
Estado de Sítio e Autoritarismos Neoliberais [1]
Alfredo Attié [2]
Trata-se de artigo que resume a contribuição de Alfredo Attié a dois eventos coordenados pelo Instituto Novos Paradigmas, em dezembro de 2024, no Rio de Janeiro, Brasil, e em fevereiro de 2025, em Montevidéu, Uruguai.
Nele, o autor demonstra com o neoliberalismo teria desfeito a ordem institucional criada pelo liberalismo e buscado implantar estruturas de salvaguarda econômico-sociais no interior da esfera política, voltadas a impedir que o Estado pudesse funcionar. Solapar, sobretudo, os liames de representação política e a capacidade de o poder político garantir direitos, fazer cumprir deveres e desempenhar políticas públicas.
O autor mostra como se apresentam e funcionam essas estruturas, de que modo desconectam Estado — destruindo sua legitimidade — e sociedade — contestando sua existência e relevância. Legitimidade alcançada e relevância preservada, a duras penas, no curso do processo, de idas e vindas, permeado de obstáculos, de construção republicano-democrático-social.
A reflexão empreendida pelo autor procura entender a razão de a política estar mais uma vez em xeque, com o desmantelamento dos mecanismos e das instituições que os solidificaram, em sua capacidade de ativar valores e práticas, como a igualdade, a solidariedade e a liberdade, abrindo caminho para o recomposição de um regime oligárquico, corporativo e autoritário, que Attié denomina de anticonstitucionalidade e antipolítica.
A tese principal está em que essa ordem neoliberal, por meio dessas estruturas, fez reviver a ideia e a prática da guerra de sítio, reconfigurando o estado de sítio, seu sucedâneo jurídico, como instrumento voltado a não apenas impedir o funcionamento das estruturas políticas, cuja institucionalidade busca incessantemente destruir, mas, também, restabelecer a institucionalidade dos corpos intermediários.
A revivescência, portanto, de instituições próprias ao Antigo Regime, no modo como sobreviveram e foram mesmo recuperadas e retrabalhadas no processo pós-revolucionário do constitucionalismo.
Constitucionalismo que — cantado em prosa e verso pelas doutrinas tradicional e contemporânea do Direito Constitucional, como se fora uma resultante das revoluções inglesa, norte-americana e francesa, mas —, na forma como o autor o interpreta e critica, efetivou-se num momento consecutivo e de reação a essas revoluções.
Leia o artigo, na íntegra, a seguir.
Como citar este artigo: ATTIÉ, Alfredo. “Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio” in Academia Paulista de Direito. Breves Artigos, publicado em 22.03.2025. Acesso em https://apd.org.br/estado-de-sitio-e-autoritarismos-neoliberais-por-alfredo-attie/
O artigo pode, também ser lido, como publicado pelo Portal 247, em três partes:
Parte 1: capítulos 1 a 5, inclusive;;
Parte 2 : capítulos 6 a 9, inclusive;
Parte 3; capítulos 10 e 11.
Pode ser um sinal de guerra; talvez, de coisa nenhuma; calor insuportável de Cádiz, vento forte e ensurdecedor. Feitiço que cai sobre a cidade.[3]
Falei do céu, seu juiz? Aprovo tudo o que esse céu faz, do seu jeito. Faço-me de juiz, também. Sei que é melhor ser cúmplice do céu do que sua vítima.[4]
De onde vieram a justiça, os laços de confiança e a equidade? Com certeza, daquelas pessoas que, informadas pela experiência desses ensinamentos, confirmaram-nos por meio dos costumes e os instituíram pelas leis.[5]
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Introdução
Tolerado e respeitado, disciplinado pelo liberalismo, o Estado tornou-se, para o regime neoliberal, um mal desnecessário.
No presente artigo, pretendo, brevemente, mostrar de que modo o neoliberalismo desfez a ordem institucional criada pelo liberalismo e buscou implantar estruturas de salvaguarda econômico-sociais no interior da esfera política, voltadas a impedir que o Estado pudesse funcionar. Solapar, sobretudo, os liames de representação política e a capacidade de o poder político garantir direitos, fazer cumprir deveres e desempenhar políticas públicas.
Minha intenção é mostrar como se apresentam e funcionam essas estruturas, de que modo desconectam Estado – destruindo sua legitimidade – e sociedade – contestando sua existência e relevância. Legitimidade alcançada e relevância preservada, a duras penas, no curso do processo, de idas e vindas, permeado de obstáculos, de construção republicano-democrático-social. Entender, assim, a razão de a política estar mais uma vez em xeque, com o desmantelamento dos mecanismos e das instituições que os solidificaram, em sua capacidade de ativar valores e práticas, como a igualdade, a solidariedade e a liberdade, abrindo caminho para o recomposição de um regime oligárquico, corporativo e autoritário, que denomino de anticonstitucionalidade e antipolítica.
Minha tese principal está em que essa ordem neoliberal, por meio dessas estruturas, fez reviver a ideia e a prática da guerra de sítio, reconfigurando o estado de sítio, seu sucedâneo jurídico, como instrumento voltado a não apenas impedir o funcionamento das estruturas políticas, cuja institucionalidade busca incessantemente destruir, mas, também, restabelecer a institucionalidade dos corpos intermediários. A revivescência, portanto, de instituições próprias ao Antigo Regime, no modo como sobreviveram e foram mesmo recuperadas e retrabalhadas no processo pós-revolucionário do constitucionalismo. Constitucionalismo que – cantado em prosa e verso pelas doutrinas tradicional e contemporânea do Direito Constitucional, como se fora uma resultante das revoluções inglesa, norte-americana e francesa, mas –, na forma como o interpreto e critico, efetivou-se num momento consecutivo e de reação a essas revoluções.[6]
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Liberalismo, Soberania, Território, Constitucionalismo e Força
O sistema econômico liberal, a partir da contribuição e do impulso decisivo de Adam Smith, viu na estrutura estatal, então em construção – como, de resto, ainda está –, uma aliada, salientando as atribuições do “soberano” de guarda da ordem social e de instrumento para possibilitar o desenvolvimento da(s) liberdade(s) econômica(s). Esse desenvolvimento estava fundamentado nas ideias e nas práticas:
a) da acumulação e concentração crescente do capital, mediante a expropriação e a exploração do trabalho;
b) da divisão social do trabalho, mediante a construção de mecanismos de disciplina e de controle do trabalho, da cultura e do tempo social;
c) da imposição do sistema de fábrica, basicamente um modo de disciplinar e controlar a transformação de coisas simples em produtos ou mercadorias, em valor para o comércio; modelo que vai se reproduzir em todos os modos de vida social, distribuindo funções, hierarquias e vigilância por todos os espaços e tempos de existência, marcando a saúde e a doença das pessoas a partir de seu processo de constituição de um corpo social que se compreende apenas diante das máquinas que o instrumentalizam, para fazer alguns lucrarem em troca da submissão disciplinar e salarial de todos; e
d) da constituição da propriedade privada – em verdade a negação da ideia de propriedade –, pela desconexão entre o humano e a ordem das coisas, e pela personalização ou subjetivação da relação real (isto é, antes determinada pela impossibilidade física e jurídica de apropriação de todas as coisas), que torna a aquisição de domínio um processo de (de)marcação da realidade por poucos, em detrimento da imensa maioria.
Muito bem, para assegurar essas funções, o liberalismo pensou e realizou estruturas e práticas e desenhou uma prática discursiva, voltada a configurar a ordem “jurídica” do Estado, como limitação ao poder, ou, mais apropriadamente, disciplina da força do soberano: especificar suas atribuições e ordenar seu modo de agir.
Tomou como ponto de partida a ideia de que o soberano era – no início da caminhada da constituição histórico-teórica da tão propalada “esfera pública” (europeia e resultante de um pacto de elites) – uma personagem criada pelo conjunto das oligarquias, como forma de alienação da capacidade política que possuiriam (ou acreditavam poder reafirmar), levada a efeito para possibilitar a concentração da coerção (uso da força, não do poder) para impor o cumprimento de pactos sociais. Pactos e não contratos, é importante salientar, isto é, modos de imposição de decisões tomadas em relação hierárquica de capacidades. O soberano é a instituição da heteronomia, personalizada para possibilitar que o domínio de alguns sobre a vida ou a ordem privada se transmita à nova ordem pública, que surge concomitantemente à engenhosa invenção ou concepção de sua figura. O Estado, por figurar um modo de alienação de capacidade de decidir, em conjunto, o destino comum, é a negação da autonomia (política e jurídica).
Se o soberano, ou melhor, a configuração do soberano foi o ponto de partida dessa ordem – que será chamada e tida como moderna –, seu ponto de chegada seria a abstração dessa figura, por meio de uma nova invenção: a soberania. A soberania desfigura o soberano e permite que as funções que foram imaginadas para que exercesse, com unidade e universalidade, sejam despedaçadas. Isso em decorrência da própria origem da soberania, que foi o sucedâneo da prática de suseranias, formas de relação e de submissão plural, descentralizada.
A suserania, no Medievo, era uma relação de ordem territorial, assim embasada na noção de domínio. Entregava-se a terra, em troca de defesa e segurança. Essa transmissão era realizada na forma de um pacto entre o suserano e seu vassalo que, jurando fidelidade, passava a exercer os direitos relativos à propriedade, comprometendo-se a prestar defesa a seu suserano. A ideia de segurança é fundamental. Era, claro, uma relação de proteção mútua, mas a vassalagem figurava um dever específico de dar proteção.
A soberania, por sua vez, ao buscar findar com o sistema fragmentário medieval, insere-se como mecanismo igualmente de proteção, também com base no território. Ocorre que, na soberania, os que formulam o pacto abrem mão da capacidade de exercer a guerra, portanto, de prestar segurança, em favor do soberano que criam. A obrigação de prestar a defesa e a segurança passa a ser do soberano em relação aos súditos, no sentido inverso da relação suserana, em que o território se fragmentava para que o vassalo garantisse a segurança do suserano. Nos dois casos, aquele que se põe na condição inferior, numa relação heterônoma, hierárquica, posta por um pacto,[7] jura fidelidade. Todavia, na suserania, ele deve a proteção, em troca da gestão territorial como domínio, enquanto, na soberania, ele perde a autonomia dessa gestão territorial, (sujeitando-se a uma disciplina do domínio, cujas regras serão estatuídas pelo soberano) em troca da proteção que passa a lhe dever o soberano. A soberania é a relação de suserania em seu sentido inverso.
A fragmentação, porém, permanece, malgrado a afirmação da soberania de não reconhecer poder superior nem interno nem externo. Ela vai mesmo se acentuar, na medida em que essa nova entidade – que passa a ter o domínio sobre a plenitude de um território, e a exercer o domínio sobre a totalidade de seus habitantes –, permanece ligada aos sujeitos que a criaram e fundaram sua nova ordem, dependente da relação estabelecida pelo pacto soberano.
No processo de institucionalização dessa ordem do Estado, seus constituintes vão tramar uma teia disciplinadora e controladora dos movimentos e da linguagem do soberano. Isso de modo a organizar ou administrar o uso da força que o caracterizaria. Essa disciplina se chamou legitimação ou legitimidade, ponto de partida, agora, para um novo percurso ou processo, que é o de construção específica daquilo que passaríamos a chamar de Estado.
Duas ideias fundamentam o Estado, no sentido de servirem como substrato para a sua composição: território e monopólio do uso da força, que se transmuda, por causa da legitimidade, em poder. Isso significa que o poder passa a ser força e o Estado, a ativar mecanismos cada vez mais frequentes de segurança (interna) e de defesa (externa).
É aqui que entra a grande subversão da ideia de política. Se essa estava vinculada, desde a Antiguidade, a um espaço-tempo de ocupação popular – política era sinônimo de presença do povo –, a modernidade fará deslocar esse espaço-tempo de cidadania ou de democracia, para, a partir desse desalojamento (desse paulatino desinteresse por essa atuação e interação pessoal coletiva), domesticar e territorializar o público e seu sentido. O público[8] passa a ser um espaço (concreto) ou órbita (abstrata) de normatização de um conjunto de estruturas e de operação de um feixe de funções, a existir independentemente das pessoas que nele habitam, por ele circulam, ali desempenham seus modos de existência. O povo torna-se mero sujeito – derivação de seu caráter inicial de súdito – contrapartida do soberano – e objeto da atividade pública (da soberania), que passa a ser chamada de política. Essa palavra é destituída de seu significado (qualidade da polis) e se torna um modo de agir de uma entidade abstrata, o Estado, cuja qualidade é a soberania. Os regimes da política passam a se referir ao Estado e não mais à cidadania: portanto, não mais importa a vinculação entre poder e presença.
Passa a ser possível exercer o poder em nome de outrem, sendo instituída a representação. Torna-se possível pensar (e mesmo intencionalmente formular a ideia, e reiterar a prática e o discurso de) uma cidade sem cidadania, assim como uma polis sem política. A questão está, para essa ordem, em, de maneira cada vez mais complexa e, sobretudo, oblíqua e dissimulada, exercer a força interna e externamente, acentuando a expropriação ou alienação das capacidades.
O Direito Constitucional, discurso e modo de estabilização (petrificação, estatização) do Constitucionalismo, subverterá a ideia, o discurso e a prática da Constituição,[9] vinda desde a Antiguidade, transmudando‑a, cada vez mais, muito embora de maneira mais acentuada a partir do regime neoliberal, em Direito Administrativo.[10]
Assim, o liberalismo de raiz europeia assegurará sua hegemonia discursiva, expandindo suas práticas – muito embora de forma invertida, estabelecendo cada vez mais e maiores desigualdades – para todo o Mundo, por meio sobretudo do processo colonizador. O comércio e suas técnicas, depois, sua ciência – da natureza e das causas da riqueza (e pobreza) das nações, a economia política – sucederão e substituirão outras práticas e discursos, no caminho da dominação da humanidade e da natureza. Talvez pela primeira vez, o percurso desigual de integração mundial, de universalização das consciências e culturas, terá um vetor unificador, justificando, na teoria e na prática, o desenvolvimento de relações comerciais e de instituições pretensamente públicas, mas voltadas à instituição dessas relações, como modelo de relações humanas e do humano com a natureza.
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Neoliberalismo e Estado
Apesar do esquecimento, intencional ou não, dos discursos e práticas de resistência a esse processo, é evidente que ele não se fez prevalecer sem que houvesse outros discursos e práticas, no sentido inverso à constituição de sua aparente hegemonia. Um desses modos de contraposição deu-se mesmo na ordem internacional, que a comercialização das relações ajudou a construir.
Na órbita internacional passou-se a constituir uma trama de direitos, deveres e garantias, por meio do direito internacional instituído a partir do fim dos conflitos mundiais do Século XX, por meio das declarações de direitos internacionais e regionais e a criação de instâncias de julgamento e de implementação de obrigações.
Isso não se deu, contudo, apenas e exclusivamente no âmbito internacional. A trama de relações, textos e instituições jurídico-políticas de proteção foi sendo estabelecida em processo de integração constante entre aquele âmbito externo e o interno dos vários Estados, que se puseram como sujeitos do direito internacional, com pretensão de exclusividade – imposta, diga-se com ênfase, pela concepção de dominação europeia em expansão.
Quer dizer que as Constituições dos vários Estados passaram a se comunicar com a ordem internacional, tornando interno o que era declarado como externo ou internacional.
A Constituição brasileira de 1988 é um exemplo típico, vívido e extremamente relevante dessa integração. Ela estatuiu, desde o início, que a ordem internacional dos tratados e convenções sobre direitos humanos faria parte integrante do próprio texto constitucional. Uma Constituição dotada, como considero, de plasticidade, em sua capacidade de modificar-se e enriquecer-se a cada declaração de direitos internacional. De tal sorte que a Constituição posta nos sites oficiais de governo ou editada para aquisição em livrarias e bancas não corresponde ao verdadeiro texto desse documento essencial para a vida cidadã. E os manuais de Direito Constitucional, em sua pobreza doutrinária, não conseguem compreender e transmitir o alcance e a relevância dessa plasticidade.[11]
Entretanto, essa ordem jurídico-política, contraposta aos impulsos determinados pela chamada modernidade, terá como obstáculo a realidade do mundo contemporâneo, que negou, constantemente a eficácia dos direitos, seja na perpetuação do colonialismo, seja na configuração d(e um)a “guerra fria,” isto é, a competição por hegemonia por meio da extensão da competição entre as potências europeias, a um dualismo de potestades. Essa contraposição dual permitiu que os países hegemônicos estimulassem e impulsionassem a instauração de regimes ditatoriais, em suas órbitas de influência ou dominação, pondo em risco democracia e direitos.
O fim aparente desse estado dual abriria espaço para instituição da ordem neoliberal. Nessa ordem estarão presentes as ideias, os discursos e as práticas do estado de sítio e dos corpos intermediários, que passo a explorar, e que são o objeto primordial deste artigo, porque explicam os atuais riscos à democracia e aos valores que representa, bem como constituem a maneira como os novos autoritarismos se vêm inscrevendo nos vários Países.
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Economia, Mestra do Mundo: Comercialização e Domesticação
O Neoliberalismo não significa apenas uma mudança fundamental na concepção liberal de existência. A ordem liberal, malgrado as questões que acabo de evidenciar, não deixou se ser permeável a contribuições pensadas, inicialmente, como antiliberais, ou, mais corretamente, iliberais, termo que se torna corrente, na literatura internacional. Quer dizer, o liberalismo soube conjugar-se a ideias de origem e cunho socialista, advindas dos movimentos de trabalhadores e trabalhadoras e do engajamento de intelectuais, que redigiram textos seminais para compreender as deficiências de fundamento e de prática, e os problemas originais da institucionalização da imaginação liberal.
Em sua versão mais afeita à democracia, o liberalismo acabou por fazer inserir nos documentos jurídico-políticos e nas instituições estatais e, em alguma medida, privadas, assim como em sua própria teoria – modificando‑a substancialmente – temas, conceitos, sugestões, institutos e mecanismos, transformando-as em New Dealssocias, econômicos, culturais e políticos, que, ao serem postos em prática, foram decisivos não apenas para a organização da classe trabalhadora, para o acesso a, e a efetivação de direitos e garantias, como para a expressão cultural da diversidade, com a abertura de brechas nos processos de dominação econômica, política, cultural e social.
O Neoliberalismo, ao contrário, será impermeável a qualquer tipo de influência de teorias e práticas diferentes, que considera, por definição, rivais e inimigas. Ele se funda em duas concepções que radicaliza, levando-as às últimas consequências, na medida da agressividade com que trata tudo o que seja diverso de utilidade e interesse individual, tudo o que não seja econômico por definição. Essas duas concepções são o nominalismo e o utilitarismo.
Ele exacerbará o processo de comercialização e economialização-domesticação (οἶκος-domus) do Mundo. Tudo passa a ser privado, econômico, doméstico; todas as coisas, mercadorias; toda relação, negócio, no sentido meramente mercantil (business), e competição; toda paixão, todo interesse, toda razão são privados e individuais. A razão observa a sociedade e a descaracteriza como social. Há apenas indivíduos em permanente confronto, que competem por interesses sempre legítimos, não importando se mesquinhos ou não.
Não há, nessa perspectiva, classes nem qualquer grupo social, instituição política, agremiação cultural, universidade. Tudo o que foi construído como coletivo é um equivoco que deve ser destruído, em nome da verdadeira realidade que o Neoliberalismo prega, o individualismo. Toda coletividade é um mal e, desnecessário. Em razão de sua nocividade, tem de ser removido. Não há propriamente direitos, apenas interesses. Não há deveres públicos, mas obrigações negociais. Não há trabalho como relação de dependência, que demanda proteção, mas empreendedorismo. A empresa não é senão um processo temporário, um projeto de atuação para a obtenção de lucro, jamais uma instituição econômica. Não há plurilateralidade, sequer contratos plurilaterais, constitutivos de sociedades, mesmo comerciais, apenas relações bilaterais, em que a troca tende a ser sempre desigual, porque cada parte almeja ganhar, à custa de uma perda unilateral.
Nessa ordem, o Estado, nocivo à configuração de uma concepção de mundo nominalista – na qual desaparece qualquer vínculo dos seres humanos entre si e entre eles e o ambiente, seja natural ou cultural, e se nega a existência da sociedade político-jurídica – sua presença ou a simples menção a ele, passam a ser apenas uma barreira ideológica para a consecução das relações econômicas: cada ente tem sua existência, seu lugar perante os outros entes e seu contexto, estabelecidos como algo fugaz, fútil e frágil, tão-somente marcado por um interesse econômico utilitário, ou uma paixão de ordem material. Aqui, a cosmovisão utilitarista joga um papel decisivo.
Em decorrência disso, o Estado deve, antes de tudo, ser isolado do povo. Povo que, segundo a velha teoria liberal, o Estado representaria. Estabelecidas barreiras em torno dele, cordas para sufoca-lo. Todo benefício que esteja associado a um pretenso papel do Estado deve ser extinto, para afastar qualquer conexão, e afeição do povo por ele. O prejuízo que o Estado possa causar, ou se afirme que possa causar, deve ser ressaltado, ao ponto de o Estado ser posto como inimigo do social – com a extinção plena das estruturas postas pelo Estado-Providência (Welfare State).
Por outro lado, aparentemente de modo paradoxal, esse Estado – pensado como termo retórico e não como instituição, instrumento de satisfação de formas de expressão mesquinhas – remanesce como amigo de uma parcela da sociedade – que não se reconhece como classe nem como agrupamento estável ou permanente –, que se divide (segundo afinidades de interesses provisórios, que mudam ao sabor da previsão de ganhos econômicos) em oligarquias, clubes (espaços privados, de exclusividade) dos ricos e famosos. Para atender a interesses dessas oligarquias e seus clubes de interesses, faz-se ruir qualquer expressão distributiva, diminuindo impostos, desfazendo programas sociais e políticas públicas, extinguindo benefícios e garantias de toda ordem, sobretudo do trabalho, e combatendo símbolos de engajamento e cooperação social, como os vínculos culturais (artísticos, científicos, enfim, po(i)éticos, modos de fazer mundos comuns, compartilhados e passíveis de provocar novos desejos e desenhos).
Assim que dele tomam posse – por meio de eleições pretensamente legítimas, mas maculadas por inúmeros vícios, entre os quais, por definição, o abuso típico do modo de ser oligárquico – as novas oligarquias (que estão sempre em competição, embora façam aparentar consensos), passam a fingir ser Estado, e a adotar um linguajar e um vocabulário forjados para incentivar a iniciativa privada, o empreendedorismo. Põem-se como gerentes, gestoras, administradoras de um espólio. Substituem suas instituições por agências que, entretanto, não atuam, não agem, mas concedem agência às oligarquias, aos agentes econômicos privilegiados.
Dentro do Estado, no processo de corrosão institucional que sofre, os agentes econômicos se instalam. E agem na extensão de comprimento da corda que vai sufoca-lo. Simulando ocupar esse lugar no interior do Estado, em verdade, estabelecem a ocupação do território em torno dele, sitiam-no, para impedir que laços de comunicação verdadeiramente política se façam entre ele e o povo que pretenderia representar.
O povo é mais uma concepção coletiva imaginária e nociva. Figura uma pretensa realidade, uma categoria negada por essa concepção de mundo. Constantemente ameaçado, atacado, observa, passivo, atônito e temeroso, esse processo. Teme, cada vez mais, expor-se e se aproximar das estruturas ou instituições que antes reconhecia. Essas instituições podem preservar nomes antigos, a velha roupagem, mas são outras. Tornam-se agressivas e repudiam qualquer achegamento que não seja dos agentes econômicos e seus serviçais.
Ocorre, contudo que esse cerco, figurando o que denomino de estado de sítio, e essas oligarquias, que se constituem em novos corpos intermediários, por meio de estruturas que criam, em torno do Estado, passam a ativar uma configuração diferente da sociedade, muito embora pretendam desfazer-se dela. É uma configuração econômica e social, de certo, mas é antipolítica, por natureza.
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O Regime das Oligarquias
Não gostaria, porém, que esses processos que aponto fossem vistos como tendências inafastáveis, destinos de uma história tida como destino. Na verdade, são expressões pretendidas e postas em ação por uma parcela da sociedade: suas oligarquias e os grupos que, dentro e fora do Estado, das instituições públicas e privadas, acreditam poder impor uma nova ordem ao sabor de seus próprios interesses ou daquelas pessoas e dos grupos a que servem.
Há visões de mundo diversas e plurais, assim como propostas de encaminhamento de mudanças em sentido diferente e contrário ao que compõem o conjunto de relações que denominamos de neoliberais.
Talvez seja para fundamentar as críticas que essas concepções possam fazer ao Neoliberalismo, e as propostas que venham a apresentar, a partir de uma perspectiva interna e externa ao funcionamento propriamente dito de Estados, que escrevo a presente contribuição.
Muito bem, é essa realidade que pretendo delinear no presente texto, empregando aquelas duas categorias, a do estado de sítio e a dos corpos intermediários. São categorias, acredito, que, de meu ponto de vista, explicam esse fenômeno e outros que se delineiam no entorno da transmutação da cosmovisão sobretudo política que vivenciamos.
Como sempre, todavia, não vou me contentar em fazer um diagnóstico, mas tentarei visualizar prognósticos, sim, mas sobretudo meios de resistência a esse avanço do antipolítico, do anti-humano, demonstrando como o povo se metamorfoseia e busca impor sua condição de existência, presença e pensamento, puxando a corda em outras direções e em outros sentidos, num conflito para dar concreção a desejos e constituir sentidos à experiência que se faz, na maior parte da história, de sofrimento. Esse sofrimento constitui um conjunto de paixões que, empregadas a partir de uma reflexão conjunta, que se desencadeia no curso da observação de expressões culturais originais e dinâmicas, dão margem à criação de novos desenhos de mundo.
Para mim, trata-se, mais do que um embate entre direita e esquerda (expressões forjadas a partir de uma experiência bem circunscrita no tempo e no espaço), do antigo embate entre oligarquia (e os regimes antijurídico-políticos que lhe são correlatos) e a democracia, o regime jurídico-político, constituinte e constitucional por excelência.
Há várias maneiras de dizer esse embate, cuja consciência se inicia na própria Antiguidade de que é oriundo. Vai-se encontrar, contudo, em múltiplas sociedades, que vivem o drama de uma minoria querer dominar a maioria, concentrar bens materiais e imateriais em torno de si e exigir a submissão. Encontra-se, também, nas estruturas e mecanismos criados para preservar o poder das oligarquias, por um lado, e para controlar esse poder ou mesmo evitar que se instaure, por outro.[12]
No regime neoliberal, ele se apresenta nu e dotado de uma crueldade mais aguda, uma vez que o uso da linguagem, que, no regime ideológico criticado na teoria marxiana, por exemplo, ou nos discursos de registro religioso, mesmo jurídico-positivista, no vocabulário das sociologias e das várias doutrinas econômicas, vinha dissimulado, envolvido em vários modos de dizer circunloquiais. Dobras e desdobras, voltas e reviravoltas, cujo objetivo é invisibilizar o encontro dos diferentes e criar empecilho para que se perceba a desigualdade que guardam entre si.
Mas o Neoliberalismo é direto, não deseja mais estruturas de intermediação linguística, das quais, aliás, desdenha. Ele propõe um discurso verdadeiro, uma absoluta veracidade, que é a sua própria versão do mundo, isto é, a versão que é tida pelas oligarquias como seu abrigo para conhecer, enfrentar e derrotar a massa do povo. As oligarquias moldam formas e fórmulas extremamente simplificadoras da complexidade do mundo, estipulam arbitrariamente dicotomias, tomam partido do que seria a única verdade, a sua versão.
Para salvaguardar tais estruturas de comunicação simplistas é necessário, claro, um mecanismo de criação e difusão de mentiras, que serve para impedir que se analise e questione a versão imposta como verdadeira. Essas mentiras, então, voltam-se para desconstituir outras versões, certamente mais verossímeis, porque dotadas de capacidade de dúvida, de autoquestionamento, enfim, de conhecimento dos vários graus de incerteza de qualquer afirmação sobre o mundo; com certeza mais prováveis, uma vez que conscientes da necessidade de fazer acompanhar toda afirmação sobre o mundo de uma demonstração convincente.
Em torno daquela pretensão de veracidade das versões oligárquicas, da falsidade dessa pretensão e das mentiras que as salvaguardam, formam-se agrupamentos, que se interpõem entre o mundo e o olhar das pessoas e das sociedades. Esses são os grupos que vão assumir o papel que cabia, no Antigo Regime, aos corpos intermediários. Obstáculos, marcas, linhas de demarcação de territórios reais e imaginários que se fixam na realidade do mundo, armadilhas para o percurso do olhar, simulações de realidades, simulacros, lugares proibidos, esotéricos, falsamente acessíveis apenas a iniciados, atribuídos a privilegiados detentores do saber transparente de todos os dados. São salvaguardas que criam ignorância e medo em torno das verdades postuladas, que dizem ocultar.
O Neoliberalismo, enfim, é uma doutrina e uma prática econômica, que pretende tomar conta do discurso social e da sociedade, do discurso jurídico e das instituições e normas, do discurso público e do espaço/tempo da política.
Por isso, fingindo adaptar ou modernizar a doutrina liberal, ele a subverte, ao falar em supressão (ou redução) da intervenção do Estado, retirada de regras das relações econômicas, “fim do Estado”, por meio da privatização dos serviços e dos bens públicos, por meio do “equilíbrio” das contas públicas, isto é, diminuição da capacidade de o Estado realizar políticas públicas e investir na diminuição das desigualdades, cerceamento da capacidade de decisão do Estado, por meio da criação de agências de gestão e “regulação” de mercados. O Estado deixa de ter poder para passar a exercer uma atividade meramente administrativa das decisões e dos recursos que permanecem na esfera privada, concentrados nas mãos de grandes empresas, grandes redes corporativas. O Estado passa a ser apenas o “legitimador” dos investimentos privados, em verdade o fiador dos vícios privados, travestidos de benefícios públicos.
Essa aliança das oligarquias e a postulação de passarem, por suas empresas, a tomar conta dos espaços, dos serviços e dos bens públicos, mesmo aqueles considerados essenciais pela antiga visão liberal, abandonando a sociedade ao deus-dará, retirando proteções sociais, mesmo aquelas que importavam ao liberalismo, como as regras e garantias dos contratos de trabalho, além daquelas trazidas pelo Estado de Bem-Estar, como as vinculadas a direitos sociais, culturais e ambientais, vão tornando o Estado desnecessário, desfazendo os liames de sua representação política legítima.
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O Orçamento
Não é à toa que o orçamento público se descaracteriza. Ele deixa de ter seu fundamento universal e integrador, de planejamento, decisão e gestão de receita e despesa pública, para ser objeto de apropriação por interesses fragmentários, de várias ordens, representados por parlamentares, que estabelecem uma vinculação individual ou social desligada da legitimidade da representação. Desaparece o projeto constitucional para dar lugar a uma barganha ou leilão de prioridades individualizadas, julgadas segundo critérios isolados, afastados do debate público.
Chamou minha atenção, recentemente, um programa implementado por Deputada Federal – não sei se outros parlamentares também empreendem algo semelhante – relativo a obter sugestões, em resposta a edital elaborado por seu gabinete, de emendas para utilização de verbas do orçamento público, mediante a apresentação de projetos de interesse local. Em seguida a sua apresentação, os projetos seriam postos em uma plataforma e submetidos a votação por pessoas interessadas.
Ao que tudo indica, seria um meio – não exclusivo, tudo indica — para apresentação de emendas ao orçamento público, elaborado, segundo determinação constitucional, pelo Poder Executivo, para a distribuição de verbas segundo critério que a parlamentar acredita ser popular, amealhando apoio para o exercício de seu mandato.
Na realidade, porém, trata-se de um artifício, mais um capítulo no processo bastante problemático, do ponto de vista político e jurídico – saliento essas suas perspectivas, para me contrapor ao senso comum das notícias, comentários e análises (de mídia e especialistas), que se propõem a desvendar os aspectos econômicos e pretensamente sociais — do conflito que se estabelece, mais uma vez, em nossa história, em torno da elaboração e da efetivação do orçamento público.
O conflito atual mostra-se um enorme retrocesso na história política brasileira. Principalmente se levarmos em consideração que o Brasil foi responsável pela proposta e implementação de uma das mais significativas contribuições à democratização da configuração da Administração pública, por meio do “Orçamento Participativo.”
Quero dizer, com isso, que o Brasil abandonou o processo de constituição de uma forma de participação política, que pensava o orçamento como um bem efetivamente público (quer dizer, pertencente ao povo), e sua elaboração e implementação como um procedimento de construção também pública. Portanto, um modo qualificado e legítimo de participação efetiva no exercício do poder político, e. sobretudo, de compartilhamento democrático da informação a respeito de como seria formada e distribuída a verba pública.
Essa verba, considerada, no discurso usual, como recurso estatal para a realização dos deveres públicos e das políticas públicas, determinados pela Constituição Federal, seria vista como aquilo que efetivamente é ou deveria ser: a contribuição de cidadãs e cidadãos, e a correspondente retribuição a cidadãs e cidadãos, em esforço comum para constituir e manter o espaço e o tempo públicos, isto é, para formar e aperfeiçoar a sociedade política.
Pensado desse outro modo, o orçamento torna-se inclusivo o integral. É uma peça unitária e universal de construção democrática, que indica a inclusão e a integração da própria sociedade em torno dos objetivos e valores (direitos e deveres) postos por essa mesma sociedade na Constituição.
“Integral,” “inclusivo,” inclusão” e “integração” são os termos chaves, aqui. Indicam que a política é o resultado da participação íntegra e plena cidadã. O orçamento exclusivo e desintegrado nega a política, porque se torna uma mera peça administrativa, destituída de legitimidade (jurídico-política) e distante de sua compreensão constitucional.
Sem participação, isto é, inclusão e integração, não há verdadeiramente política.
O orçamento público – aliás, como tudo que é público – é, ao mesmo tempo, o processo e o instrumento de exercício do poder público democrático, o poder em atuação, atualização, efetivação, numa palavra, o poder ativo ou a política em ação.
Se é assim, segundo concebo, que devem ser postas as definições e questões, como explicar o conflito que hoje se desenvolve em torno do orçamento? O desaparecimento de seu caráter público (ao ponto de ser considerado “secreto,” em suas emendas)? Sua perda de integridade, na forma de um esfacelamento? Seu aprisionamento por assim chamadas “emendas parlamentares,” na verdade remendos que apontam intenções diversas, pretensamente coletivas e locais, mas que negam o caráter inclusivo e integral que caracterizaria o interesse público? Sua utilização como instrumento de troca de apoio ou de sanção de contraposição, em relação ao exercício das atribuições estabelecidas pela Constituição para os chamados Poderes da República, sobretudo do Executivo? E a judicialização desse conflito, a partir de uma demanda de perfeita visibilidade (ou seja, seu caráter de conhecimento público exigido pela mesma Constituição)?
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Liberalismo e Nação. Neoliberalismo como Regime Antipolítico
Desde o início de sua adoção como (anti-) política de determinados governos, que passaram a atuar para destituir os Estados de sua capacidade, precisamente, de governação, o neoliberalismo teve como resultado o incremento da concentração de riquezas nas mãos de poucos e a difusão ilimitada da pobreza, levando ao colapso dos sistemas de proteção e ao ápice da diferença entre ricos e pobres.
O dinheiro dos poucos privilegiados passou a servir para a reprodução ideológica desse sistema – que exacerba, no âmbito internacional, o apartheid social, comprando equipamentos e criando modos de educação, formação e informação cada vez mais acessíveis a uma parcela decrescente e privilegiada da população mundial. O neoliberalismo institucionalizou o racismo como razão de Estado, impondo segregação e impedindo o movimento natural dos povos em busca de melhores condições de vida.
Fez crescer a miserabilidade e a vulnerabilidade, subtraindo, desvirtuando e privatizando mecanismos de educação, de informação, de acesso a, e de expressão da cultura, de justiça, de saúde, de segurança etc.
Quanto à segurança e à justiça, por exemplo, foram postas à disposição da proteção do patrimônio em detrimento da cidadania: proteção dos que têm contra os que não têm. A insegurança da maior parte do povo e a injustiça a que é submetida, no cotidiano, crescentes, geram o campo fértil para vários tipos de discurso antipolítico: o medo, o ódio, a falsa crença, o dogmatismo, o autoritário, o totalitário.
O conjunto dessas miserabilidades e vulnerabilidades levam ao desfazimento dos liames entre as pessoas e os grupos que formam. Desaparecendo os mecanismos de proteção estatal, estabelece-se um embate na sociedade, no limite, uma guerra civil, que somente pode ser mediada e resolvida pela violência. Violência que é objeto de pregação pelos novos donos da riqueza e dos privilégios, através de seus lacaios, travestidos de representantes, ou mesmo postos diretamente no comando dos Estados, como remédio para a solução de todos os problemas. A forca substitui, uma vez mais, o poder.
Essas características fazem do Neoliberalismo um sistema antipolítico. Seu modo de ser e de agir se dá no sentido de fazer o estado abdicar de seu poder e passar a adotar a força contra os povos, defendendo as minorias que dele vão tomando conta.
Contudo, além disso, o regime neoliberal se faz um antijurídico e anticonstitucional, porque afronta tanto a trama internacional dos direitos quanto o quebra-cabeça das Constituições.
Essa ordem integrada de direito internacional e Constituições estipula valores e regras precisos, no sentido de proteger e obrigar à adoção de estruturas de representação legítima, de promover a submissão ao regime das leis (rule-of-law) e de preservar e garantir direitos. Está assentada na tríade democracia/império do direito/direitos humanos.
O Neoliberalismo prega a extinção da democracia e dos direitos humanos e a desobediência do direito, personificando o antípoda da trama jurídica internacional e constitucional.
Para enxergar e compreender os mecanismos que emprega nesse enfrentamento, é preciso retomar a análise da construção da soberania, agora, a partir de um ponto de vista mais vinculado ao chamado liberalismo político, a outra face da moeda do liberalismo econômico.
Pensando exclusivamente no ambiente europeu,[13] pode-se considerar que a Constituição Francesa de 1791, dando curso ao estabelecido pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 – dois documentos advindos do mesmo impulso transformador (mas não, propriamente, revolucionário),[14] que fez transmudar a original convocação dos Estados-Gerais, figura típica do Antigo Regime, para a experiência de uma Assembleia, dotada de poder de representação e constituinte -, teria fundado a ideia da soberania nacional, isto é, pertencente à nação – não ao povo. Foi um artifício engenhoso, forjado a partir de duas fontes principais. A primeira, consistente na concepção da ideia de nação, uma abstração, que serviu para afastar qualquer reivindicação de poder efetivamente popular ou democrático. A segunda, correspondente à concepção de soberania, tema, como vimos, caro no curso da construção teórico-pragmática do que hoje chamamos de Estado.
A nação, afirmou Emmanuel-Joseph Sieyès[15], seria um conceito fundante da realidade político-jurídica. Na verdade, tratava-se de um dado ficcional, tomado como uma noção preestabelecida, sem história nem concreção física, que reuniria em sua matéria abstrata o conjunto não do povo, mas de características selecionadas ou mesmo inventadas, extraídas de uma composição de expressões consideradas relevantes para a criação de um modelo de organização coletiva e de condutas individuais. Essas características não seriam sensíveis nem visíveis, menos ainda apreensíveis, a não ser como artefato da razão, muito embora impassível de análise. Uma síntese racional formulada para fazer emergir, do conjunto dos estados (états, status), a figura do terceiro-estado (tiers-état). Essa figura, seria, em verdade, uma concepção original e integral da nação, ou, como dizia o Abade revolucionário, une nation complète, a integralidade da nação. Mais do que isso, o terceiro-estado é o todo da nação. Uma parcela que se confunde com a totalidade, uma vez que seria a única necessária. Ainda além, um todo que restaria entravé et opprimé, enquanto existir a outra parte, l’ordre privilégié́. Suprimida a ordem privilegiada, não haveria perda, mas ganho, que faria o todo libre et florissant. Uma matemática estranha e engenhosa, que faz da parte o todo, porque essencial, necessária, e faz o todo crescer pela supressão da parte que se torna um peso morto para a nação, e, com seu perecimento ou extinção, torna mais robusta a parte necessária, fortalece‑a ao libertá-la do jugo dos privilégios, permitindo que se desenvolva, em benefício do todo, que é seu verdadeiro significado.
Esse estado não corresponderia a nenhuma classe, no sentido econômico-social do termo, sequer poderia ser assimilado às categorias de burguesia e proletariado, como já se quis fazer, na busca de acomodar a complexidade, a diversidade e a riqueza das práticas e dos discursos expressos no processo revolucionário, ao modelo de uma historiografia refugiada em jargões. Sieyès fala da maioria da sociedade, que estaria presente em todos os estados, não sendo atributo exclusivo de um ou outro. O termo maioria, portanto, significa mais do que quantidade, qualidade. O terceiro-estado é a nação toda porque ele guarda aquilo que é mais autêntico à nação, o que ela tem de melhor e que a define. Essa autenticidade estaria entravada e oprimida. Caberia à assembleia constituinte fazer-se efetivamente representativa, permitindo florescer a liberdade do todo. A nação não está em um lugar nem em uma coletividade determinados. É o todo integral. Seus caracteres se difundem em meio ao conjunto concreto dos estados.
A soberania da nação é então, a partir dessa contribuição prático-doutrinária fundamental, enxertada na Constituição de 1791, no artigo primeiro do título terceiro, e na Declaração dos Direitos, em seu artigo terceiro. A fórmula da Declaração indica o caráter nacional da soberania, mas por meio de um circunlóquio bastante significativo. Não se afirma que a soberania pertence à nação, mas que seu (isto é, de toute souveraineté) princípio “réside essentiellement dans la nation”. Dessa nação emana toda a autoridade, impedindo que quaisquer corpos e indivíduos a exerçam.
Corps e Individu, isto é, nada se interpõe entre nation e souveraineté. Nada pode intermediar a relação (assim, direta) entre a nação e a soberania. Na expressão constitucional, isso fica ainda mais explícito. Diz-se, ao referir o tema dos poderes públicos, que a soberania é una, indivisível e imprescritível, pertence à nação, não podendo ser exercida por nenhuma section du peuple, nem qualquer individu.
A Declaração e a Constituição põem-se contra a fragmentação do poder público e contra a interposição de agentes mediadores, intermediários na construção inovadora de uma relação direta entre a nação e a sua soberania, que é una, indivisível e não perece, isto é, é eterna (não prescreve jamais) e não pode ser assim contestada nem extinta (mesmo que não seja exercida por essa nação).
O alvo dessa interdição são os chamados corpos intermediários, de que eram melhor exemplo os estados sociais ou ordens sociais. Precipuamente, aqueles dotados de um estatuto próprio, derrogatório do estatuto geral ou universal, posto pela constituição de uma sociedade verdadeiramente político-jurídica. Esses estatutos particulares ou privados, naturais no sistema do Antigo Regime, no qual o príncipe se relaciona com a sociedade por intermédio de, e controlado por determinados grupos coletivos, que possuem um estatuto ou regime próprio, na forma de privilégios. Esses privilégios não tinham o sentido que tomarão após a instalação da ordem revolucionária, sobretudo após a Lei Chapelier, de quatorze de junho de 1791, que fez extinguir as corporações. O sistema ou regime Ancien era corporativo por definição. A sociedade é compreendida como composta de várias ordens hierárquicas, não havendo como conceber indivíduos separados das coletividades a que pertenciam e das quais recebiam seu quinhão de presença social, seu privilégio. Não há direitos, portanto, sequer universais. Há estatutos próprios, que fixam condições de existência. O privilégio é apenas o regime a que coletividades e seus membros se submetem, num sistema de múltiplas hierarquias. Tratava-se de um desenvolvimento medieval das antigas noções romanas de status. Noções submetidas a uma interpretação derivada de uma cosmovisão vinculada à violência dos reinados, soberanias, hierarquias, atribuições, submissões e servidões- numa palavra, um sistema complexo de estratificações -, de uma era de intensa conflituosidade, sobretudo territorial.
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Dos Corpos Intermediários à Nação: Representação Política
Os corpos intermediários serão, então, considerados pela Constituição e pela Declaração como nocentes, pois alçam determinados estados e determinados indivíduos acima de todos os outros. A Constituição faz abolir essas cartas particulares de minorias, que as tornam poderosas em detrimento da maioria (o Tiers-État), que é a parte que realmente conta e que deve assumir seu papel e receber o lugar que merece na nova ordem constitucional. Essa abolição dos corpos intermediários é condição necessária tanto da soberania quanto da igualdade universal perante a lei. Qualquer estrutura social que se deseje representativa de uma categoria da sociedade — como, por exemplo, as corporações de ofício, a igreja, os clubes etc. -, precisa desaparecer, porque a soberania deve atuar sobre a sociedade sem que obstáculos se lhe anteponham. A relação entre a soberania e a sociedade é de transparência. Nenhuma parte da sociedade pode reivindicar o exercício da soberania, não há como dividir a soberania entre grupos e indivíduos. A sociedade é um só corpo, a nação, sua alma, e a soberania, a energia que põe em atuação as relações desse todo, que é um só.
Claro que tudo isso não passa de ficção que, para existir, depende de um aparato jurídico-político posto à disposição desde a Antiguidade, na qual se buscam os modelos de organização e de exercício do poder para forjar instituições que, em realidade, não são novas, mas assumem a aparência de novidade. O que lhes confere o caráter da invenção, da criação, da diferença é o mecanismo que lhes dá vida. Esse efetivamente novo mecanismo é a representação.
E é um grande e grave paradoxo que essa ordem da soberania nacional uma e indivisível, que abomina corpos de intermediação, venha a ter a garantia de sua existência na instituição da representação.[16] Esse paradoxo era explicitado pelos artigos segundo, terceiro, quarto e quinto do mesmo título terceiro constitucional.
Enuncia-se que a nação não pode exercer o poder ou os poderes emanados por ela, exclusivamente. Portanto, a Constituição torna-se representativa, sendo os representantes o Corpo legislativo e o rei, aos quais pertence o Poder legislativo: representantes eleitos livremente pelo povo, temporários, com assento na Assembleia nacional, e o rei, que complementa a atividade de legislar por meio da sanção. O Poder judiciário é delegado a juízes, eleitos no momento oportuno pelo povo. Finalmente, o Poder executivo é delegado ao rei, que o exerce por meio de ministros e outros funcionários responsáveis.
Diferentemente do que postulava Jean-Jacques Rousseau, a soberania, posta como uma e indivisível, impassível de representação, fragmentava-se em determinados Poderes, para que se efetivasse seu papel. Da nação emanavam esses Poderes, mas ela não tinha condições de os exercer, fazendo-os objeto de delegação a três Corpos, portanto, intermediários, negando as proibições da própria Constituição e da declaração. Desses Corpos, dois se caracterizariam, ao menos parcialmente, por um processo de legitimação por eleição do povo: a assembleia nacional e o corpo de juízes. Assim, a totalidade do judiciário seria eleita, enquanto o legislativo resultaria da eleição de representantes conjugado ao do rei, ao qual caberia a titularidade, mas não o exercício do executivo, efetivado por ministros e agentes públicos, também não eleitos.
Aqui, bem assim, inicia-se a história da incompletude do projeto da soberania, que deveria constituir uma relação imediata com o povo, mas que sofre o primeiro desvio por meio da abstração da figura do povo na ideia de nação. Em seguida, um novo desvio, mediante a incapacidade de exercício soberano, que passa a ser fragmentado e delegado a Poderes públicos. Quer dizer que a soberania deixa de ser um poder para se tornar mera capacidade. O termo poder é reservado apenas ao exercício dessa soberania, não pela nação, muito menos pelo povo, mas por representantes. A seguir, o desvio da representação, da delegação do exercício dos próprios Poderes a um conjunto de agentes. Finalmente, o desvio consubstanciado no fato de não haver sequer a necessidade de legitimação da plenitude desses agentes: no legislativo, apenas a Assembleia nacional é composta por pessoas eleitas, nele intervindo, contudo, o rei, agente tradicional, sequer parte da nação. Esse rei, exterior à ideia nacional posta nos documentos constitucionais, ainda encarnará o Poder executivo, delegando seu exercício, porém — mais um desvio -, a ministros e agentes, que igualmente não passam pelo crivo da representação, pois são escolhidos pelo rei.
A soberania, em conclusão, passa a ser mera capacidade, não chega a se constituir em poder. É uma palavra, uma ideia abstrata, da qual emana o Poder. Não é una nem indivisível. Esfacela-se e dá margem ao exercício efetivo por corpos intermediários públicos: assembleia nacional, rei, ministros e agentes, juízes.
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Sobrevivência dos Corpos Intermediários e o Sítio em torno do Estado
Esse é o campo institucional que vai embasar o projeto republicano pós-revolucionário, fixadas as estruturas que permitem que o Estado desenvolva suas funções, visando sua própria grandeza e à da nação que representa, perante as demais. Ele concede um espaço de sobrevivência aos corpos intermediários sim. Mas eles não são mais os corpos intermediários do Antigo Regime. Não são aqueles corpos sociais, dotados de estatuto próprio e derrogatório do estatal. Esses novos corpos estão inseridos na ordem constitucional e funcionam como mecanismo de exercício do poder estatal. Não são criados pelo campo social, mas pelo político. Na evolução do constitucionalismo, vão se tornar os poderes afetos a instâncias de representação estatal, como estabeleceu, de modo pioneiro, nessa tradição, a Constituição Americana, em 1787. Esse documento tirou o caráter abstrato ou meramente funcional do embate das potências legislativa, executiva e judiciária, para localiza-las, incumbi-las a órgãos ou corpos determinados. Hoje, quando falamos nessas funções, queremos referir determinados órgãos concretos. O legislativo é um Parlamento ou Congresso; o Executivo, o Presidente ou o Primeiro-Ministro; o Judiciário, um Tribunal ou vários Tribunais.
Muito bem, é essa forma de organização que se encontra em crise. Ela foi descaracterizada pelo advento do novo regime econômico-social, que se fez implantar na organização estatal, assumindo o lugar do político propriamente.
As Constituições, em geral, como faz a nossa, ainda falam da tripartição de poderes, afirmando que todo o poder pertenceria ao povo, que delegaria seu exercício a representantes eleitos. Ainda dizem que a legitimidade seria alcançada por meio da realização de eleições periódicas. A realidade, contudo, do exercício desse poder, desses poderes, é bem diversa.
Essa realidade aponta para uma restauração da intermediação corporativa, cujos agentes prescindem dos mecanismos de legitimação representativa. Prescindem mesmo da ideia de representação.
É fácil perceber, inserida na tradição constitucional, por exemplo, a excepcionalidade das profissões e funções jurídicas públicas, que estão dissociadas da representação. Exercem parcela da capacidade soberana, mas não são, na maioria dos países, eleitas. É algo que não passou despercebido, contudo, e já há, aqui e ali, propostas para a recomposição constitucional dessas profissões.[17] Contudo, não chega a pôr em xeque a ordem do liberalismo político, que já previa ou tolerava essa intervenção de atores não pertencentes à nação, como vimos, no exercício das tarefas de governação e controle. Tomando conta da formação dos profissionais do direito e do modo como ingressam nas funções públicas jurídicas, assegurando-se que não questionem a ordem de dominação estabelecida e sirvam como instrumento de sua efetivação, nos campos civil, administrativo e penal, o liberalismo não apenas tolera e respeita, mas, sobretudo, disciplina a maneira como o direito é interpretado e aplicado. No regime neoliberal, ainda, ele incentivará um desvio de interpretação e aplicação excepcional da lei, uma manobra requisitada quando as garantias se mostrarem obstáculo para alcançar objetivos diferentes do que aqueles planejados pela antiga elite liberal. O neoliberalismo incentivará, também, a constituição informal e formal de uma administração transfronteiriça de determinadas regras, desrespeitando qualquer resquício de soberania ainda pretendida pelo garantismo jurídico. Nessa concepção bastante atípica do direito e da justiça, a formação dos profissionais do direito se perde em uma rede de cursos de especialização elaborados nos países de jurisdição da common-law, voltados a habilitar profissionais aptos a defender o interesse de grandes corporações em todos os Países.[18]
Ocorre que, no regime neoliberal, os corpos intermediários se inserirão de modo essencial nessas tarefas governamentais, de controle e de jurisdição, ao ponto de descaracterizar integralmente a vocação universal e representativa da Constituição.
A par do exemplo do esfacelamento orçamentário, que referi, há a questão fundamental das agências,[19] inseridas no âmbito das relações públicas a partir dos processos de privatização de bens e serviços públicos, sob a justificativa da eficiência administrativa,[20] e dos Bancos Centrais,[21] além de outras tantas instâncias de tomada de decisão, formulação de políticas públicas e resolução de conflitos, órgãos dotados de “autonomia”, cujos titulares exercem atividades que deveriam ser públicas, decidem sobre direitos, sobre obrigações e estabelecem e implementam políticas “públicas”, retirando dos Poderes tradicionais boa parte de suas atribuições e, mais grave, impedindo a atuação de governo e de controle por órgãos e pessoas dotadas de representação política.
Constituem um campo de sítio, em torno dos Poderes, interpondo-se em sua comunicação com o povo constituinte ou representado. São corpos intermediários cuja representatividade é setorial, ligados a estruturas de empreendimento e prestação de serviços pertencentes aos âmbitos econômico e social. São espelhos daqueles clubes, privados e exclusivos, cujos porta-vozes aparecem, de quando em quando, na mídia, graças ao trabalho das chamadas “assessorias de imprensa” e “relações públicas”, para emitir opinião: a versão e a argumentação de interesses corporativos, privados, maquilada de interesse da nação.
As agências estabelecem ou obtêm um estatuto próprio que, à guisa de possibilitar a gestão e fiscalização de atividades por entes privados, acabam por impossibilitar a atuação dos poderes e órgãos de representação legítima universal.
São estratos (status), estruturas que visam a impedir o acesso e a comunicação entre representantes e representados legitimados – agora, ficticiamente, ou, no limite, falsamente – por escolhas populares viciadas pela imiscuição de mecanismos de deturpação de campanhas. Mecanismos derivados ou que constituem mesmo um dos modos do estado de sítio.
Entre povo e poder passam a resumir a comunicação no modelo dos “serviços de atendimento ao consumidor” (SAC): o povo consome e o Estado presta serviços terceirizados, por órgãos que os assumem, nas privatizações, ou usufruem de uma relação de parceria público-privada. As agências “reguladoras” passam a ser meros fios de ligação entre os agentes e interesses de mercados e representantes dos terceirizados – empresas ou corporações privadas.
As estruturas dos corpos intermediários, historicamente, correspondem a castas ou estados. Assim como ocorreu com a relação de suseranias, sucedida pela relação de soberania, igualmente o Estado tomou o lugar dos estados, status, que eram características de distinção conectadas às pessoas, originadas de sua inserção em determinados grupos, concebidos e conceituados jurídica e politicamente. Na Antiguidade, havia uma dinâmica de status, que concedia a cada pessoa um lugar na organização da vida privada e pública: libertatis (grau de liberdade), ciuitatis (pertencimento público, cidadania) e familiae (pertencimento doméstico, na estrutura hierárquica familiar, com pleno direito ou com direito dependente de outrem). Eram formas de conceder e compreender as capacidades jurídicas e seus limites. No prosseguimento da cultura romana, misturado a contribuições culturais de outros povos, sob a coordenação do pensamento e da prática religiosa (dos monoteísmos), durante a chamada Idade Média até a derrocada do Antigo regime, estamentos, que cercavam ou sitiavam as relações pessoais e o acesso ao domínio das coisas e das pessoas. Praticamente, castas ou raças, segmentando a sociedade e permitindo ou proibindo, restringindo ou ampliando acessos, mudanças, intercâmbios, mas preservando sempre uma hierarquia, uma aura que impedia (do ponto de vista normativo) as proximidades.
O estado, particípio do verno estar, indica estabilização, uma espécie de fait accompli, mais do que estável, imutável. É o termo que será posto para definir a sociedade (chamada equivocadamente, como vimos, de) política. Ele lhe concede um caráter acabado, completo, corroborando a autoridade que acompanha a alienação da força, que passa a deter com (quasi-) monopólio. O Estado, em sua formação, subtrai e desloca para si as capacidades jurídico-políticas de pessoas e grupos, e as conserva, concebendo-as e concedendo-as como forma de delegação de seu próprio e definitivo status.
Quando a ordem neoliberal se instaura, ela faz o resgate dos estados, retirando o espírito do Estado e recompondo os corpos intermediários e seus privilégios, acentua o sistema de castas ou raças, destituindo a pretensão da universalidade. Esse novo sistema se utiliza do Estado, em um primeiro momento, se não de modo constante, para justificar uma nova hierarquia econômico-social: grupos, castas, raças que se põem como superiores, e que passam a deter o privilégio de viver no Estado, próximas ao Estado, usufruir de privilégios na relação com o Estado.
Paulatinamente, esses novos estados vão descartando o próprio Estado, retirando dele sua capacidade de competir com suas capacidades jurídico-políticas, derivadas de sua força econômico-social. Retomando seu aspecto de interposição entre a capacidade estatal e a societal, e a querem desempenhar com monopólio.
O que os impede de monopolizar a capacidade jurídico-política é, por um lado a permanência, mesmo em déficit, da capacidade do Estado, e, por outro, tanto a concorrência entre as várias oligarquias, permitindo, de tempos em tempos, consensos ou oligopolização da política, quanto a resistência de desejos e movimentos democráticos. Para evitar essa resistência e a aproximação entre povo e Estado, o estado de sítio completa a revivescência desses corpos intermediários.
O estado de sítio contemporâneo vai se caracterizar, então, por
- a) intenção de restringir ou impedir pautas dos interesses e direitos legítimos democráticos;
- b) cerceamento do fluxo de comunicação e decisão;
- c) fixação de cerco permanente em torno do Estado, por meio de vários assentamentos de perturbação;
- d) violência dos discursos antidemocráticos — os ataques virtuais e reais e as ameaças, além da efetivação de disparos e ataques físicos ao povo e às instituições que resistem mais ou menos a essa porosidade com os grupos intermediários, aos três poderes e a suas praças de acesso;
- e) ruído como forma de manifestação no cotidiano da antipolítica;
- f) sítio das mídias sociais: redes (anti-)sociais versus acesso à informação por mídias verdadeiramente vocacionadas ao trabalho de imprensa; influenciadores versus representantes legítimos; seguidores versus cidadania;
- g) cerco das fake news;
- h) esfacelamento das estruturas de comunicação real e de obtenção de informação garantida, além da captura das mídias tradicionais por grupos e interesses corporativos;
- i) usurpação e corrupção do discurso democrático; e assédio e tomada das instituições, que, paradoxalmente, atacam;
- j) distúrbios que disseminam o medo e visam a disciplinar e encaminhar as reivindicações para o uso da força, das forças de segurança contra si , isto é, o próprio povo – com o agravamento, no Brasil, em decorrência da militarização e das estruturas tradicionais e permanentes de segurança, destinadas a defender o patrimônio dos que tudo têm contra os que nada possuem: um Estado que sempre se pôs contra o povo, que é constantemente lançado à periferia e discriminado;
- k) imposição de temas que praticamente exigem conhecimento esotérico, de iniciados, técnico: a mistificação e mitificação da ciência correspondente à desvalorização da verdade do método da ciência e do processo de educação e de constituição científica;
- l) orçamento demarcado e inacessível às políticas públicas sociais e constitucionais;
- m) usurpação das agências do povo por mecanismos de delimitação de temas e setorialização de reivindicações, impedindo a visão da complementariedade advinda da transversalidade;
- n) império do virtual: sites (sítios) como negação e substituição do espaço publico: redes antissociais, privadas e o comércio dos corpos e dos dados;
- o) digital como meio;
- p) jurídico como agência;
- q) economia como único discurso competente, subvertendo mesmo as próprias tentativas (de correntes) da ciência econômica de imporem limites e caveat a suas afirmações;
- r) constantes disparos contra o saber, sua difusão e debate e os modos de informação, formação e comunicação;
- s) desafio permanente de meios técnicos à concretização da presença;
- t) a prevalência dos modos de (anti-)comunicação virtual, inclusive em atividades, mesmo públicas — como a justiça -, que solapa a capacidade de desenhar e constituir empatia e compaixão com os dramas e o sofrimento, de se indignar contra os atentados à dignidade humana e da natureza: o desdém e a apatia com a dor alheia e a violência;
- u) a revivescência das ordens: religião e riqueza;
- v) a ameaça, a guerra, o extermínio como maneiras de ser de um uma performance governamental estataliforme, que corresponde à falsificação do Estado, que fala por, e se serve de, e visa a enriquecer as mídias privadas e a indústria bélica. como modo de atuação e discurso pretensamente remetendo a formas tradicionais de atuação do Estado e das sociedades políticas, em geral;
- w) a governação como administração desintegradora e interessada;
- x) a constituição de vários campos e grupos em estado de ilicitude, em cumplicidade com, ou com porosidade em relação aos aparatos estatais: corporações de força econômica, social, militar.
São algumas das várias facetas desse fenômeno que conjuga estado de sítio e corporativismo. O que se pode observar é que o cerco se faz por meio de estruturas e processos de ordem material e imaterial, que visam não apenas a dificultar as conexões e a comunicação, mas igualmente a visão e a percepção das próprias relações.
Estabelecem o contorno da atuação das oligarquias e de implementação e exercício do autoritarismo contemporâneo, que se difunde no espaço/tempo que configura o Estado e a sociedade. Ameaçam e se põem frontalmente contra o regime democrático e põem em risco o processo que vivemos de sua ampliação e enriquecimento. Um fenômeno que, particularmente no Brasil, está logrando minar a relação de representatividade e legitimidade do exercício do poder democrático por seu governo.
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O Estado de Sítio. Teocracia/Teoeconomia; Agronejo/Colonialismo
A estrutura e o sistema jurídico-políticos contemporâneos experimentam mais essa crise, em conclusão.
Essa crise pode ser compreendida de vários modos, assim como explicada de várias maneiras. De modo geral, há um debate acerca do que se tem denominado de esfera pública, entendida como essencial para a existência da democracia contemporânea. Essa esfera seria constituída não apenas de um espaço (real ou virtual) comum, no qual o debate sobre as questões públicas (ou as questões individuais e coletivas de interesse público) se desenvolve, mas igualmente como ambiente de exercício autônomo ou heterônomo de uma moralidade pública. Essa moralidade teria, em decorrência ou como resultado do processo do constitucionalismo contemporâneo, ao se desprender da esfera meramente das convicções privadas, passado a ser compreendida como direito constitucional, tornando-se, portanto, uma instituição. O comportamento humano na esfera pública passou a ser constrangido por uma série de direitos e deveres, enunciados explicitamente nos documentos constitucionais. Esses documentos enunciariam por meio de uma linguagem pretensamente neutra, ou, pelo menos, imparcial, quer dizer, pronunciada ou proposta pelo todo, aspectos considerados indiscutíveis ou fundamentais da concepção de humanidade ou de condição humana, tendo, portanto, eficácia potencialmente universal. Essa visão de esfera pública corresponderia à reivindicação europeia de herdeira da civilização helênica, em processo contínuo de conversão dos demais povos, afetados pela cosmovisão considerada adequada ou superior da convivência humana, individual e plural.
Já fiz criticar essa cosmovisão e seu empreendimento histórico de dominação, opressão e exploração dos espaços, dos seres e dos povos do mundo, no processo de colonização.[22] Igualmente, critiquei as pretensões desse constitucionalismo e do direito constitucional que teria gerado.[23]
O que pretendi realizar até aqui, no presente artigo, foi apontar o aspecto bastante ficcional, pretensioso e ilusório dessa concepção de esfera pública, mediante uma crítica ao mesmo tempo histórica e teórico-pragmática. Mostrar como essa concepção é mesmo falaciosa, por virar os olhos para as dificuldades havidas no curso do estabelecimento do constitucionalismo a que recorre, como se se tratasse de um artefato perfeito, elaborado com as melhores intenções. Ainda, que essa esfera pública não passa da atualização dos processos constitucionais dos quais se considera herdeira, escondendo essa herança por meio de uma pretensa visão exterior do legado que assume. Legado do qual não se envergonha, muito embora ciente de suas raízes viciadas, e que procura apresentar de modo virtuoso e ideal. Em uma palavra, desejaria ter feito demonstrar como as reivindicações e os resultados desse constitucionalismo são responsáveis pela própria crise, que procuram definir sem abandonar os vícios que escondem.
Para tanto, salientei um aspecto que considero crucial dessa crise, em contexto de ataque à democracia, à equidade e de busca de refazer e impor o autoritarismo.
Acreditei ter podido explicar esse conflito e dado a resposta, ao menos parcial, às questões que abordei, assim como, de modo mais amplo e analítico, à compreensão desse fenômeno crítico contemporâneo, que envolve outras questões, numa análise do que chamei de estado de sítio, basicamente o cerco que se empreende ao espaço e ao tempo da política e de seu poder, por estruturas antipolíticas de força, que pretendem, não apenas no Brasil, mas globalmente, desvincular a experiência coletiva da democracia e da justiça, ou mesmo desfazer a constituição histórica do espaço e do tempo da política, por meio da reprivatização dos modos e dos meios de relacionamento humano e natural.
É essa análise que quis levar a cabo, brevemente, no presente artigo. Esse cerco em torno do espaço/tempo da política marca a cena de. nossa experiência comum contemporânea.
Tradicionalmente, o termo estado de sítio é empregado em situações de conflito e guerra. Ele instrumentalizou, juridicamente, em seguida à Revolução Francesa, o estado ou modo de fazer o combate denominado de guerra de sítio. Na transfiguração de uma situação de fato belicosa para uma regulação normativa, o movimento passou a ter contornos de legitimidade, mas não mais voltado para o a situação embate de defesa (externo). Não mais para um inimigo externo. O estado de sítio é uma configuração jurídico-política de segurança, voltado a proteger a organização estatal de um inimigo interno, que ameaça a existência do regime (republicano) e seu desenvolvimento. A questão está em saber quem é esse inimigo interno.
Foi nessa definição do inimigo interno que o constitucionalismo e o direito constitucional expuseram sua capacidade de subversão e perversidade, negadoras do impulso revolucionário que, propositalmente, apresentavam como inspirador e justificador dos institutos que criaram – após o aplacamento da energia revolucionária e, acredito ter conseguido demonstrar, contra as finalidades e desejos da revolução.
A lei militar francesa de 10 de julho de 1791 estabelecia que haveria três tipos de praça de guerra e postos militares: os concernentes a l’état de paix, l’état de guerre e l’état de siège. Três estados de conflito diversos: a paz, a guerra e o estado de sítio. Isso significa que a sociedade passava a ser compreendida como um processo permanente de conflito, concebido como três modalidades de estado de guerra, para os quais se armam postos militares e praças de guerra, isto é, um constante miliciamento, um ânimo militante. Nessa militância pervasiva, mesmo o estado de paz era considerado como um modo de praça de guerra e de atuação militar. A par de seu estatuto civil, envolvia‑o uma postura tipicamente guerreira (anticivil, portanto, mas posta sob a justificativa de sua manutenção). Há uma tutela militar constante sobre o modo como a sociedade se comporta e dá ensejo a graus diversos de conflito. A paz é um período de guerra presente, latente: encoberto, subentendido. Essa guerra pode eclodir e dar ensejo a dois outros modos de conflito manifesto: a guerra, propriamente, pela disposição externa, portanto, defesa, e o sítio, que migra para o âmbito interno, no conflito relativo à segurança.
O inimigo externo é a força estrangeira. O interno, a própria cidadania, quer dizer, o povo, considerado em sua condição de permanente aptidão para a ocupação definidora da política: democracia. Essa aptidão é chamada de perturbação da ordem e objeto da atuação mais repressora das forcas militares, que suprimem todo poder civil e assumem suas funções.
No estado de paz, é a polícia e todos os atos de poder civil emanados das autoridades e de outros funcionários civis, postos pela Constituição, que velarão pela manutenção das leis, a autoridade dos agentes militares podendo se estender sobre as perturbações e sobre outros assuntos, dependendo do serviço que prestem.
No estado de guerra, os funcionários civis não deixarão de cumprir suas funções de cuidar da ordem e da polícia interior, mas poderão ser requisitados pelo comando militar para desempenhar as funções que importem para a manutenção da segurança. Há uma combinação entre assembleia e rei, na decretação de quais praças estarão em estado de guerra.
Finalmente, no estado de sítio, toda autoridade dos funcionários civis para a manutenção da ordem e para a polícia interior passarão ao comendo militar, que as exercerá exclusivamente, sob sua responsabilidade pessoal.
O Estado de Sítio, voltado a combater as perturbações de ordem interna permaneceu “regulado” dessa forma vaga e ampla até 1849, quando, após muitas decisões da Corte de Cassação francesa, foi determinada uma melhor determinação de seu conteúdo e limitação mais precisa do âmbito de atuação militar.
Não é por outro motivo, em face da amplitude e indeterminação originais do estado de sítio, que os golpes buscam abrigo institucional em sua decretação, tentando dar moldura legal a um ato grave de violação jurídico-política.
Mas é sobretudo da concepção de que o estado de sítio (estado manifesto de guerra interna) é permanente, e que abarca de modo mais radical o estado de paz (seu estado latente), que a situação de risco à democracia e incremento autoritário tira usa energia.
Essa concepção está ligada à do renascimento dos corpos intermediários e instrumentaliza a persistente intenção, a ameaça e a tentativa constante que fazem de invadir o espaço/tempo jurídico-políticos.
A perigosa ideia de que a sociedade civil é pacífica e passiva seria uma ficção, posta pelo Neoliberalismo, não existe sem antecedentes, então. O estado de guerra permanente subverte a ideia de que a sociedade (anti-)política moderna, ou o Estado, teria sido fundada por um pacto de cessação da violência. A violência continua a circular no interior dessa sociedade, mas se concentra em alguns campos e nas mãos de alguns grupos. Contra o poder do Estado – que deteria, na concepção consagrada por Max Weber, ou, mais precisamente, postularia o monopólio do exercício legítimo da violência — exercem uma força que permite a alguns ocuparem posições privilegiadas, impedindo o acesso da maioria a espaços materiais e imateriais, privando a sociedade de convivência. Esses exercem a força seja em razão de fatores econômicos ou sociais, seja em razão puramente de fazerem atuar a força que possuem, em geral determinada pela posse de armas e de outros mecanismos dinâmicos de infligir medo, empreender coerção.
O interessante é observar que essa ideia de que o conjunto das pessoas seria uma massa que não compõe coletividade nem sociedade, destituída de laços de identificação comum, precisou ser formulada por figuras que se utilizaram do Estado, e exerceram funções de comando no Estado, para que fossem introduzidas e difundidas de modo incisivo na prática e no pensamento contemporâneos. Margareth Thatcher, no Reino Unido e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, utilizaram-se de seus papéis de líderes de Governo para dizer que o Estado era desnecessário, ineficiente e responsável pelos problemas da humanidade. Ao mesmo tempo, afirmaram que a sociedade civil não existia, só havendo indivíduos, que disputariam bens e valores materiais em busca da própria felicidade, em uma competição absoluta, que comporiam uma massa indiferenciada, jamais um povo habilitado a uma capacidade, oriunda de sua composição ou organização.
O Neoliberalismo, portanto, faz extinguir as ideias de uma sociedade unificada culturalmente, advinda da ficção liberal. Não há mais povo nem nação. O povo (por exemplo, nos Estados Unidos e na concepção de Rousseau) ou a nação (na visão, por exemplo, de Sieyès) encarnariam, segundo o desenho e o contexto retrospectivos que fundamentaram os desejos e os projetos revolucionários, assim como o traçado prospectivo do constitucionalismo e do processo constitucional pós- (e anti-) revolucionários, o ideal de uma sociedade unida por características imateriais, pretensamente tradicionais. Já para a concepção neoliberal essa ficção da tradição assume aspectos de fragmentação e diferença, com a existência e a justificação de grupos privilegiados, em detrimento de povos discriminados. Aqueles guardariam os valores do bem, enquanto esses, a ameaça de um mal inventado ao sabor das circunstâncias. Essa concepção neoliberal faz um pacto definitivo com o racismo e a escravização do trabalho, que a ordem liberal, por conveniência, afirmava combater.
Nessa sedimentação de uma tradição conveniente, o Neoliberalismo retoma a aliança com o discurso teo-crático e teo-econômico. Uma narrativa religiosa bastante inventiva e deturpadora dos próprios textos em que afirma se basear, vai justificar desigualdades sociais, pregar a subserviência a padrões hierárquicos de (anti-) socialidade, a atomização social e o exercício do poder como modo de perpetuação de uma organização doméstica opressora. Para isso, ele faz um novo pacto com as religiões monoteístas, concebidas de maneira às vezes fundamentalista, outras, hipócrita. Duas faces da mesma moeda, em que a religiosidade é desrespeitada e preconizada como forma de dominar ou de aceitar a dominação. Seu corolário é, como sempre, o moralismo falso por definição.
A par dessa falsa e manipulada religiosidade, a cultura é também desvirtuada, nesse processo de invasão virtual dos fundamentos de uma sociabilidade já fragilizada. Note-se, por exemplo, no Brasil, a difusão de uma maneira agroneja de expressão. O setor hegemônico agropecuário de produção e comércio exportador, chamado pretensiosamente de agroindustrial ou de agronegócio (preferencialmente pelo uso do termo agrobusiness) cria e financia uma cultura monótona e monocórdica de entretenimento, que reflete e copia fórmulas estereotipadas de comportamento de comunidades rurais norte-americanas: a cultura do cowboy estilizada, que descaracteriza vestuário, música e vocabulário, empobrecidos pela estandardização e reprodução exaustiva de temas de sentimentalismo, evidentemente falso, e de autoafirmação perante uma realidade inexistente. O agrochic, forma de neo-nouveaurichisme, complica a cópia da vida e da indumentária rancheiras, pelo acréscimo de símbolos de riqueza, na transformação do corpo pelos exagerados recursos estético e fisicultural.
A monocultura diz respeito à dizimação do espaço agrícola e pecuário, pelo avassalador predomínio do latifúndio e das extensas áreas de arrendamento, voltados à exploração e exaustão da terra, por limitadíssimo número e qualidade de grãos e animais, muitos mesmo exóticos – que se reproduzem na paisagem quase-urbana dos condomínios horizontais, em que o desenho arquitetônico também tem como tônica o “visto lá fora” e o desprezo pelas plantas e paisagens nativas. Essa monocultura que destrói a natureza e esgota a terra, que cria horizontes desconsolados, enfadonhos e desoladores, reproduz-se na cultura rural ressentida, que impõe a repetição insuportável dos mesmos sons, mesmos instrumentos, mesmos ritmos, mesmos passos, mesmas danças, mesmas imagens, mesmos ornamentos, mesmas palavras, mesmos gestos, enebriados por um psitacismo que quer convencer a si e a seus consumidores e consumidoras, embriagados pela imposição de uma felicidade fátua, da veracidade do que todos sabem ser pasteurizado, kitsch.
Esse setor agronejo, que repete, reproduz e aprofunda o movimento colonizador, domina a economia e a cultura do espaço do espetáculo e do tempo da performance. A cultura, nesse sentido ambíguo, empobrece-se e aliena-se. E se alia ao grande capital das empresas internacionais produtoras de insumos e de maquinário de grande porte, que torna agressivo os próprios atos ancestrais de arar, plantar e colher, ao lhes dar uma aparência de empreendimento industrial, na transformação simples – ornada de grande engenho – das usinas e dos grandes postos de armazenamento, empórios e portos. Ocupam o imaginário social, seu tempo e emperram sua mobilidade e sua capacidade de inovação verdadeira, a partir da recriação, que seria desejável, dos aspectos mais autênticos dos modos de ser, de conviver e de fazer plurais. Essa classe dominante agroneja também invade o espaço do que se diz, noticia, importa e exporta. Ocupa a pauta do social, do político e do econômico. Onera orçamento e desequilibra a balança comercial, de ambos os lados, impedindo o curso de um processo desejado de desenvolvimento e de sustentabilidade. Fixa, na complementariedade da ideia de desenvolvimento, que se desenrola nos Países que importam o produto de menor valor agregado, o ciclo de subdesenvolvimento, de cujas consequências pretende se afastar, por seu padrão de consumo. Dois ciclos que se explicam, em sua oposição, e se complementam, em sua dependência.
A aliança desse setor dá-se, igualmente, com o financeiro. Num processo cada vez mais desigual de acumulação de riqueza e, na outra ponta, empobrecimento da imensa maioria. A colonização, agora, é pervasiva. O desapossamento e a destruição natural adquirem uma lógica perversa de fábrica, em que setores formais e empresariais, ou informais e ilegais, de exploração individual ou coletiva – como na mineração, por exemplo – empreendem uma lógica de parceria. Continuam a se utilizar de financiamento e subsídios, ao mesmo tempo em que reclamam do Estado e de sua capacidade cada vez mais restrita de controle e fiscalização.
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Fragmentação da Soberania. O Povo para Dentro e para Fora
Estado e sociedade, no Brasil, estão separados por um grande fosso, cavado por um aparato anticonstitucional preparado a mil mãos.
É a essa ordem estratificada e de intensa disputa territorial, na qual a noção de administraçãoprevalece sobre a de constituição,[24] que pertence a noção de guerra de sítio, da qual vai derivar o conceito e a instituição do estado de sítio. Como pretendi demonstrar, essa noção, que vai permear a experiência contemporânea política e jurídica, e que permanece viva nos chamados direito constitucional e constitucionalismo contemporâneos, está vinculada à também sobrevivência – e ressurgência com intensa força – dos corpos intermediários. Há uma relação instrumental recíproca e fundamental entre corpos intermediários e estado de sítio, que explica, de minha perspectiva, o drama constitucional e democrático que ora vivenciamos. Explica o fosso existente entre Estado e sociedade, a presença de inúmeros agentes ou agências intermediárias entre o Estado e o conjunto da cidadania, num cerco que impede a realização da constituição e restaura o império do administrativo (e do econômico), em detrimento do jurídico (e do constitucional).
O autoritarismo ou a tirania contemporâneos decorrem da imposição cultural da ideia de que, para a massa, a coesão somente se impõe pela força, exercida por um líder carismático, que usurpa o espaço público e passa a agir em pretenso nome do povo, mas em representação direta de interesses de grupos econômicos, sociais e militares.
O esforço comum dos povos que ainda vivem e sonham a democracia e a capacidade que a existência política e jurídica possui de proporcionar o bem viver, a felicidade de que falavam os Antigos e reivindicava o espírito revolucionário dos Modernos é essencial, porque é o único caminho para desfazer as rodas do parafuso que tentam impor a supressão das liberdades pela implementação de novos autoritarismos.
Assim, a pergunta está em saber que (des)caminhos e ritmos estão postos a enfrentar esse movimento aparentemente avassalador da nova lógica oligárquica. Como sempre, esses espaços e tempos da discórdia cidadã, do levante ou sublevação, da ocupação ou dissensão e da liberdade,[25] estão postos na forma de agir e fazer dos povos, considerados em seu conjunto, portanto, não apenas na contraposição nacional, mas, sobretudo, internacional, aos regimes de dominação, opressão e exploração.
Não apenas resistência, mas, sobretudo, ação democrática.
Diante do sítio ou cerco que impede a relação povo-política, que formas podem observar para restabelecer e continuar a construção democrática, é o que passo a procurar estabelecer.
Cercado em seu próprio território, que não consegue mais administrar, o Estado se volta para fora. É como que empurrado para fora.
Cercado territorial e funcionalmente, o Estado busca brechas para reencontrar o seu povo.
Mas são o povo, internamente, e o conjunto dos povos, na sociedade internacional que, em primeiro lugar, serão os agentes virtuosos dessa tentativa de reconexão.
Nos dois casos, externo e interno, essa reconexão se dá pela ideia de povos ou nações, recuperando, de modo diverso e original, as abstrações que fundaram a soberania moderna e o Neoliberalismo refutou, como complemento de sua negação da soberania.
O que é esse povo e o que significa essa nação na atualidade é preciso perquirir e resolver, para dar ao poder (κρατία) o real e atual contorno de sua atualidade e titularidade (δῆμος).
À analise que fiz anteriormente, a que remeto leitora e leitor, das características desse povo para dentro ou para si,[26] gostaria de acrescentar algumas observações breves, tendo em vista a contraposição do povo aos modos do estado de sítio e dos corpos intermediários.
Embora a fragmentação que define a concepção dos corpos intermediários encontre correlato na intensidade da diversidade – e reivindicações de identidade – do povo contemporâneo, parece-me evidente que forças centrípetas de coletividade de ação e de solidariedade, de busca de enraizamento ou de laços com ancestralidade, a par de união e mesmo de fusão cultural, contrapõem-se à forma como atua e postula a realidade o regime neoliberal.
Não há muito espaço para que me detenha no destrinchar dessas características, pelo que peço, uma vez mais, licença a quem acompanha minha reflexão, para referir outro trabalho em que esses temas encontram melhor explicitação.[27]
Mas há o movimento do povo para fora, a que corresponde a fuga dos modos de atuar dos governos, sitiados pelas estruturas neoliberais, no sentido das relações complementares internacionais, procurando uma aliança entre novos atores estatais e de empatia planetária das gentes.
Trata-se, antes de tudo, da possibilidade de restauração da antiga concepção do ius gentium, que comporia, com o ius ciuile e o ius naturale, a tríade definidora da situação cidadã no mundo da ciuitas. O ius naturaleseria aquele que a natureza teria ensinado a todos os animais, que transcenderia, pois, o humano, numa composição universal da natureza. O ius civile, o direito relativo a normas escritas e costumes específicos a cada sociedade político-jurídica. O ius gentium, afinal, o direito comum a todos os povos.
Não se trata, bem assim, do direito internacional, na concepção moderna, mas, propriamente, aquele que é composto, em conjunto, pela contribuição das múltiplas nações e de seu impulso de cooperação civilizador. Não imposto, portanto, pelas tantas hegemonias mundiais, mas trabalhado em colaboração horizontal entre os vários povos.
Não corresponde aos esforços de construção da ordem internacional d(a chamada era d)os direitos, mas, como vislumbro, de uma nova Era das Deveres e Obrigações,[28] iniciada, a partir da década de 1970, pelos documentos internacionais de preocupação e de índole ambiental, bem como pelos documentos de preocupação coletiva e afirmativa da solidariedade, como a Declaração Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Assim, é na aproximação entre os povos e entre os Países que preservam coalizões democráticas, como resultado dos jogos eleitorais, muito embora os riscos e problemas que falseiam e fragilizam o mecanismo da representação legítima. Países como o México, a Colômbia, o Uruguai, o Chile e o Brasil, nas Américas.
Esse abrigo externo, hospitalidade que fundamenta o jurídico.[29]
A democracia é na verdade, o regime da igualdade da presença no espaço/tempo pública e da palavra. Quem está presente? E quem busca impedir essa presença, fazendo do governo uma abstração distante?
Vimos como, na contemporaneidade da oligarquia neoliberal, se estabelece o distanciamento, a partir da recomposição original do estado de sítio e dos corpos intermediários.
Será que os povos espelham essa configuração, por meio de corpos intermediários que emanam de si e de estruturas de ocupação que minam o estado de guerra permanente?
Essa é a indagação fundamental, para atendermos qual é o par dialógico dessas práticas atuais e discursivas do sítio e da intermediação fragmentária.
A fragmentação ocorre, portanto, também, do lado do povo. Isso não apenas porque há uma dispersão de pautas, por um povo, que se vê, identifica-se, expressa-se e apresenta-se como muitos povos, com múltiplas raízes – que busca conhecer e recuperar, para moldar um discurso mais coerente e ativo, para construir reivindicações mais precisas, para além das estruturas do universalismo das declarações internacionais.
Fundamentalmente, há a procura por meio desses novos discursos de disputa do domínio da linguagem, que constitui novos espaços/tempos públicos, e essas novas práticas consagram novas formas de conceber e exercer o poder, ao dar concretude a seu elemento precisamente democrático: o δῆμος adquire contornos mais definidos, uma face mais realista.
Um dos aspectos decisivos é que os vários povos encontram no âmbito internacional novos fóruns de comunicação e deliberação, portanto, constituem novos espaços públicos de composição de direito, compondo novos deveres que serão aplicados, a partir de fora, do espaço internacional ou transnacional, aos Estados. São as normas standards, de origem na escritura do direito do comércio internacional, que serviam a impor um direito trasladado dos protagonistas dessa visão mercantil do mundo, mas que, agora, passam a ser formuladas por grupos sociais, como as organizações não-estatais (non-government organizations, NGO, ONG), ou por movimentos ou coletivos sociais, ainda por agentes individuais que se inserem, como observadores ou colaboradores nos organismos internacionais capazes de propor e mesmo impor novas normas para serem adotadas por países, membros ou não desses organismos. Aparecem sob o nome de novas e melhores práticas e se tornam normas jurídicas ou quase-jurídicas.
Por meio desses grupos, estabelecem-se, igualmente, espaços de formação, moldada pelo interesse em criar capacidades de formulação de práticas, normas e políticas, por meio da construção de projetos, apresentados a agentes nacionais ou internacionais de financiamento.
São novos paradigmas de participação e de legitimidade, sem a interferência da representação. E permitem que esse novo espaço/tempo da política e do direito forje uma concepção de paz diferente daquela preconizada pelos organismos internacionais criados após os conflitos internacionais do Século XX.
Por exemplo, a Organização das Nações Unidas punha como objetivo fundamental da ordem internacional o fim das guerras internacionais, as guerras entre Estados. Essa ordem nova pretendia, sobretudo, encerrar o modo de solução de conflitos por meio do uso de armas. Estava voltada, precipuamente, a findar o ciclo de embates entre as potências europeias.
Até recentemente, esse projeto foi eficaz, ao empreender dois movimentos: o primeiro de domesticar os conflitos, nos dois sentidos do termo “domesticar”, isto é, tornar disciplinadas e internalizar as guerras. O segundo, o de retirar as guerras do ambiente europeu, em particular, e do Norte Global, em geral, restringindo-as a conflitos internos dos Países fora dessa área. Retirar, portanto, o caráter político das guerras e torna-las particularizadas, na forma de embates religiosos, étnicos, etc. Nesse sentido, as guerras passaram a ser assunto doméstico e privado a regiões e Países. A ordem internacional não mais agia como agente da guerra, mas na forma da intervenção humanitária: intervenção como mecanismo do direito de guerra).
É importante observar que a Era dos Direitos não suprimiu o mecanismo da guerra, mas apenas o domesticou, estabelecendo regras para a sua consideração jurídica, no embate entre as partes envolvidas, e para a juricidade da intervenção.
Muito bem, na Era dos Deveres e Responsabilidades, a paz passa a ter um sentido mais ativo. Não se trata mais e apenas da situação de supressão da violência explícita. Propõe-se uma paz que suprima todos os modos de violência, materiais e imateriais. Além disso, que haja uma postura ativa dos Estados e da sociedade internacional, no sentido de difusão cultural de uma cultura da paz que deixe de ser somente um estado de latência de conflitos (guerra e sítio, como acentuei).
A paz passa a ser uma forma de supressão absoluta da possibilidade de recurso à violência interna e internacional para solucionar conflitos, compreendidos como modos de expressão de divergências na convivência, e que determinam maneiras de atuação preventiva e restaurativa, de impedimento não propriamente de contraposições, consideradas naturais ao convício social, mas de essas se tornarem sistêmicas ou estruturais. Uma cultura de constante escuta de reclamos e de abertura de canais de livre expressão e de responsividade ou responsabilidade no fornecimento de respostas e de meios de resolução dos problemas. Ou seja, fazer justiça e impedir a perpetuação e a multiplicação de injustiças em todos os ambientes.
Mais do que uma paz positiva, trata-se de uma paz presente, modo difuso de compreender a própria sociedade política autêntica, que dizer, a democracia.
À dissensão, a criação, construção e a ocupação do espaço/tempo da política corresponde a expressão da dissensão que passa a ter na própria política que define a maneira de sua solução, em eterno empreendimento de difusão e concentração da liberdade.
Em síntese, contra o estado de sítio, a ocupação democrática e a paz; contra os corpos intermediários, a expressão dos povos que compõem deveres e responsabilidades. A diversidade desses povos substitui a falsa universalidade, que era e ainda é uma imposição de modos de ser e fazer dos Estados e das oligarquias que se consideram hegemônicas — disfarçando o serem minorias sob o nome de povo ou nação ou de vanguardas elitistas. “Elitistas” não no sentido de serem escolhidas, mas no sentido de se auto escolherem.; “vanguardas” não no sentido de dotadas de capacidade de avanço e protagonismo, mas apenas como se pretendem denominar.
Dessa forma, a participação passa a paulatinamente ser recomposta e se tornar o modo de fazer política, com o reapossamento da legitimidade, antes pretendida apenas pela forma da representação.
É preciso, pois, recuperar também a ideia de legitimidade, que foi abandonada quando a ordem da dominação oligárquica quis dar a imagem de um mundo totalmente submetido a normas jurídicas, em que a solução das questões sociais se resumiria a um universo meramente garantista da rule of law, o império da lei. O direito, porém, vai além da ideia de lei e se perfaz não pela obediência ou submissão, mas pelo fazer em conjunto, construir modos de convivência cada vez melhores e não se submeter a modelos preestabelecidos, impostos. O direito é autonomia e não heteronomia.
Como autonomia, o direito precisa da legitimidade. Não se diz só como lei. O direito, portanto, deriva da democracia.
São essas as anotações que apresento para a compreensão daquilo que, contrapondo-se ao movimento da dominação das novas oligarquias, constitui não uma nova democracia, mas o movimento constante de aperfeiçoamento do regime do povo.
(Como citar este artigo: ATTIÉ, Alfredo. “Autoritarismos Neoliberais: o Estado de Sítio” in Academia Paulista de Direito. Breves Artigos, publicado em 22.03.2025. Acesso em https://apd.org.br/estado-de-sitio-e-autoritarismos-neoliberais-por-alfredo-attie/)
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NOTAS
[1] É o resumo de minha contribuição aos eventos, ocorridos, respectivamente, em quinze de dezembro de 2024 e vinte e sete de fevereiro de 2025, em resposta ao gentil convite, em verdade, à pertinente e veemente convocação do Instituto Novos Paradigmas para a formulação de propostas para o mundo contemporâneo, no Ciclo de Discussões levado a cabo no G20 Social, no Rio de Janeiro, e no evento que antecedeu à posse do atual Presidente da república Oriental do Uruguai, Yamandú Orsi, da Frente Ampla, em torno do tema Democracia, Equidade e Enfrentamento do Autoritarismo, do qual tive o prazer de participar, ao lado de queridos amigos e amigas, sob a coordenação do jurista, ex-Ministro, ex-Governador do Rio Grande do Sul, ex-Prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro. A experiência foi extremamente rica, graças à contribuição das pessoas e das instituições e dos movimentos da sociedade civil, a par de representantes do Governo, do Brasil, do Uruguai, do Chile e de outros Países.
[2] Alfredo Attié é jurista, filósofo e escritor, Doutor em Filosofia da Universidade de São Paulo, onde estudou Direito (FD.USP) e História (FFLCH.USP). É Presidente da Academia Paulista de Direito e Titular da Cátedra San Tiago Dantas, na qual sucede a Goffredo da Silva Telles Jr. Conselheiro da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Autor dos livros: Direito e Economia: Ponto e Contraponto Civilizacionais (no prelo, São Paulo: Tirant, 2025); África Constituinte (no prelo, São Paulo: Tirant, 2025); Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados (São Paulo: Tirant, 2023); O Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito (São Paulo: Tirant, 2021), Towards International Law of Democracy (Valência: Tirant Lo Blanch, 2022); A Reconstrução do Direito: Existência. Liberdade, Diversidade (Porto Alegre: Fabris, 2003); e Montesquieu (Lisboa: Chiado, 2018), também é mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela FD.USP e em Direito Comparado pela Cumberland School of Law, foi Procurador do Estado de São Paulo, Advogado e Juiz de Direito e exerce a função de Desembargador do Tribunal de Justiça paulista. Membro de entidades internacionais, participando ativamente de foros para a defesa e construção dos direitos humanos, a paz, a democracia e a proteção do meio ambiente. Site: http://apd.org.br; E‑mail: aattiejr@gmail.com; Mais informações em http://lattes.cnpq.br/8117126316669740. ORCID: https://orcid.org/0000–0001-7854–7696.
[3]“C’est signe de guerre! — C’est sûr ! — C’est signe de rien. — C’est selon. — Assez. C’est la chaleur … — Suffit. — Elle siffle trop fort. — Elle assourdit surtout. — C’est un sort sur la cité ! — Aïe ! Cadix ! Un sort sur toi ! — Silence ! Silence ! ” CAMUS, Albert. L’État de Siège : Spectacle en Trois Parties. Paris : Gallimard, 1948. Traduzi, livremente.
[4] “Ai-je parlé du ciel, juge ? J’approuve ce qu’il fait de toutes façons. Je suis juge à ma manière. J’ai lu dans les livres qu’il vaut mieux être le complice du ciel que sa victime.” Id. ibid. Traduzi, livremente.
[5]“… unde Iustitia, Fides, Aequitas? Nempe ab iis qui haec disciplinis informata alia moribus confirmarunt, sanxerunt autem alia legibus.” CICERO. De Re Publica. I,2. Traduzi, livremente.
[6] ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2022; ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfredo. “Anticonstitucionalidade e Antipolítica” in Democracia e Direitos Fundamentais, Porto Alegre: Instituto Novos Paradigmas, publicado em 04/08/2021, acessível em https://direitosfundamentais.org.br/anticonstitucionalidade-e-antipolitica/.
[7] Sobre a diferença entre pacto e contrato ver: ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.
[8] Öffentlichkeit, public sphere, espace public.
[9] ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.
[10] Para a diferença entre o constitucional e o administrativo, ver ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.
[11] Veja-se, à guise de exemplo, o artigo ATTIÉ, Alfredo. “Revolução Constitucional Ignorada”, em Brasil 247, publicado em 13 de Agosto de 2023, disponível em https://www.brasil247.com/blog/revolucao-constitucional-ignorada. Pretendo, em breve, aprofundar essa análise, em livro que fará a crítica do Direito Constitucional, propondo e buscando realizar uma abordagem diferente e plástica das Constituições.
[12] Ver ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021; ATTIÉ, Alfredo. Towards International Law of Democracy. Valencia: Tirant, 2022; ATTIÉ Jr, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.
[13] A experiência europeia tornou-se relevante em decorrência da imposição de suas doutrinas e práticas administrativas e constitucionais no curso da conversão, exploração e opressão decorrentes de sua colonização de outras partes e outros povos do Mundo, processo evidentemente eficiente, como resultado da violência que lhe era implícita, na busca incessante de destruir a especificidade de outras experiências e doutrinas. Ver ATTIÉ Jr, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.
[14] Trabalho essa distinção entre pensamento e projeto revolucionários, por um lado, e constitucionalismo, por outro, em ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.
[15] No panfleto Qu’est-ce que le Tiers-État? que viria se tornar a obra inaugural do constitucionalismo contemporâneo europeu, com larga influência no mundo colonial, responsável pela inserção na teoria do direito constitucional da noção de poder constituinte.
[16] ATTIÉ Jr. Alfredo. A Reconstrução do Direito Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.
[17] Veja-se, recentemente, ATTIÉ, Alfredo. “Justiça para as Cidades” in A Terra é Redonda, publicado em 28.06.2024, disponível em https://aterraeredonda.com.br/justica-para-as-cidades/; e ATTIÉ, Alfredo “México – a Reforma do Poder Judiciário” in A Terra é Redonda, publicado em 28.10.2024, disponível em https://aterraeredonda.com.br/mexico-a-reforma-do-poder-judiciario/.
[18] Ver ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.
[19] No Brasil, ver as leis 9.427, de 26 de dezembro de 1996, 9.472, de 16 de julho de 1997, 9.478, de 6 de agosto de 1997, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 9.961, de 28 de janeiro de 2000, 9.984, de 17 de julho de 2000, 9.986, de 18 de julho de 2000, 233, de 5 de junho de 2001, 11.182, de 27 de setembro de 2005, 10.180, de 6 de fevereiro de 2001; e 13.848, de 25 de junho de 2019, e a Medida Provisória 2.228–1, de 6 de setembro de 2001.
[20] No Brasil, o momento de início de inserção das agências data de 1997, após o início precisamente, do processo de privatizações.
[21] Lei Complementar nº 179/2021, no Brasil,
[22] ATTIÉ Jr, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.
[23] ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.
[24] ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.
[25] ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfredo. “Liberdade, Dissensão, Sublevação: movimentos, sentimentos e versões da política e do direito” in Solon, Ari et al. (coord.) Múltiplos Olhares sobre o Direito: Homenagem aos 80 anos do Professor Emérito Celso Lafer, volume I, São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 547–575.
[26] ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.
[27] ATTIÉ, Alfredo. África Constituinte. São Paulo: Tirant, 2025, no prelo.
[28] ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.
[29] ATTIÉ Jr, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdase, Diversidade. Porto Alegre: Fabris, 2003.