunto do extrajudicial poderia ajudar seja na melhora do ensino médio, seja naquele universitário técnico, auxiliando na implementação de estruturas paralelas e conjugadas ao sistema de ensino, sobretudo público, para abrir caminhos para jovens brasileiros. Melhorando resultados, em matérias fundamentais, e preparando material, cursos, para que os jovens se interessem por novas áreas de conhecimento e profissionais. Isso poderá resultar, em futuro próximo, no avanço do próprio universo jurídico, em geral, e extrajudicial, em especial;
- A formação de Núcleo de Pesquisa em assuntos atinentes ao Direito Notarial, para incremento, em nível de excelência, dos estudos notariais.
Gostaria que a Academia Paulista de Direito, que presido, pudesse trabalhar em conjunto com o extrajudicial nesse sentido, numa parceria que envolvesse ensino básico e especializado, pesquisas e publicações.”
JN — Hoje, diversas instituições de renome como a PUC, a Universidade Presbiteriana Mackenzie, a Damásio Educacional, a EPM, entre outras, já oferecem cursos de extensão universitária em Direito Notarial. Como enxerga atualmente a disponibilidade de cursos e produção acadêmica voltada à atividade extrajudicial?
Alfredo Attié: “Essa oferta é importante. Pesquisa e ensino conjugados, sendo a disponibilidade de cursos também relevante. O incentivo aos jovens, na busca de novos percursos acadêmicos e profissionais. Valorizo sobretudo todo investimento que for feito na superação das deficiências, dos problemas de qualidade, na formação básica brasileira, igualmente no ensino jurídico, e no combate à desigualdade. Penso que é preciso aliar ensino, pesquisa e extensão à sociedade. Tornar acessíveis os serviços, as informações e a formação. O interesse no direito notarial, bem como em outros campos que igualmente têm assumido a ponta no desenvolvimento da teoria e da prática do direito, pode servir de âncora para uma renovação inteligente da educação jurídica. O Brasil merece a criação e a difusão de uma cultura educacional permanente, sustentável.”
JN — Neste ano, a Lei n° 11.441/2007, que possibilitou a realização de inventários, partilhas e divórcios pelos cartórios de notas, completou 12 anos. Na opinião do senhor, qual tem sido a importância da lavratura de tais documentos em paralelo ao trabalho desenvolvido pelo Judiciário? O senhor é favorável à ampliação da competência dos notários para novas atribuições?
Alfredo Attié: “Tenho defendido que o poder judicial (o poder de julgar, de resolver, mediar, arbitrar, conciliar e transformar conflitos) pertence não ao Estado, mas à sociedade. Quer dizer, é um poder societal e não propriamente estatal. Por isso, sou favorável a iniciativas sérias e inteligentes, criativas, de sistemas de solução de conflitos diferentes do tradicional estatal, exercido pelo Poder Judiciário. Concebi sistemas e estruturas tanto para a solução de conflitos em geral, quanto para áreas específicas, jurídicas, econômicas, sociais. Ajudei na implantação e na criação e difusão do sistema de ADR (alternative dispute resolution), no Brasil, especialmente a arbitragem, a mediação e a conciliação. Tem sido, há muito tempo meu trabalho, no Brasil e no exterior, em agências internacionais. Recentemente, na Academia Paulista de Direito criei Centro Internacional voltado para o tema. O envolvimento da estrutura e do sistema notarial nesse processo é muito importante. Uma parceria entre a Academia e esse sistema será muito bem vinda. Além disso, a possibilidade de solver questões relativas à chamada jurisdição voluntária e a problemas mais de ordem da administração também é extremamente bem vinda. Não se trata de pensar em cartórios ou no judiciário, mas na sociedade, no interesse do povo. O poder de julgar pertence a ele. Facilitar, tornar a prestação de justiça (social, sem dúvida) célere, efetiva, cada vez mais apropriada, é um serviço de valor inestimável, sobretudo em nosso País, em que as injustiças são tão frequentes, e o descaso em sua correção, desanimador. Recentemente, falei e escrevi sobre “Políticas Públicas para a solução de conflitos, ou Políticas Públicas de Justiça”. É preciso romper obstáculos e buscar novos paradigmas. Isso é jogar para a efetivação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. É trabalhar para a consecução dos direitos e garantias previstos em nossa Constituição e nos Tratados e Convenções Internacionais, pelos direitos humanos, pela democracia.”
JN — Como o senhor enxerga a ata notarial no processo judicial?
Alfredo Attié: “É mais um instrumento que traz segurança à prestação jurisdicional. Meio de prova previsto no artigo 384 do Código de Processo Civil, encontra seu fundamento na própria concepção constitucional dos serviços notariais. Numa época em que as relações e os meios de comunicação se tornam tão fluidos, é importante que haja marcos ou pontos seguros, para garantir a própria convivência humana, independentemente dos conflitos.”
JN — Considerando o Direito Civil atual, como o senhor avalia a evolução do Direito de Família dentro dos novos modelos de família existentes e o papel do extrajudicial para a formalização da vontade das partes?
Alfredo Attié: “Num dos artigos que referi, na resposta à primeira questão, “Transformações do Humano”, discuto a questão da diversidade e o direito à sua expressão. A sociedade mudou, o humano mudou. No âmbito dos direitos humanos, não apenas os direitos e deveres correlatos se ampliaram, mas igualmente a concepção do humano sofreu transformações importantes. A sociedade e cada um de nós precisamos da diferença. Apenas a identidade não basta. Há uma interdependência entre igualdade e diferença. Os relacionamentos mudam e é uma característica da humanidade, do hominídeo, o processo de transformação constante, a adaptação, a evolução. A família continua a ser importante, como ambiente e relação de acolhimento, de educação. Os seres humanos dependem dessa relação familiar para a sua constituição. Mas o que venha a ser família também é um curso de alterações. A história da vida familiar não é outra coisa senão a narrativa dessas alterações. Os modelos mudam, as pessoas se modificam, as famílias passam a obedecer a novos comportamentos, novos padrões de convivência. Precisamos deixar de lado preconceitos de toda ordem, além da análise fria da ciência e da filosofia. Devemos caminhar para os espaços reais de coexistência, observar os espaços sociais. Acolher tais mudanças e expandir instrumentos para que se realizem com dignidade, reconhecimento, respeito, impedindo atos de desrespeito, intolerância, exclusão e opressão. A autonomia privada, assim como o desejo das partes devem continuar a ser prestigiados. O foro extrajudicial pode e deve desempenhar um papel essencial nessa consecução da evolução criadora dos direitos.”
JN — Para o senhor, qual é o maior desafio para o futuro do notariado?
Alfredo Attié: “Adaptar-se à transformação do humano, da sociedade. Ajudar na escolha dos melhores caminhos para o futuro, na adaptação e na melhor escolha das novas tecnologias. Tornar acessíveis seus serviços, auxiliar na superação das desigualdades, tornar o direito autêntico, próximo do desejo do povo, segundo os princípios do Estado de Direito e da Democracia, conservar e expandir os direitos humanos e tornar efetiva a realização dos deveres estatais. Continuar a cuidar da segurança, no sentido democrático: segurança da sociedade. Tornar-se cada vez mais uma instância segura para a garantia das relações humanas. O humano não pode ser substituído pelas máquinas. Quanto mais diálogo houver, maior a aproximação e o respeito entre as pessoas, mais a sociedade ganhará. O notariado deve estar ao alcance do humano.”
A entrevista, como publicada, pode ser lida no site do Jornal, aqui.