Estado de Sítio e Autoritarismos Neoliberais [1]

Alfredo Attié [2]

 

 

Tra­ta-se de arti­go que resume a con­tribuição de Alfre­do Attié a dois even­tos coor­de­na­dos pelo Insti­tu­to Novos Par­a­dig­mas, em dezem­bro de 2024, no Rio de Janeiro, Brasil, e em fevereiro de 2025, em Mon­te­v­idéu, Uruguai.

Nele, o autor demon­stra com o neolib­er­al­is­mo teria des­feito a ordem insti­tu­cional cri­a­da pelo lib­er­al­is­mo e bus­ca­do implan­tar estru­turas de sal­va­guar­da econômi­co-soci­ais no inte­ri­or da esfera políti­ca, voltadas a impedir que o Esta­do pudesse fun­cionar. Sola­par, sobre­tu­do, os liames de rep­re­sen­tação políti­ca e a capaci­dade de o poder políti­co garan­tir dire­itos, faz­er cumprir deveres e desem­pen­har políti­cas públi­cas.

O autor mostra como se apre­sen­tam e fun­cionam essas estru­turas, de que modo desconec­tam Esta­do — destru­in­do sua legit­im­i­dade — e sociedade — con­te­s­tando sua existên­cia e relevân­cia. Legit­im­i­dade alcança­da e relevân­cia preser­va­da, a duras penas, no cur­so do proces­so, de idas e vin­das, per­me­a­do de obstácu­los, de con­strução repub­li­cano-democráti­co-social.

A reflexão empreen­di­da pelo autor procu­ra enten­der a razão de a políti­ca estar mais uma vez em xeque, com o des­man­te­la­men­to dos mecan­is­mos e das insti­tu­ições que os solid­i­ficaram, em sua capaci­dade de ati­var val­ores e práti­cas, como a igual­dade, a sol­i­dariedade e a liber­dade, abrindo cam­in­ho para o recom­posição de um regime oligárquico, cor­po­ra­ti­vo e autoritário, que Attié denom­i­na de anti­con­sti­tu­cional­i­dade e antipolíti­ca.

A tese prin­ci­pal está em que essa ordem neolib­er­al, por meio dessas estru­turas, fez reviv­er a ideia e a práti­ca da guer­ra de sítio, recon­fig­u­ran­do o esta­do de sítio, seu sucedâ­neo jurídi­co, como instru­men­to volta­do a não ape­nas impedir o fun­ciona­men­to das estru­turas políti­cas, cuja insti­tu­cional­i­dade bus­ca inces­san­te­mente destru­ir, mas, tam­bém, resta­b­ele­cer a insti­tu­cional­i­dade dos cor­pos inter­mediários.

A revivescên­cia, por­tan­to, de insti­tu­ições próprias ao Anti­go Regime, no modo como sobre­viver­am e foram mes­mo recu­per­adas e retra­bal­hadas no proces­so pós-rev­olu­cionário do con­sti­tu­cional­is­mo.

Con­sti­tu­cional­is­mo que — can­ta­do em prosa e ver­so pelas doutri­nas tradi­cional e con­tem­porânea do Dire­ito Con­sti­tu­cional, como se fora uma resul­tante das rev­oluções ingle­sa, norte-amer­i­cana e france­sa, mas —, na for­ma como o autor o inter­pre­ta e crit­i­ca, efe­tivou-se num momen­to con­sec­u­ti­vo e de reação a essas rev­oluções.

Leia o arti­go, na ínte­gra, a seguir.

Como citar este arti­go: ATTIÉ, Alfre­do. “Autori­taris­mos Neolib­erais: o Esta­do de Sítio” in Acad­e­mia Paulista de Dire­ito. Breves Arti­gos, pub­li­ca­do em 22.03.2025. Aces­so em https://apd.org.br/estado-de-sitio-e-autoritarismos-neoliberais-por-alfredo-attie/

O arti­go pode, tam­bém ser lido, como pub­li­ca­do pelo Por­tal 247, em três partes:

Parte 1: capí­tu­los 1 a 5, inclu­sive;;

Parte 2 : capí­tu­los 6 a 9, inclu­sive;

Parte 3; capí­tu­los 10 e 11.

 

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Pode ser um sinal de guer­ra; talvez, de coisa nen­hu­ma; calor insu­portáv­el de Cádiz, ven­to forte e ensur­de­ce­dor. Feitiço que cai sobre a cidade.[3]

Falei do céu, seu juiz? Apro­vo tudo o que esse céu faz, do seu jeito. Faço-me de juiz, tam­bém. Sei que é mel­hor ser cúm­plice do céu do que sua víti­ma.[4]

De onde vier­am a justiça, os laços de con­fi­ança e a equidade? Com certeza, daque­las pes­soas que, infor­madas pela exper­iên­cia dess­es ensi­na­men­tos, con­fir­maram-nos por meio dos cos­tumes e os insti­tuíram pelas leis.[5]

 

  1. Introdução

Tol­er­a­do e respeita­do, dis­ci­plina­do pelo lib­er­al­is­mo, o Esta­do tornou-se, para o regime neolib­er­al, um mal desnecessário.

No pre­sente arti­go, pre­tendo, breve­mente, mostrar de que modo o neolib­er­al­is­mo des­fez a ordem insti­tu­cional cri­a­da pelo lib­er­al­is­mo e bus­cou implan­tar estru­turas de sal­va­guar­da econômi­co-soci­ais no inte­ri­or da esfera políti­ca, voltadas a impedir que o Esta­do pudesse fun­cionar. Sola­par, sobre­tu­do, os liames de rep­re­sen­tação políti­ca e a capaci­dade de o poder políti­co garan­tir dire­itos, faz­er cumprir deveres e desem­pen­har políti­cas públi­cas.

Min­ha intenção é mostrar como se apre­sen­tam e fun­cionam essas estru­turas, de que modo desconec­tam Esta­do – destru­in­do sua legit­im­i­dade – e sociedade – con­te­s­tando sua existên­cia e relevân­cia. Legit­im­i­dade alcança­da e relevân­cia preser­va­da, a duras penas, no cur­so do proces­so, de idas e vin­das, per­me­a­do de obstácu­los, de con­strução repub­li­cano-democráti­co-social. Enten­der, assim, a razão de a políti­ca estar mais uma vez em xeque, com o des­man­te­la­men­to dos mecan­is­mos e das insti­tu­ições que os solid­i­ficaram, em sua capaci­dade de ati­var val­ores e práti­cas, como a igual­dade, a sol­i­dariedade e a liber­dade, abrindo cam­in­ho para o recom­posição de um regime oligárquico, cor­po­ra­ti­vo e autoritário, que denomi­no de anti­con­sti­tu­cional­i­dade e antipolíti­ca.

Min­ha tese prin­ci­pal está em que essa ordem neolib­er­al, por meio dessas estru­turas, fez reviv­er a ideia e a práti­ca da guer­ra de sítio, recon­fig­u­ran­do o esta­do de sítio, seu sucedâ­neo jurídi­co, como instru­men­to volta­do a não ape­nas impedir o fun­ciona­men­to das estru­turas políti­cas, cuja insti­tu­cional­i­dade bus­ca inces­san­te­mente destru­ir, mas, tam­bém, resta­b­ele­cer a insti­tu­cional­i­dade dos cor­pos inter­mediários. A revivescên­cia, por­tan­to, de insti­tu­ições próprias ao Anti­go Regime, no modo como sobre­viver­am e foram mes­mo recu­per­adas e retra­bal­hadas no proces­so pós-rev­olu­cionário do con­sti­tu­cional­is­mo. Con­sti­tu­cional­is­mo que – can­ta­do em prosa e ver­so pelas doutri­nas tradi­cional e con­tem­porânea do Dire­ito Con­sti­tu­cional, como se fora uma resul­tante das rev­oluções ingle­sa, norte-amer­i­cana e france­sa, mas –, na for­ma como o inter­pre­to e criti­co, efe­tivou-se num momen­to con­sec­u­ti­vo e de reação a essas rev­oluções.[6]

 

  1. Liberalismo, Soberania, Território, Constitucionalismo e Força

O sis­tema econômi­co lib­er­al, a par­tir da con­tribuição e do impul­so deci­si­vo de Adam Smith, viu na estru­tu­ra estatal, então em con­strução – como, de resto, ain­da está –, uma ali­a­da, salien­tan­do as atribuições do “sober­a­no” de guar­da da ordem social e de instru­men­to para pos­si­bil­i­tar o desen­volvi­men­to da(s) liberdade(s) econômica(s). Esse desen­volvi­men­to esta­va fun­da­men­ta­do nas ideias e nas práti­cas:

a) da acu­mu­lação e con­cen­tração cres­cente do cap­i­tal, medi­ante a expro­pri­ação e a explo­ração do tra­bal­ho;

b) da divisão social do tra­bal­ho, medi­ante a con­strução de mecan­is­mos de dis­ci­plina e de con­t­role do tra­bal­ho, da cul­tura e do tem­po social;

c) da imposição do sis­tema de fábri­ca, basi­ca­mente um modo de dis­ci­pli­nar e con­tro­lar a trans­for­mação de coisas sim­ples em pro­du­tos ou mer­cado­rias, em val­or para o comér­cio; mod­e­lo que vai se repro­duzir em todos os mod­os de vida social, dis­tribuin­do funções, hier­ar­quias e vig­ilân­cia por todos os espaços e tem­pos de existên­cia, mar­can­do a saúde e a doença das pes­soas a par­tir de seu proces­so de con­sti­tu­ição de um cor­po social que se com­preende ape­nas diante das máquinas que o instru­men­tal­izam, para faz­er alguns lucrarem em tro­ca da sub­mis­são dis­ci­pli­nar e salar­i­al de todos; e

d) da con­sti­tu­ição da pro­priedade pri­va­da – em ver­dade a negação da ideia de pro­priedade –, pela desconexão entre o humano e a ordem das coisas, e pela per­son­al­iza­ção ou sub­je­ti­vação da relação real (isto é, antes deter­mi­na­da pela impos­si­bil­i­dade físi­ca e jurídi­ca de apro­pri­ação de todas as coisas), que tor­na a aquisição de domínio um proces­so de (de)marcação da real­i­dade por poucos, em detri­men­to da imen­sa maio­r­ia.

Muito bem, para asse­gu­rar essas funções, o lib­er­al­is­mo pen­sou e real­i­zou estru­turas e práti­cas e desen­hou uma práti­ca dis­cur­si­va, volta­da a con­fig­u­rar a ordem “jurídi­ca” do Esta­do, como lim­i­tação ao poder, ou, mais apro­pri­ada­mente, dis­ci­plina da força do sober­a­no: especi­ficar suas atribuições e ordenar seu modo de agir.

Tomou como pon­to de par­ti­da a ideia de que o sober­a­no era – no iní­cio da cam­in­ha­da da con­sti­tu­ição históri­co-teóri­ca da tão propal­a­da “esfera públi­ca” (europeia e resul­tante de um pacto de elites) – uma per­son­agem cri­a­da pelo con­jun­to das oli­gar­quias, como for­ma de alien­ação da capaci­dade políti­ca que pos­suiri­am (ou acred­i­tavam poder reafir­mar), lev­a­da a efeito para pos­si­bil­i­tar a con­cen­tração da coerção (uso da força, não do poder) para impor o cumpri­men­to de pactos soci­ais. Pactos e não con­tratos, é impor­tante salien­tar, isto é, mod­os de imposição de decisões tomadas em relação hierárquica de capaci­dades. O sober­a­no é a insti­tu­ição da het­erono­mia, per­son­al­iza­da para pos­si­bil­i­tar que o domínio de alguns sobre a vida ou a ordem pri­va­da se trans­mi­ta à nova ordem públi­ca, que surge con­comi­tan­te­mente à engen­hosa invenção ou con­cepção de sua figu­ra. O Esta­do, por fig­u­rar um modo de alien­ação de capaci­dade de decidir, em con­jun­to, o des­ti­no comum, é a negação da autono­mia (políti­ca e jurídi­ca).

Se o sober­a­no, ou mel­hor, a con­fig­u­ração do sober­a­no foi o pon­to de par­ti­da dessa ordem – que será chama­da e tida como mod­er­na –, seu pon­to de chega­da seria a abstração dessa figu­ra, por meio de uma nova invenção: a sobera­nia. A sobera­nia des­figu­ra o sober­a­no e per­mite que as funções que foram imag­i­nadas para que exercesse, com unidade e uni­ver­sal­i­dade, sejam despedaçadas. Isso em decor­rên­cia da própria origem da sobera­nia, que foi o sucedâ­neo da práti­ca de susera­nias, for­mas de relação e de sub­mis­são plur­al, descen­tral­iza­da.

A susera­nia, no Medie­vo, era uma relação de ordem ter­ri­to­r­i­al, assim embasa­da na noção de domínio. Entre­ga­va-se a ter­ra, em tro­ca de defe­sa e segu­rança. Essa trans­mis­são era real­iza­da na for­ma de um pacto entre o suser­a­no e seu vas­sa­lo que, juran­do fidel­i­dade, pas­sa­va a exercer os dire­itos rel­a­tivos à pro­priedade, com­pro­m­e­tendo-se a prestar defe­sa a seu suser­a­no. A ideia de segu­rança é fun­da­men­tal. Era, claro, uma relação de pro­teção mútua, mas a vas­salagem fig­u­ra­va um dev­er especí­fi­co de dar pro­teção.

A sobera­nia, por sua vez, ao bus­car find­ar com o sis­tema frag­men­tário medieval, insere-se como mecan­is­mo igual­mente de pro­teção, tam­bém com base no ter­ritório. Ocorre que, na sobera­nia, os que for­mu­lam o pacto abrem mão da capaci­dade de exercer a guer­ra, por­tan­to, de prestar segu­rança, em favor do sober­a­no que cri­am. A obri­gação de prestar a defe­sa e a segu­rança pas­sa a ser do sober­a­no em relação aos súdi­tos, no sen­ti­do inver­so da relação suser­ana, em que o ter­ritório se frag­men­ta­va para que o vas­sa­lo garan­tisse a segu­rança do suser­a­no. Nos dois casos, aque­le que se põe na condição infe­ri­or, numa relação het­erôno­ma, hierárquica, pos­ta por um pacto,[7] jura fidel­i­dade. Todavia, na susera­nia, ele deve a pro­teção, em tro­ca da gestão ter­ri­to­r­i­al como domínio, enquan­to, na sobera­nia, ele perde a autono­mia dessa gestão ter­ri­to­r­i­al, (sujei­tan­do-se a uma dis­ci­plina do domínio, cujas regras serão estatuí­das pelo sober­a­no) em tro­ca da pro­teção que pas­sa a lhe dev­er o sober­a­no. A sobera­nia é a relação de susera­nia em seu sen­ti­do inver­so.

A frag­men­tação, porém, per­manece, mal­gra­do a afir­mação da sobera­nia de não recon­hecer poder supe­ri­or nem inter­no nem exter­no. Ela vai mes­mo se acen­tu­ar, na medi­da em que essa nova enti­dade – que pas­sa a ter o domínio sobre a plen­i­tude de um ter­ritório, e a exercer o domínio sobre a total­i­dade de seus habi­tantes –, per­manece lig­a­da aos sujeitos que a cri­aram e fun­daram sua nova ordem, depen­dente da relação esta­b­ele­ci­da pelo pacto sober­a­no.

No proces­so de insti­tu­cional­iza­ção dessa ordem do Esta­do, seus con­sti­tu­intes vão tra­mar uma teia dis­ci­plinado­ra e con­tro­lado­ra dos movi­men­tos e da lin­guagem do sober­a­no. Isso de modo a orga­ni­zar ou admin­is­trar o uso da força que o car­ac­teri­zaria. Essa dis­ci­plina se chamou legit­i­mação ou legit­im­i­dade, pon­to de par­ti­da, ago­ra, para um novo per­cur­so ou proces­so, que é o de con­strução especí­fi­ca daqui­lo que pas­saríamos a chamar de Esta­do.

Duas ideias fun­da­men­tam o Esta­do, no sen­ti­do de servirem como sub­stra­to para a sua com­posição: ter­ritório e monopólio do uso da força, que se trans­mu­da, por causa da legit­im­i­dade, em poder. Isso sig­nifi­ca que o poder pas­sa a ser força e o Esta­do, a ati­var mecan­is­mos cada vez mais fre­quentes de segu­rança (inter­na) e de defe­sa (exter­na).

É aqui que entra a grande sub­ver­são da ideia de políti­ca. Se essa esta­va vin­cu­la­da, des­de a Antigu­idade, a um espaço-tem­po de ocu­pação pop­u­lar – políti­ca era sinôn­i­mo de pre­sença do povo –, a mod­ernidade fará deslo­car esse espaço-tem­po de cidada­nia ou de democ­ra­cia, para, a par­tir desse desa­lo­ja­men­to (desse pau­lati­no desin­ter­esse por essa atu­ação e inter­ação pes­soal cole­ti­va), domes­ticar e ter­ri­to­ri­alizar o públi­co e seu sen­ti­do. O públi­co[8] pas­sa a ser um espaço (con­cre­to) ou órbi­ta (abstra­ta) de norma­ti­za­ção de um con­jun­to de estru­turas e de oper­ação de um feixe de funções, a exi­s­tir inde­pen­den­te­mente das pes­soas que nele habitam, por ele cir­cu­lam, ali desem­pen­ham seus mod­os de existên­cia. O povo tor­na-se mero sujeito – derivação de seu caráter ini­cial de súdi­to – con­tra­parti­da do sober­a­no – e obje­to da ativi­dade públi­ca (da sobera­nia), que pas­sa a ser chama­da de políti­ca. Essa palavra é des­ti­tuí­da de seu sig­nifi­ca­do (qual­i­dade da polis) e se tor­na um modo de agir de uma enti­dade abstra­ta, o Esta­do, cuja qual­i­dade é a sobera­nia. Os regimes da políti­ca pas­sam a se referir ao Esta­do e não mais à cidada­nia: por­tan­to, não mais impor­ta a vin­cu­lação entre poder e pre­sença.

Pas­sa a ser pos­sív­el exercer o poder em nome de out­rem, sendo insti­tuí­da a rep­re­sen­tação. Tor­na-se pos­sív­el pen­sar (e mes­mo inten­cional­mente for­mu­lar a ideia, e reit­er­ar a práti­ca e o dis­cur­so de) uma cidade sem cidada­nia, assim como uma polis sem políti­ca. A questão está, para essa ordem, em, de maneira cada vez mais com­plexa e, sobre­tu­do, oblíqua e dis­sim­u­la­da, exercer a força inter­na e exter­na­mente, acen­tuan­do a expro­pri­ação ou alien­ação das capaci­dades.

O Dire­ito Con­sti­tu­cional, dis­cur­so e modo de esta­bi­liza­ção (pet­ri­fi­cação, esta­ti­za­ção) do Con­sti­tu­cional­is­mo, sub­vert­erá a ideia, o dis­cur­so e a práti­ca da Con­sti­tu­ição,[9] vin­da des­de a Antigu­idade, transmudando‑a, cada vez mais, muito emb­o­ra de maneira mais acen­tu­a­da a par­tir do regime neolib­er­al, em Dire­ito Admin­is­tra­ti­vo.[10]

Assim, o lib­er­al­is­mo de raiz europeia asse­gu­rará sua hege­mo­nia dis­cur­si­va, expandin­do suas práti­cas – muito emb­o­ra de for­ma inver­ti­da, esta­b­ele­cen­do cada vez mais e maiores desigual­dades – para todo o Mun­do, por meio sobre­tu­do do proces­so col­o­nizador. O comér­cio e suas téc­ni­cas, depois, sua ciên­cia – da natureza e das causas da riqueza (e pobreza) das nações, a econo­mia políti­ca – suced­erão e sub­sti­tuirão out­ras práti­cas e dis­cur­sos, no cam­in­ho da dom­i­nação da humanidade e da natureza. Talvez pela primeira vez, o per­cur­so desigual de inte­gração mundi­al, de uni­ver­sal­iza­ção das con­sciên­cias e cul­turas, terá um vetor unifi­cador, jus­ti­f­i­can­do, na teo­ria e na práti­ca, o desen­volvi­men­to de relações com­er­ci­ais e de insti­tu­ições pre­ten­sa­mente públi­cas, mas voltadas à insti­tu­ição dessas relações, como mod­e­lo de relações humanas e do humano com a natureza.

  1. Neoliberalismo e Estado

Ape­sar do esquec­i­men­to, inten­cional ou não, dos dis­cur­sos e práti­cas de resistên­cia a esse proces­so, é evi­dente que ele não se fez prevale­cer sem que hou­vesse out­ros dis­cur­sos e práti­cas, no sen­ti­do inver­so à con­sti­tu­ição de sua aparente hege­mo­nia. Um dess­es mod­os de con­tra­posição deu-se mes­mo na ordem inter­na­cional, que a com­er­cial­iza­ção das relações aju­dou a con­stru­ir.

Na órbi­ta inter­na­cional pas­sou-se a con­sti­tuir uma tra­ma de dire­itos, deveres e garan­tias, por meio do dire­ito inter­na­cional insti­tuí­do a par­tir do fim dos con­fli­tos mundi­ais do Sécu­lo XX, por meio das declar­ações de dire­itos inter­na­cionais e region­ais e a cri­ação de instân­cias de jul­ga­men­to e de imple­men­tação de obri­gações.

Isso não se deu, con­tu­do, ape­nas e exclu­si­va­mente no âmbito inter­na­cional. A tra­ma de relações, tex­tos e insti­tu­ições jurídi­co-políti­cas de pro­teção foi sendo esta­b­ele­ci­da em proces­so de inte­gração con­stante entre aque­le âmbito exter­no e o inter­no dos vários Esta­dos, que se puser­am como sujeitos do dire­ito inter­na­cional, com pre­ten­são de exclu­sivi­dade – impos­ta, diga-se com ênfase, pela con­cepção de dom­i­nação europeia em expan­são.

Quer diz­er que as Con­sti­tu­ições dos vários Esta­dos pas­saram a se comu­nicar com a ordem inter­na­cional, tor­nan­do inter­no o que era declar­a­do como exter­no ou inter­na­cional.

A Con­sti­tu­ição brasileira de 1988 é um exem­p­lo típi­co, vívi­do e extrema­mente rel­e­vante dessa inte­gração. Ela esta­tu­iu, des­de o iní­cio, que a ordem inter­na­cional dos trata­dos e con­venções sobre dire­itos humanos faria parte inte­grante do próprio tex­to con­sti­tu­cional. Uma Con­sti­tu­ição dota­da, como con­sidero, de plas­ti­ci­dade, em sua capaci­dade de mod­i­ficar-se e enrique­cer-se a cada declar­ação de dire­itos inter­na­cional. De tal sorte que a Con­sti­tu­ição pos­ta nos sites ofi­ci­ais de gov­er­no ou edi­ta­da para aquisição em livrarias e ban­cas não cor­re­sponde ao ver­dadeiro tex­to desse doc­u­men­to essen­cial para a vida cidadã.  E os man­u­ais de Dire­ito Con­sti­tu­cional, em sua pobreza doutrinária, não con­seguem com­preen­der e trans­mi­tir o alcance e a relevân­cia dessa plas­ti­ci­dade.[11]

Entre­tan­to, essa ordem jurídi­co-políti­ca, con­tra­pos­ta aos impul­sos deter­mi­na­dos pela chama­da mod­ernidade, terá como obstácu­lo a real­i­dade do mun­do con­tem­porâ­neo, que negou, con­stan­te­mente a eficá­cia dos dire­itos, seja na per­pet­u­ação do colo­nial­is­mo, seja na con­fig­u­ração d(e um)a “guer­ra fria,” isto é, a com­petição por hege­mo­nia por meio da exten­são da com­petição entre as potên­cias europeias, a um dual­is­mo de potes­tades. Essa con­tra­posição dual per­mi­tiu que os país­es hegemôni­cos estim­u­lassem e impul­sion­assem a instau­ração de regimes dita­to­ri­ais, em suas órbitas de influên­cia ou dom­i­nação, pon­do em risco democ­ra­cia e dire­itos.

O fim aparente desse esta­do dual abriria espaço para insti­tu­ição da ordem neolib­er­al. Nes­sa ordem estarão pre­sentes as ideias, os dis­cur­sos e as práti­cas do esta­do de sítio e dos cor­pos inter­mediários, que pas­so a explo­rar, e que são o obje­to pri­mor­dial deste arti­go, porque expli­cam os atu­ais riscos à democ­ra­cia e aos val­ores que rep­re­sen­ta, bem como con­stituem a maneira como os novos autori­taris­mos se vêm inscreven­do nos vários País­es.

  1. Economia, Mestra do Mundo: Comercialização e Domesticação

O Neolib­er­al­is­mo não sig­nifi­ca ape­nas uma mudança fun­da­men­tal na con­cepção lib­er­al de existên­cia. A ordem lib­er­al, mal­gra­do as questões que acabo de evi­den­ciar, não deixou se ser per­me­áv­el a con­tribuições pen­sadas, ini­cial­mente, como antilib­erais, ou, mais cor­re­ta­mente, ilib­erais, ter­mo que se tor­na cor­rente, na lit­er­atu­ra inter­na­cional.  Quer diz­er, o lib­er­al­is­mo soube con­ju­gar-se a ideias de origem e cun­ho social­ista, advin­das dos movi­men­tos de tra­bal­hadores e tra­bal­hado­ras e do enga­ja­men­to de int­elec­tu­ais, que redi­gi­ram tex­tos sem­i­nais para com­preen­der as defi­ciên­cias de fun­da­men­to e de práti­ca, e os prob­le­mas orig­i­nais da insti­tu­cional­iza­ção da imag­i­nação lib­er­al.

Em sua ver­são mais afei­ta à democ­ra­cia, o lib­er­al­is­mo acabou por faz­er inserir nos doc­u­men­tos jurídi­co-políti­cos e nas insti­tu­ições estatais e, em algu­ma medi­da, pri­vadas, assim como em sua própria teo­ria – modificando‑a sub­stan­cial­mente – temas, con­ceitos, sug­estões, insti­tu­tos e mecan­is­mos, trans­for­man­do-as em New Dealssocias, econômi­cos, cul­tur­ais e políti­cos, que, ao serem pos­tos em práti­ca, foram deci­sivos não ape­nas para a orga­ni­za­ção da classe tra­bal­hado­ra, para o aces­so a, e a efe­ti­vação de dire­itos e garan­tias, como para a expressão cul­tur­al da diver­si­dade, com a aber­tu­ra de bre­chas nos proces­sos de dom­i­nação econômi­ca, políti­ca, cul­tur­al e social.

O Neolib­er­al­is­mo, ao con­trário, será imper­me­áv­el a qual­quer tipo de influên­cia de teo­rias e práti­cas difer­entes, que con­sid­era, por definição, rivais e inimi­gas. Ele se fun­da em duas con­cepções que rad­i­cal­iza, levan­do-as às últi­mas con­se­quên­cias, na medi­da da agres­sivi­dade com que tra­ta tudo o que seja diver­so de util­i­dade e inter­esse indi­vid­ual, tudo o que não seja econômi­co por definição.  Essas duas con­cepções são o nom­i­nal­is­mo e o util­i­taris­mo.

Ele exac­er­bará o proces­so de com­er­cial­iza­ção e econo­mi­al­iza­ção-domes­ti­cação (οκος-domus) do Mun­do.  Tudo pas­sa a ser pri­va­do, econômi­co, domés­ti­co; todas as coisas, mer­cado­rias; toda relação, negó­cio, no sen­ti­do mera­mente mer­can­til (busi­ness), e com­petição; toda paixão, todo inter­esse, toda razão são pri­va­dos e indi­vid­u­ais. A razão obser­va a sociedade e a descar­ac­ter­i­za como social. Há ape­nas indi­ví­du­os em per­ma­nente con­fron­to, que com­petem por inter­ess­es sem­pre legí­ti­mos, não impor­tan­do se mesquin­hos ou não.

Não há, nes­sa per­spec­ti­va, class­es nem qual­quer grupo social, insti­tu­ição políti­ca, agremi­ação cul­tur­al, uni­ver­si­dade. Tudo o que foi con­struí­do como cole­ti­vo é um equiv­o­co que deve ser destruí­do, em nome da ver­dadeira real­i­dade que o Neolib­er­al­is­mo pre­ga, o indi­vid­u­al­is­mo. Toda cole­tivi­dade é um mal e, desnecessário. Em razão de sua nocivi­dade, tem de ser removi­do. Não há pro­pri­a­mente dire­itos, ape­nas inter­ess­es. Não há deveres públi­cos, mas obri­gações nego­ci­ais. Não há tra­bal­ho como relação de dependên­cia, que deman­da pro­teção, mas empreende­doris­mo. A empre­sa não é senão um proces­so tem­porário, um pro­je­to de atu­ação para a obtenção de lucro, jamais uma insti­tu­ição econômi­ca. Não há pluri­lat­er­al­i­dade, sequer con­tratos pluri­lat­erais, con­sti­tu­tivos de sociedades, mes­mo com­er­ci­ais, ape­nas relações bilat­erais, em que a tro­ca tende a ser sem­pre desigual, porque cada parte alme­ja gan­har, à cus­ta de uma per­da uni­lat­er­al.

Nes­sa ordem, o Esta­do, noci­vo à con­fig­u­ração de uma con­cepção de mun­do nom­i­nal­ista – na qual desa­parece qual­quer vín­cu­lo dos seres humanos entre si e entre eles e o ambi­ente, seja nat­ur­al ou cul­tur­al, e se nega a existên­cia da sociedade políti­co-jurídi­ca – sua pre­sença ou a sim­ples menção a ele, pas­sam a ser ape­nas uma bar­reira ide­ológ­i­ca para a con­se­cução das relações econômi­cas: cada ente tem sua existên­cia, seu lugar per­ante os out­ros entes e seu con­tex­to, esta­b­ele­ci­dos como algo fugaz, fútil e frágil, tão-somente mar­ca­do por um inter­esse econômi­co util­itário, ou uma paixão de ordem mate­r­i­al. Aqui, a cos­mo­visão util­i­tarista joga um papel deci­si­vo.

Em decor­rên­cia dis­so, o Esta­do deve, antes de tudo, ser iso­la­do do povo. Povo que, segun­do a vel­ha teo­ria lib­er­al, o Esta­do rep­re­sen­taria. Esta­b­ele­ci­das bar­reiras em torno dele, cor­das para sufo­ca-lo. Todo bene­fí­cio que este­ja asso­ci­a­do a um pre­ten­so papel do Esta­do deve ser extin­to, para afas­tar qual­quer conexão, e afeição do povo por ele. O pre­juí­zo que o Esta­do pos­sa causar, ou se afirme que pos­sa causar, deve ser ressalta­do, ao pon­to de o Esta­do ser pos­to como inimi­go do social – com a extinção ple­na das estru­turas postas pelo Esta­do-Providên­cia (Wel­fare State).

Por out­ro lado, aparente­mente de modo para­dox­al, esse Esta­do – pen­sa­do como ter­mo retóri­co e não como insti­tu­ição, instru­men­to de sat­is­fação de for­mas de expressão mesquin­has  –  remanesce como ami­go de uma parcela da sociedade – que não se recon­hece como classe nem como agru­pa­men­to estáv­el ou per­ma­nente –, que se divide (segun­do afinidades de inter­ess­es pro­visórios, que mudam ao sabor da pre­visão de gan­hos econômi­cos)  em oli­gar­quias,  clubes (espaços pri­va­dos, de exclu­sivi­dade) dos ricos e famosos. Para aten­der a inter­ess­es dessas oli­gar­quias e seus clubes de inter­ess­es, faz-se ruir qual­quer expressão dis­trib­u­ti­va, dimin­uin­do impos­tos, des­fazen­do pro­gra­mas soci­ais e políti­cas públi­cas, extin­guin­do bene­fí­cios e garan­tias de toda ordem, sobre­tu­do do tra­bal­ho, e com­bat­en­do sím­bo­los de enga­ja­men­to e coop­er­ação social, como os vín­cu­los cul­tur­ais (artís­ti­cos, cien­tí­fi­cos, enfim, po(i)éticos, mod­os de faz­er mun­dos comuns, com­par­til­ha­dos e passíveis de provo­car novos dese­jos e desen­hos).

Assim que dele tomam posse – por meio de eleições pre­ten­sa­mente legí­ti­mas, mas mac­u­ladas por inúmeros vícios, entre os quais, por definição, o abu­so típi­co do modo de ser oligárquico – as novas oli­gar­quias (que estão sem­pre em com­petição, emb­o­ra façam aparentar con­sen­sos), pas­sam a fin­gir ser Esta­do, e a ado­tar um lin­gua­jar e um vocab­ulário for­ja­dos para incen­ti­var a ini­cia­ti­va pri­va­da, o empreende­doris­mo. Põem-se como ger­entes, gestoras, admin­istrado­ras de um espólio. Sub­stituem suas insti­tu­ições por agên­cias que, entre­tan­to, não atu­am, não agem, mas con­ce­dem agên­cia às oli­gar­quias, aos agentes econômi­cos priv­i­le­gia­dos.

Den­tro do Esta­do, no proces­so de cor­rosão insti­tu­cional que sofre, os agentes econômi­cos se insta­lam. E agem na exten­são de com­pri­men­to da cor­da que vai sufo­ca-lo. Sim­u­lan­do ocu­par esse lugar no inte­ri­or do Esta­do, em ver­dade, esta­b­ele­cem a ocu­pação do ter­ritório em torno dele, siti­am-no, para impedir que laços de comu­ni­cação ver­dadeira­mente políti­ca se façam entre ele e o povo que pre­tende­ria rep­re­sen­tar.

O povo é mais uma con­cepção cole­ti­va imag­inária e noci­va. Figu­ra uma pre­ten­sa real­i­dade, uma cat­e­go­ria nega­da por essa con­cepção de mun­do. Con­stan­te­mente ameaça­do, ata­ca­do, obser­va, pas­si­vo, atôni­to e temeroso, esse proces­so. Teme, cada vez mais, expor-se e se aprox­i­mar das estru­turas ou insti­tu­ições que antes recon­hecia. Essas insti­tu­ições podem preser­var nomes anti­gos, a vel­ha roupagem, mas são out­ras. Tor­nam-se agres­si­vas e repu­di­am qual­quer achega­men­to que não seja dos agentes econômi­cos e seus serviçais.

Ocorre, con­tu­do que esse cer­co, fig­u­ran­do o que denomi­no de esta­do de sítio, e essas oli­gar­quias, que se con­stituem em novos cor­pos inter­mediários, por meio de estru­turas que cri­am, em torno do Esta­do, pas­sam a ati­var uma con­fig­u­ração difer­ente da sociedade, muito emb­o­ra pre­tendam des­faz­er-se dela. É uma con­fig­u­ração econômi­ca e social, de cer­to, mas é antipolíti­ca, por natureza.

  1. O Regime das Oligarquias

Não gostaria, porém, que ess­es proces­sos que apon­to fos­sem vis­tos como tendên­cias inafastáveis, des­ti­nos de uma história tida como des­ti­no. Na ver­dade, são expressões pre­tendi­das e postas em ação por uma parcela da sociedade: suas oli­gar­quias e os gru­pos que, den­tro e fora do Esta­do, das insti­tu­ições públi­cas e pri­vadas, acred­i­tam poder impor uma nova ordem ao sabor de seus próprios inter­ess­es ou daque­las pes­soas e dos gru­pos a que servem.

Há visões de mun­do diver­sas e plu­rais, assim como pro­postas de encam­in­hamen­to de mudanças em sen­ti­do difer­ente e con­trário ao que com­põem o con­jun­to de relações que denom­i­namos de neolib­erais.

Talvez seja para fun­da­men­tar as críti­cas que essas con­cepções pos­sam faz­er ao Neolib­er­al­is­mo, e as pro­postas que ven­ham a apre­sen­tar, a par­tir de uma per­spec­ti­va inter­na e exter­na ao fun­ciona­men­to pro­pri­a­mente dito de Esta­dos, que escre­vo a pre­sente con­tribuição.

Muito bem, é essa real­i­dade que pre­tendo delin­ear no pre­sente tex­to, empre­gan­do aque­las duas cat­e­go­rias, a do esta­do de sítio e a dos cor­pos inter­mediários. São cat­e­go­rias, acred­i­to, que, de meu pon­to de vista, expli­cam esse fenô­meno e out­ros que se delineiam no entorno da trans­mu­tação da cos­mo­visão sobre­tu­do políti­ca que viven­ci­amos.

Como sem­pre, todavia, não vou me con­tentar em faz­er um diag­nós­ti­co, mas tentarei visu­alizar prognós­ti­cos, sim, mas sobre­tu­do meios de resistên­cia a esse avanço do antipolíti­co, do anti-humano, demon­stran­do como o povo se meta­mor­fo­s­eia e bus­ca impor sua condição de existên­cia, pre­sença e pen­sa­men­to, puxan­do a cor­da em out­ras direções e em out­ros sen­ti­dos, num con­fli­to para dar con­creção a dese­jos e con­sti­tuir sen­ti­dos à exper­iên­cia que se faz, na maior parte da história, de sofri­men­to. Esse sofri­men­to con­sti­tui um con­jun­to de paixões que, empre­gadas a par­tir de uma reflexão con­jun­ta, que se des­en­cadeia no cur­so da obser­vação de expressões cul­tur­ais orig­i­nais e dinâmi­cas, dão margem à cri­ação de novos desen­hos de mun­do.

Para mim, tra­ta-se, mais do que um embate entre dire­i­ta e esquer­da (expressões for­jadas a par­tir de uma exper­iên­cia bem cir­cun­scri­ta no tem­po e no espaço), do anti­go embate entre oli­gar­quia (e os regimes anti­jurídi­co-políti­cos que lhe são cor­re­latos) e a democ­ra­cia, o regime jurídi­co-políti­co, con­sti­tu­inte e con­sti­tu­cional por excelên­cia.

Há várias maneiras de diz­er esse embate, cuja con­sciên­cia se ini­cia na própria Antigu­idade de que é ori­un­do. Vai-se encon­trar, con­tu­do, em múlti­plas sociedades, que vivem o dra­ma de uma mino­ria quer­er dom­i­nar a maio­r­ia, con­cen­trar bens mate­ri­ais e ima­te­ri­ais em torno de si e exi­gir a sub­mis­são. Encon­tra-se, tam­bém, nas estru­turas e mecan­is­mos cri­a­dos para preser­var o poder das oli­gar­quias, por um lado, e para con­tro­lar esse poder ou mes­mo evi­tar que se instau­re, por out­ro.[12]

No regime neolib­er­al, ele se apre­sen­ta nu e dota­do de uma cru­el­dade mais agu­da, uma vez que o uso da lin­guagem, que, no regime ide­ológi­co crit­i­ca­do na teo­ria marx­i­ana, por exem­p­lo, ou nos dis­cur­sos de reg­istro reli­gioso, mes­mo jurídi­co-pos­i­tivista, no vocab­ulário das soci­olo­gias e das várias doutri­nas econômi­cas, vin­ha dis­sim­u­la­do, envolvi­do em vários mod­os de diz­er cir­cun­lo­quiais. Dobras e des­do­bras, voltas e revi­ra­voltas, cujo obje­ti­vo é invis­i­bi­lizar o encon­tro dos difer­entes e cri­ar empecil­ho para que se perce­ba a desigual­dade que guardam entre si.

Mas o Neolib­er­al­is­mo é dire­to, não dese­ja mais estru­turas de inter­me­di­ação lin­guís­ti­ca, das quais, aliás, des­den­ha. Ele propõe um dis­cur­so ver­dadeiro, uma abso­lu­ta veraci­dade, que é a sua própria ver­são do mun­do, isto é, a ver­são que é tida pelas oli­gar­quias como seu abri­go para con­hecer, enfrentar e der­ro­tar a mas­sa do povo. As oli­gar­quias moldam for­mas e fór­mu­las extrema­mente sim­pli­fi­cado­ras da com­plex­i­dade do mun­do, estip­u­lam arbi­trari­a­mente dico­to­mias, tomam par­tido do que seria a úni­ca ver­dade, a sua ver­são.

Para sal­va­guardar tais estru­turas de comu­ni­cação sim­plis­tas é necessário, claro, um mecan­is­mo de cri­ação e difusão de men­ti­ras, que serve para impedir que se analise e ques­tione a ver­são impos­ta como ver­dadeira. Essas men­ti­ras, então, voltam-se para descon­sti­tuir out­ras ver­sões, cer­ta­mente mais verossímeis, porque dotadas de capaci­dade de dúvi­da, de auto­ques­tion­a­men­to, enfim, de con­hec­i­men­to dos vários graus de incerteza de qual­quer afir­mação sobre o mun­do; com certeza mais prováveis, uma vez que con­scientes da neces­si­dade de faz­er acom­pan­har toda afir­mação sobre o mun­do de uma demon­stração con­vin­cente.

Em torno daque­la pre­ten­são de veraci­dade das ver­sões oligárquicas, da fal­si­dade dessa pre­ten­são e das men­ti­ras que as sal­va­guardam, for­mam-se agru­pa­men­tos, que se inter­põem entre o mun­do e o olhar das pes­soas e das sociedades. Ess­es são os gru­pos que vão assumir o papel que cabia, no Anti­go Regime, aos cor­pos inter­mediários. Obstácu­los, mar­cas, lin­has de demar­cação de ter­ritórios reais e imag­inários que se fix­am na real­i­dade do mun­do, armadil­has para o per­cur­so do olhar, sim­u­lações de real­i­dades, sim­u­lacros, lugares proibidos, esotéri­cos, fal­sa­mente acessíveis ape­nas a ini­ci­a­dos, atribuí­dos a priv­i­le­gia­dos deten­tores do saber trans­par­ente de todos os dados.  São sal­va­guardas que cri­am ignorân­cia e medo em torno das ver­dades pos­tu­ladas, que dizem ocul­tar.

O Neolib­er­al­is­mo, enfim, é uma dout­ri­na e uma práti­ca econômi­ca, que pre­tende tomar con­ta do dis­cur­so social e da sociedade, do dis­cur­so jurídi­co e das insti­tu­ições e nor­mas, do dis­cur­so públi­co e do espaço/tempo da políti­ca.

Por isso, fin­gin­do adap­tar ou mod­ern­izar a dout­ri­na lib­er­al, ele a sub­verte, ao falar em supressão (ou redução) da inter­venção do Esta­do, reti­ra­da de regras das relações econômi­cas, “fim do Esta­do”, por meio da pri­va­ti­za­ção dos serviços e dos bens públi­cos, por meio do “equi­líbrio” das con­tas públi­cas, isto é, diminuição da capaci­dade de o Esta­do realizar políti­cas públi­cas e inve­stir na diminuição das desigual­dades, cercea­men­to da capaci­dade de decisão do Esta­do, por meio da cri­ação de agên­cias de gestão e “reg­u­lação” de mer­ca­dos. O Esta­do deixa de ter poder para pas­sar a exercer uma ativi­dade mera­mente admin­is­tra­ti­va das decisões e dos recur­sos que per­manecem na esfera pri­va­da, con­cen­tra­dos nas mãos de grandes empre­sas, grandes redes cor­po­ra­ti­vas. O Esta­do pas­sa a ser ape­nas o “legit­i­mador” dos inves­ti­men­tos pri­va­dos, em ver­dade o fiador dos vícios pri­va­dos, trav­es­ti­dos de bene­fí­cios públi­cos.

Essa aliança das oli­gar­quias e a pos­tu­lação de pas­sarem, por suas empre­sas, a tomar con­ta dos espaços, dos serviços e dos bens públi­cos, mes­mo aque­les con­sid­er­a­dos essen­ci­ais pela anti­ga visão lib­er­al, aban­do­nan­do a sociedade ao deus-dará, reti­ran­do pro­teções soci­ais, mes­mo aque­las que impor­tavam ao lib­er­al­is­mo, como as regras e garan­tias dos con­tratos de tra­bal­ho, além daque­las trazi­das pelo Esta­do de Bem-Estar, como as vin­cu­ladas a dire­itos soci­ais, cul­tur­ais e ambi­en­tais, vão tor­nan­do o Esta­do desnecessário, des­fazen­do os liames de sua rep­re­sen­tação políti­ca legí­ti­ma.

  1. O Orçamento

Não é à toa que o orça­men­to públi­co se descar­ac­ter­i­za. Ele deixa de ter seu fun­da­men­to uni­ver­sal e inte­grador, de plane­ja­men­to, decisão e gestão de recei­ta e despe­sa públi­ca, para ser obje­to de apro­pri­ação por inter­ess­es frag­men­tários, de várias ordens, rep­re­sen­ta­dos por par­la­mentares, que esta­b­ele­cem uma vin­cu­lação indi­vid­ual ou social desli­ga­da da legit­im­i­dade da rep­re­sen­tação. Desa­parece o pro­je­to con­sti­tu­cional para dar lugar a uma bar­gan­ha ou leilão de pri­or­i­dades indi­vid­u­al­izadas, jul­gadas segun­do critérios iso­la­dos, afas­ta­dos do debate públi­co.

Chamou min­ha atenção, recen­te­mente, um pro­gra­ma imple­men­ta­do por Dep­uta­da Fed­er­al – não sei se out­ros par­la­mentares tam­bém empreen­dem algo semel­hante – rel­a­ti­vo a obter sug­estões, em respos­ta a edi­tal elab­o­ra­do por seu gabi­nete, de emen­das para uti­liza­ção de ver­bas do orça­men­to públi­co, medi­ante a apre­sen­tação de pro­je­tos de inter­esse local. Em segui­da a sua apre­sen­tação, os pro­je­tos seri­am pos­tos em uma platafor­ma e sub­meti­dos a votação por pes­soas inter­es­sadas.

Ao que tudo indi­ca, seria um meio – não exclu­si­vo, tudo indi­ca — para apre­sen­tação de emen­das ao orça­men­to públi­co, elab­o­ra­do, segun­do deter­mi­nação con­sti­tu­cional, pelo Poder Exec­u­ti­vo, para a dis­tribuição de ver­bas segun­do critério que a par­la­men­tar acred­i­ta ser pop­u­lar, ameal­han­do apoio para o exer­cí­cio de seu manda­to.

Na real­i­dade, porém, tra­ta-se de um artifí­cio, mais um capí­tu­lo no proces­so bas­tante prob­lemáti­co, do pon­to de vista políti­co e jurídi­co – salien­to essas suas per­spec­ti­vas, para me con­tra­por ao sen­so comum das notí­cias, comen­tários e anális­es (de mídia e espe­cial­is­tas), que se propõem a desven­dar os aspec­tos econômi­cos e pre­ten­sa­mente soci­ais — do con­fli­to que se esta­b­elece, mais uma vez, em nos­sa história, em torno da elab­o­ração e da efe­ti­vação do orça­men­to públi­co.

O con­fli­to atu­al mostra-se um enorme retro­ces­so na história políti­ca brasileira. Prin­ci­pal­mente se levar­mos em con­sid­er­ação que o Brasil foi respon­sáv­el pela pro­pos­ta e imple­men­tação de uma das mais sig­ni­fica­ti­vas con­tribuições à democ­ra­ti­za­ção da con­fig­u­ração da Admin­is­tração públi­ca, por meio do “Orça­men­to Par­tic­i­pa­ti­vo.”

Quero diz­er, com isso, que o Brasil aban­do­nou o proces­so de con­sti­tu­ição de uma for­ma de par­tic­i­pação políti­ca, que pen­sa­va o orça­men­to como um bem efe­ti­va­mente públi­co (quer diz­er, per­ten­cente ao povo), e sua elab­o­ração e imple­men­tação como um pro­ced­i­men­to de con­strução tam­bém públi­ca. Por­tan­to, um modo qual­i­fi­ca­do e legí­ti­mo de par­tic­i­pação efe­ti­va no exer­cí­cio do poder políti­co, e. sobre­tu­do, de com­par­til­hamen­to democráti­co da infor­mação a respeito de como seria for­ma­da e dis­tribuí­da a ver­ba públi­ca.

Essa ver­ba, con­sid­er­a­da, no dis­cur­so usu­al, como recur­so estatal para a real­iza­ção dos deveres públi­cos e das políti­cas públi­cas, deter­mi­na­dos pela Con­sti­tu­ição Fed­er­al, seria vista como aqui­lo que efe­ti­va­mente é ou dev­e­ria ser: a con­tribuição de cidadãs e cidadãos, e a cor­re­spon­dente ret­ribuição a cidadãs e cidadãos, em esforço comum para con­sti­tuir e man­ter o espaço e o tem­po públi­cos, isto é, para for­mar e aper­feiçoar a sociedade políti­ca.

Pen­sa­do desse out­ro modo, o orça­men­to tor­na-se inclu­si­vo o inte­gral.  É uma peça unitária e uni­ver­sal de con­strução democráti­ca, que indi­ca a inclusão e a inte­gração da própria sociedade em torno dos obje­tivos e val­ores (dire­itos e deveres) pos­tos por essa mes­ma sociedade na Con­sti­tu­ição.

Inte­gral,” “inclu­si­vo,” inclusão” e “inte­gração” são os ter­mos chaves, aqui. Indicam que a políti­ca é o resul­ta­do da par­tic­i­pação ínte­gra e ple­na cidadã. O orça­men­to exclu­si­vo e desin­te­gra­do nega a políti­ca, porque se tor­na uma mera peça admin­is­tra­ti­va, des­ti­tuí­da de legit­im­i­dade (jurídi­co-políti­ca) e dis­tante de sua com­preen­são con­sti­tu­cional.

 Sem par­tic­i­pação, isto é, inclusão e inte­gração, não há ver­dadeira­mente políti­ca.

O orça­men­to públi­co – aliás, como tudo que é públi­co – é, ao mes­mo tem­po, o proces­so e o instru­men­to de exer­cí­cio do poder públi­co democráti­co, o poder em atu­ação, atu­al­iza­ção, efe­ti­vação, numa palavra, o poder ati­vo ou a políti­ca em ação.

Se é assim, segun­do con­ce­bo, que devem ser postas as definições e questões, como explicar o con­fli­to que hoje se desen­volve em torno do orça­men­to? O desa­parec­i­men­to de seu caráter públi­co (ao pon­to de ser con­sid­er­a­do “secre­to,” em suas emen­das)? Sua per­da de inte­gri­dade, na for­ma de um esface­la­men­to? Seu apri­sion­a­men­to por assim chamadas “emen­das par­la­mentares,” na ver­dade remen­dos que apon­tam intenções diver­sas, pre­ten­sa­mente cole­ti­vas e locais, mas que negam o caráter inclu­si­vo e inte­gral que car­ac­teri­zaria o inter­esse públi­co? Sua uti­liza­ção como instru­men­to de tro­ca de apoio ou de sanção de con­tra­posição, em relação ao exer­cí­cio das atribuições esta­b­ele­ci­das pela Con­sti­tu­ição para os chama­dos Poderes da Repúbli­ca, sobre­tu­do do Exec­u­ti­vo? E a judi­cial­iza­ção desse con­fli­to, a par­tir de uma deman­da de per­fei­ta vis­i­bil­i­dade (ou seja, seu caráter de con­hec­i­men­to públi­co exigi­do pela mes­ma Con­sti­tu­ição)?

  1. Liberalismo e Nação. Neoliberalismo como Regime Antipolítico

Des­de o iní­cio de sua adoção como (anti-) políti­ca de deter­mi­na­dos gov­er­nos, que pas­saram a atu­ar para des­ti­tuir os Esta­dos de sua capaci­dade, pre­cisa­mente, de gov­er­nação, o neolib­er­al­is­mo teve como resul­ta­do o incre­men­to da con­cen­tração de riquezas nas mãos de poucos e a difusão ilim­i­ta­da da pobreza, levan­do ao colap­so dos sis­temas de pro­teção e ao ápice da difer­ença entre ricos e pobres.

O din­heiro dos poucos priv­i­le­gia­dos pas­sou a servir para a repro­dução ide­ológ­i­ca desse sis­tema – que exac­er­ba, no âmbito inter­na­cional, o apartheid social, com­pran­do equipa­men­tos e crian­do mod­os de edu­cação, for­mação e infor­mação cada vez mais acessíveis a uma parcela decres­cente e priv­i­le­gia­da da pop­u­lação mundi­al. O neolib­er­al­is­mo insti­tu­cional­i­zou o racis­mo como razão de Esta­do, impon­do seg­re­gação e impedin­do o movi­men­to nat­ur­al dos povos em bus­ca de mel­hores condições de vida.

Fez crescer a mis­er­abil­i­dade e a vul­ner­a­bil­i­dade, sub­train­do, desvir­tuan­do e pri­va­ti­zan­do mecan­is­mos de edu­cação, de infor­mação, de aces­so a, e de expressão da cul­tura, de justiça, de saúde, de segu­rança etc.

Quan­to à segu­rança e à justiça, por exem­p­lo, foram postas à dis­posição da pro­teção do patrimônio em detri­men­to da cidada­nia: pro­teção dos que têm con­tra os que não têm. A inse­gu­rança da maior parte do povo e a injustiça a que é sub­meti­da, no cotid­i­ano, cres­centes, ger­am o cam­po fér­til para vários tipos de dis­cur­so antipolíti­co: o medo, o ódio, a fal­sa crença, o dog­ma­tismo, o autoritário, o total­itário.

O con­jun­to dessas mis­er­abil­i­dades e vul­ner­a­bil­i­dades lev­am ao des­faz­i­men­to dos liames entre as pes­soas e os gru­pos que for­mam. Desa­pare­cen­do os mecan­is­mos de pro­teção estatal, esta­b­elece-se um embate na sociedade, no lim­ite, uma guer­ra civ­il, que somente pode ser medi­a­da e resolvi­da pela vio­lên­cia. Vio­lên­cia que é obje­to de pre­gação pelos novos donos da riqueza e dos priv­ilé­gios, através de seus lacaios, trav­es­ti­dos de rep­re­sen­tantes, ou mes­mo pos­tos dire­ta­mente no coman­do dos Esta­dos, como remé­dio para a solução de todos os prob­le­mas. A for­ca sub­sti­tui, uma vez mais, o poder.

Essas car­ac­terís­ti­cas fazem do Neolib­er­al­is­mo um sis­tema antipolíti­co. Seu modo de ser e de agir se dá no sen­ti­do de faz­er o esta­do abdicar de seu poder e pas­sar a ado­tar a força con­tra os povos, defend­en­do as mino­rias que dele vão toman­do con­ta.

Con­tu­do, além dis­so, o regime neolib­er­al se faz um anti­jurídi­co e anti­con­sti­tu­cional, porque afronta tan­to a tra­ma inter­na­cional dos dire­itos quan­to o que­bra-cabeça das Con­sti­tu­ições.

Essa ordem integra­da de dire­ito inter­na­cional e Con­sti­tu­ições estip­u­la val­ores e regras pre­cisos, no sen­ti­do de pro­te­ger e obri­gar à adoção de estru­turas de rep­re­sen­tação legí­ti­ma, de pro­mover a sub­mis­são ao regime das leis (rule-of-law) e de preser­var e garan­tir dire­itos. Está assen­ta­da na tríade democracia/império do direito/direitos humanos.

O Neolib­er­al­is­mo pre­ga a extinção da democ­ra­cia e dos dire­itos humanos e a des­obe­diên­cia do dire­ito, per­son­if­i­can­do o antípo­da da tra­ma jurídi­ca inter­na­cional e con­sti­tu­cional.

Para enx­er­gar e com­preen­der os mecan­is­mos que empre­ga nesse enfrenta­men­to, é pre­ciso retomar a análise da con­strução da sobera­nia, ago­ra, a par­tir de um pon­to de vista mais vin­cu­la­do ao chama­do lib­er­al­is­mo políti­co, a out­ra face da moe­da do lib­er­al­is­mo econômi­co.

Pen­san­do exclu­si­va­mente no ambi­ente europeu,[13] pode-se con­sid­er­ar que a Con­sti­tu­ição France­sa de 1791, dan­do cur­so ao esta­b­ele­ci­do pela Declar­ação de Dire­itos do Homem e do Cidadão, de 1789 – dois doc­u­men­tos advin­dos do mes­mo impul­so trans­for­mador (mas não, pro­pri­a­mente, rev­olu­cionário),[14] que fez trans­mu­dar a orig­i­nal con­vo­cação dos Esta­dos-Gerais, figu­ra típi­ca do Anti­go Regime, para a exper­iên­cia de uma Assem­bleia, dota­da de poder de rep­re­sen­tação e con­sti­tu­inte -, teria fun­da­do a ideia da sobera­nia nacional, isto é, per­ten­cente à nação – não ao povo. Foi um artifí­cio engen­hoso, for­ja­do a par­tir de duas fontes prin­ci­pais. A primeira, con­sis­tente na con­cepção da ideia de nação, uma abstração, que serviu para afas­tar qual­quer reivin­di­cação de poder efe­ti­va­mente pop­u­lar ou democráti­co.  A segun­da, cor­re­spon­dente à con­cepção de sobera­nia, tema, como vimos, caro no cur­so da con­strução teóri­co-prag­máti­ca do que hoje chamamos de Esta­do.

A nação, afir­mou Emmanuel-Joseph Sieyès[15], seria um con­ceito fun­dante da real­i­dade políti­co-jurídi­ca. Na ver­dade, trata­va-se de um dado fic­cional, toma­do como uma noção preesta­b­ele­ci­da, sem história nem con­creção físi­ca, que reuniria em sua matéria abstra­ta o con­jun­to não do povo, mas de car­ac­terís­ti­cas sele­cionadas ou mes­mo inven­tadas, extraí­das de uma com­posição de expressões con­sid­er­adas rel­e­vantes para a cri­ação de um mod­e­lo de orga­ni­za­ção cole­ti­va e de con­du­tas indi­vid­u­ais. Essas car­ac­terís­ti­cas não seri­am sen­síveis nem visíveis, menos ain­da apreen­síveis, a não ser como artefa­to da razão, muito emb­o­ra impassív­el de análise. Uma sín­tese racional for­mu­la­da para faz­er emer­gir, do con­jun­to dos esta­dos (états, sta­tus), a figu­ra do ter­ceiro-esta­do (tiers-état). Essa figu­ra, seria, em ver­dade, uma con­cepção orig­i­nal e inte­gral da nação, ou, como dizia o Abade rev­olu­cionário, une nation com­plète, a inte­gral­i­dade da nação. Mais do que isso, o ter­ceiro-esta­do é o todo da nação. Uma parcela que se con­funde com a total­i­dade, uma vez que seria a úni­ca necessária. Ain­da além, um todo que restaria entravé et opprimé, enquan­to exi­s­tir a out­ra parte, l’ordre priv­ilégié́. Suprim­i­da a ordem priv­i­le­gia­da, não have­ria per­da, mas gan­ho, que faria o todo libre et floris­sant. Uma matemáti­ca estran­ha e engen­hosa, que faz da parte o todo, porque essen­cial, necessária, e faz o todo crescer pela supressão da parte que se tor­na um peso mor­to para a nação, e, com seu perec­i­men­to ou extinção, tor­na mais robus­ta a parte necessária, fortalece‑a ao lib­ertá-la do jugo dos priv­ilé­gios, per­mitin­do que se desen­vol­va, em bene­fí­cio do todo, que é seu ver­dadeiro sig­nifi­ca­do.

Esse esta­do não cor­re­spon­de­ria a nen­hu­ma classe, no sen­ti­do econômi­co-social do ter­mo, sequer pode­ria ser assim­i­la­do às cat­e­go­rias de bur­gue­sia e pro­le­tari­a­do, como já se quis faz­er, na bus­ca de aco­modar a com­plex­i­dade, a diver­si­dade e a riqueza das práti­cas e dos dis­cur­sos expres­sos no proces­so rev­olu­cionário, ao mod­e­lo de uma his­to­ri­ografia refu­gia­da em jargões. Sieyès fala da maio­r­ia da sociedade, que estaria pre­sente em todos os esta­dos, não sendo atrib­u­to exclu­si­vo de um ou out­ro. O ter­mo maio­r­ia, por­tan­to, sig­nifi­ca mais do que quan­ti­dade, qual­i­dade. O ter­ceiro-esta­do é a nação toda porque ele guar­da aqui­lo que é mais autên­ti­co à nação, o que ela tem de mel­hor e que a define. Essa aut­en­ti­ci­dade estaria entrava­da e oprim­i­da. Caberia à assem­bleia con­sti­tu­inte faz­er-se efe­ti­va­mente rep­re­sen­ta­ti­va, per­mitin­do flo­rescer a liber­dade do todo. A nação não está em um lugar nem em uma cole­tivi­dade deter­mi­na­dos. É o todo inte­gral. Seus car­ac­teres se difun­dem em meio ao con­jun­to con­cre­to dos esta­dos.

A sobera­nia da nação é então, a par­tir dessa con­tribuição práti­co-doutrinária fun­da­men­tal, enx­er­ta­da na Con­sti­tu­ição de 1791, no arti­go primeiro do títu­lo ter­ceiro, e na Declar­ação dos Dire­itos, em seu arti­go ter­ceiro. A fór­mu­la da Declar­ação indi­ca o caráter nacional da sobera­nia, mas por meio de um cir­cun­lóquio bas­tante sig­ni­fica­ti­vo. Não se afir­ma que a sobera­nia per­tence à nação, mas que seu (isto é, de toute sou­veraineté) princí­pioréside essen­tielle­ment dans la nation. Dessa nação emana toda a autori­dade, impedin­do que quais­quer cor­pos e indi­ví­du­os a exerçam.

Corps e Indi­vidu, isto é, nada se inter­põe entre nation e sou­veraineté. Nada pode inter­me­di­ar a relação (assim, dire­ta) entre a nação e a sobera­nia. Na expressão con­sti­tu­cional, isso fica ain­da mais explíc­i­to. Diz-se, ao referir o tema dos poderes públi­cos, que a sobera­nia é una, indi­visív­el e impre­scritív­el, per­tence à nação, não poden­do ser exer­ci­da por nen­hu­ma sec­tion du peu­ple, nem qual­quer indi­vidu.

A Declar­ação e a Con­sti­tu­ição põem-se con­tra a frag­men­tação do poder públi­co e con­tra a inter­posição de agentes medi­adores, inter­mediários na con­strução ino­vado­ra de uma relação dire­ta entre a nação e a sua sobera­nia, que é una, indi­visív­el e não perece, isto é, é eter­na (não pre­screve jamais) e não pode ser assim con­tes­ta­da nem extin­ta (mes­mo que não seja exer­ci­da por essa nação).

O alvo dessa inter­dição são os chama­dos cor­pos inter­mediários, de que eram mel­hor exem­p­lo os esta­dos soci­ais ou ordens soci­ais. Pre­cipua­mente, aque­les dota­dos de um estatu­to próprio, der­ro­gatório do estatu­to ger­al ou uni­ver­sal, pos­to pela con­sti­tu­ição de uma sociedade ver­dadeira­mente políti­co-jurídi­ca. Ess­es estatu­tos par­tic­u­lares ou pri­va­dos, nat­u­rais no sis­tema do Anti­go Regime, no qual o príncipe se rela­ciona com a sociedade por inter­mé­dio de, e con­tro­la­do por deter­mi­na­dos gru­pos cole­tivos, que pos­suem um estatu­to ou regime próprio, na for­ma de priv­ilé­gios.  Ess­es priv­ilé­gios não tin­ham o sen­ti­do que tomarão após a insta­lação da ordem rev­olu­cionária, sobre­tu­do após a Lei Chape­lier, de qua­torze de jun­ho de 1791, que fez extin­guir as cor­po­rações. O sis­tema ou regime Ancien era cor­po­ra­ti­vo por definição. A sociedade é com­preen­di­da como com­pos­ta de várias ordens hierárquicas, não haven­do como con­ce­ber indi­ví­du­os sep­a­ra­dos das cole­tivi­dades a que per­ten­ci­am e das quais rece­bi­am seu quin­hão de pre­sença social, seu priv­ilé­gio. Não há dire­itos, por­tan­to, sequer uni­ver­sais. Há estatu­tos próprios, que fix­am condições de existên­cia. O priv­ilé­gio é ape­nas o regime a que cole­tivi­dades e seus mem­bros se sub­me­tem, num sis­tema de múlti­plas hier­ar­quias. Trata­va-se de um desen­volvi­men­to medieval das anti­gas noções romanas de sta­tus. Noções sub­meti­das a uma inter­pre­tação deriva­da de uma cos­mo­visão vin­cu­la­da à vio­lên­cia dos reina­dos, sobera­nias, hier­ar­quias, atribuições, sub­mis­sões e servidões- numa palavra, um sis­tema com­plexo de estrat­i­fi­cações -, de uma era de inten­sa con­fli­tu­osi­dade, sobre­tu­do ter­ri­to­r­i­al.

  1. Dos Corpos Intermediários à Nação: Representação Política

Os cor­pos inter­mediários serão, então, con­sid­er­a­dos pela Con­sti­tu­ição e pela Declar­ação como nocentes, pois alçam deter­mi­na­dos esta­dos e deter­mi­na­dos indi­ví­du­os aci­ma de todos os out­ros. A Con­sti­tu­ição faz abolir essas car­tas par­tic­u­lares de mino­rias, que as tor­nam poderosas em detri­men­to da maio­r­ia (o Tiers-État), que é a parte que real­mente con­ta e que deve assumir seu papel e rece­ber o lugar que merece na nova ordem con­sti­tu­cional. Essa abolição dos cor­pos inter­mediários é condição necessária tan­to da sobera­nia quan­to da igual­dade uni­ver­sal per­ante a lei. Qual­quer estru­tu­ra social que se dese­je rep­re­sen­ta­ti­va de uma cat­e­go­ria da sociedade — como, por exem­p­lo, as cor­po­rações de ofí­cio, a igre­ja, os clubes etc. -, pre­cisa desa­pare­cer, porque a sobera­nia deve atu­ar sobre a sociedade sem que obstácu­los se lhe antepon­ham. A relação entre a sobera­nia e a sociedade é de transparên­cia. Nen­hu­ma parte da sociedade pode reivin­dicar o exer­cí­cio da sobera­nia, não há como dividir a sobera­nia entre gru­pos e indi­ví­du­os. A sociedade é um só cor­po, a nação, sua alma, e a sobera­nia, a ener­gia que põe em atu­ação as relações desse todo, que é um só.

Claro que tudo isso não pas­sa de ficção que, para exi­s­tir, depende de um apara­to jurídi­co-políti­co pos­to à dis­posição des­de a Antigu­idade, na qual se bus­cam os mod­e­los de orga­ni­za­ção e de exer­cí­cio do poder para for­jar insti­tu­ições que, em real­i­dade, não são novas, mas assumem a aparên­cia de novi­dade. O que lhes con­fere o caráter da invenção, da cri­ação, da difer­ença é o mecan­is­mo que lhes dá vida. Esse efe­ti­va­mente novo mecan­is­mo é a rep­re­sen­tação.

E é um grande e grave para­doxo que essa ordem da sobera­nia nacional uma e indi­visív­el, que abom­i­na cor­pos de inter­me­di­ação, ven­ha a ter a garan­tia de sua existên­cia na insti­tu­ição da rep­re­sen­tação.[16] Esse para­doxo era explic­i­ta­do pelos arti­gos segun­do, ter­ceiro, quar­to e quin­to do mes­mo títu­lo ter­ceiro con­sti­tu­cional.

Enun­cia-se que a nação não pode exercer o poder ou os poderes emana­dos por ela, exclu­si­va­mente. Por­tan­to, a Con­sti­tu­ição tor­na-se rep­re­sen­ta­ti­va, sendo os rep­re­sen­tantes o Cor­po leg­isla­ti­vo e o rei, aos quais per­tence o Poder leg­isla­ti­vo: rep­re­sen­tantes eleitos livre­mente pelo povo, tem­porários, com assen­to na Assem­bleia nacional, e o rei, que com­ple­men­ta a ativi­dade de leg­is­lar por meio da sanção. O Poder judi­ciário é del­e­ga­do a juízes, eleitos no momen­to opor­tuno pelo povo. Final­mente, o Poder exec­u­ti­vo é del­e­ga­do ao rei, que o exerce por meio de min­istros e out­ros fun­cionários respon­sáveis.

Difer­ente­mente do que pos­tula­va Jean-Jacques Rousseau, a sobera­nia, pos­ta como uma e indi­visív­el, impassív­el de rep­re­sen­tação, frag­men­ta­va-se em deter­mi­na­dos Poderes, para que se efe­ti­vasse seu papel. Da nação emanavam ess­es Poderes, mas ela não tin­ha condições de os exercer, fazen­do-os obje­to de del­e­gação a três Cor­pos, por­tan­to, inter­mediários, negan­do as proibições da própria Con­sti­tu­ição e da declar­ação. Dess­es Cor­pos, dois se car­ac­teri­zari­am, ao menos par­cial­mente, por um proces­so de legit­i­mação por eleição do povo: a assem­bleia nacional e o cor­po de juízes. Assim, a total­i­dade do judi­ciário seria elei­ta, enquan­to o leg­isla­ti­vo resul­taria da eleição de rep­re­sen­tantes con­ju­ga­do ao do rei, ao qual caberia a tit­u­lar­i­dade, mas não o exer­cí­cio do exec­u­ti­vo, efe­ti­va­do por min­istros e agentes públi­cos, tam­bém não eleitos.

Aqui, bem assim, ini­cia-se a história da incom­ple­tude do pro­je­to da sobera­nia, que dev­e­ria con­sti­tuir uma relação ime­di­a­ta com o povo, mas que sofre o primeiro desvio por meio da abstração da figu­ra do povo na ideia de nação. Em segui­da, um novo desvio, medi­ante a inca­paci­dade de exer­cí­cio sober­a­no, que pas­sa a ser frag­men­ta­do e del­e­ga­do a Poderes públi­cos. Quer diz­er que a sobera­nia deixa de ser um poder para se tornar mera capaci­dade. O ter­mo poder é reser­va­do ape­nas ao exer­cí­cio dessa sobera­nia, não pela nação, muito menos pelo povo, mas por rep­re­sen­tantes. A seguir, o desvio da rep­re­sen­tação, da del­e­gação do exer­cí­cio dos próprios Poderes a um con­jun­to de agentes. Final­mente, o desvio con­sub­stan­ci­a­do no fato de não haver sequer a neces­si­dade de legit­i­mação da plen­i­tude dess­es agentes: no leg­isla­ti­vo, ape­nas a Assem­bleia nacional é com­pos­ta por pes­soas eleitas, nele inter­vin­do, con­tu­do, o rei, agente tradi­cional, sequer parte da nação. Esse rei, exte­ri­or à ideia nacional pos­ta nos doc­u­men­tos con­sti­tu­cionais, ain­da encar­nará o Poder exec­u­ti­vo, del­e­gan­do seu exer­cí­cio, porém — mais um desvio -, a min­istros e agentes, que igual­mente não pas­sam pelo cri­vo da rep­re­sen­tação, pois são escol­hi­dos pelo rei.

A sobera­nia, em con­clusão, pas­sa a ser mera capaci­dade, não chega a se con­sti­tuir em poder. É uma palavra, uma ideia abstra­ta, da qual emana o Poder. Não é una nem indi­visív­el. Esfacela-se e dá margem ao exer­cí­cio efe­ti­vo por cor­pos inter­mediários públi­cos: assem­bleia nacional, rei, min­istros e agentes, juízes.

  1. Sobrevivência dos Corpos Intermediários e o Sítio em torno do Estado

Esse é o cam­po insti­tu­cional que vai embasar o pro­je­to repub­li­cano pós-rev­olu­cionário, fix­adas as estru­turas que per­mitem que o Esta­do desen­vol­va suas funções, visan­do sua própria grandeza e à da nação que rep­re­sen­ta, per­ante as demais. Ele con­cede um espaço de sobre­vivên­cia aos cor­pos inter­mediários sim. Mas eles não são mais os cor­pos inter­mediários do Anti­go Regime. Não são aque­les cor­pos soci­ais, dota­dos de estatu­to próprio e der­ro­gatório do estatal. Ess­es novos cor­pos estão inseri­dos na ordem con­sti­tu­cional e fun­cionam como mecan­is­mo de exer­cí­cio do poder estatal. Não são cri­a­dos pelo cam­po social, mas pelo políti­co. Na evolução do con­sti­tu­cional­is­mo, vão se tornar os poderes afe­tos a instân­cias de rep­re­sen­tação estatal, como esta­b­ele­ceu, de modo pio­neiro, nes­sa tradição, a Con­sti­tu­ição Amer­i­cana, em 1787. Esse doc­u­men­to tirou o caráter abstra­to ou mera­mente fun­cional do embate das potên­cias leg­isla­ti­va, exec­u­ti­va e judi­ciária, para local­iza-las, incumbi-las a órgãos ou cor­pos deter­mi­na­dos. Hoje, quan­do falam­os nes­sas funções, quer­e­mos referir deter­mi­na­dos órgãos con­cre­tos. O leg­isla­ti­vo é um Par­la­men­to ou Con­gres­so; o Exec­u­ti­vo, o Pres­i­dente ou o Primeiro-Min­istro; o Judi­ciário, um Tri­bunal ou vários Tri­bunais.

Muito bem, é essa for­ma de orga­ni­za­ção que se encon­tra em crise. Ela foi descar­ac­ter­i­za­da pelo adven­to do novo regime econômi­co-social, que se fez implan­tar na orga­ni­za­ção estatal, assu­min­do o lugar do políti­co pro­pri­a­mente.

As Con­sti­tu­ições, em ger­al, como faz a nos­sa, ain­da falam da tri­par­tição de poderes, afir­man­do que todo o poder per­tence­ria ao povo, que del­e­garia seu exer­cí­cio a rep­re­sen­tantes eleitos. Ain­da dizem que a legit­im­i­dade seria alcança­da por meio da real­iza­ção de eleições per­iódi­cas. A real­i­dade, con­tu­do, do exer­cí­cio desse poder, dess­es poderes, é bem diver­sa.

Essa real­i­dade apon­ta para uma restau­ração da inter­me­di­ação cor­po­ra­ti­va, cujos agentes pre­scin­dem dos mecan­is­mos de legit­i­mação rep­re­sen­ta­ti­va. Pre­scin­dem mes­mo da ideia de rep­re­sen­tação.

É fácil perce­ber, inseri­da na tradição con­sti­tu­cional, por exem­p­lo, a excep­cional­i­dade das profis­sões e funções jurídi­cas públi­cas, que estão dis­so­ci­adas da rep­re­sen­tação. Exercem parcela da capaci­dade sober­ana, mas não são, na maio­r­ia dos país­es, eleitas. É algo que não pas­sou des­perce­bido, con­tu­do, e já há, aqui e ali, pro­postas para a recom­posição con­sti­tu­cional dessas profis­sões.[17] Con­tu­do, não chega a pôr em xeque a ordem do lib­er­al­is­mo políti­co, que já pre­via ou tol­er­a­va essa inter­venção de atores não per­ten­centes à nação, como vimos, no exer­cí­cio das tare­fas de gov­er­nação e con­t­role. Toman­do con­ta da for­mação dos profis­sion­ais do dire­ito e do modo como ingres­sam nas funções públi­cas jurídi­cas, asse­gu­ran­do-se que não ques­tionem a ordem de dom­i­nação esta­b­ele­ci­da e sir­vam como instru­men­to de sua efe­ti­vação, nos cam­pos civ­il, admin­is­tra­ti­vo e penal, o lib­er­al­is­mo não ape­nas tol­era e respei­ta, mas, sobre­tu­do, dis­ci­plina a maneira como o dire­ito é inter­pre­ta­do e apli­ca­do. No regime neolib­er­al, ain­da, ele incen­ti­vará um desvio de inter­pre­tação e apli­cação excep­cional da lei, uma manobra req­ui­si­ta­da quan­do as garan­tias se mostrarem obstácu­lo para alcançar obje­tivos difer­entes do que aque­les plane­ja­dos pela anti­ga elite lib­er­al. O neolib­er­al­is­mo incen­ti­vará, tam­bém, a con­sti­tu­ição infor­mal e for­mal de uma admin­is­tração trans­fron­teir­iça de deter­mi­nadas regras, desre­spei­tan­do qual­quer resquí­cio de sobera­nia ain­da pre­tendi­da pelo garan­tismo jurídi­co. Nes­sa con­cepção bas­tante atípi­ca do dire­ito e da justiça, a for­mação dos profis­sion­ais do dire­ito se perde em uma rede de cur­sos de espe­cial­iza­ção elab­o­ra­dos nos país­es de juris­dição da com­mon-law, volta­dos a habil­i­tar profis­sion­ais aptos a defend­er o inter­esse de grandes cor­po­rações em todos os País­es.[18]

Ocorre que, no regime neolib­er­al, os cor­pos inter­mediários se inserirão de modo essen­cial nes­sas tare­fas gov­er­na­men­tais, de con­t­role e de juris­dição, ao pon­to de descar­ac­teri­zar inte­gral­mente a vocação uni­ver­sal e rep­re­sen­ta­ti­va da Con­sti­tu­ição.

A par do exem­p­lo do esface­la­men­to orça­men­tário, que referi, há a questão fun­da­men­tal das agên­cias,[19] inseri­das no âmbito das relações públi­cas a par­tir dos proces­sos de pri­va­ti­za­ção de bens e serviços públi­cos, sob a jus­ti­fica­ti­va da efi­ciên­cia admin­is­tra­ti­va,[20] e dos Ban­cos Cen­trais,[21] além de out­ras tan­tas instân­cias de toma­da de decisão, for­mu­lação de políti­cas públi­cas e res­olução de con­fli­tos, órgãos dota­dos de “autono­mia”, cujos tit­u­lares exercem ativi­dades que dev­e­ri­am ser públi­cas, deci­dem sobre dire­itos, sobre obri­gações e esta­b­ele­cem e imple­men­tam políti­cas “públi­cas”, reti­ran­do dos Poderes tradi­cionais boa parte de suas atribuições e, mais grave, impedin­do a atu­ação de gov­er­no e de con­t­role por órgãos e pes­soas dotadas de rep­re­sen­tação políti­ca.

Con­stituem um cam­po de sítio, em torno dos Poderes, inter­pon­do-se em sua comu­ni­cação com o povo con­sti­tu­inte ou rep­re­sen­ta­do. São cor­pos inter­mediários cuja rep­re­sen­ta­tivi­dade é seto­r­i­al, lig­a­dos a estru­turas de empreendi­men­to e prestação de serviços per­ten­centes aos âmbitos econômi­co e social. São espel­hos daque­les clubes, pri­va­dos e exclu­sivos, cujos por­ta-vozes apare­cem, de quan­do em quan­do, na mídia, graças ao tra­bal­ho das chamadas “asses­so­rias de impren­sa” e “relações públi­cas”, para emi­tir opinião: a ver­são e a argu­men­tação de inter­ess­es cor­po­ra­tivos, pri­va­dos, maquila­da de inter­esse da nação.

As agên­cias esta­b­ele­cem ou obtêm um estatu­to próprio que, à guisa de pos­si­bil­i­tar a gestão e fis­cal­iza­ção de ativi­dades por entes pri­va­dos, acabam por impos­si­bil­i­tar a atu­ação dos poderes e órgãos de rep­re­sen­tação legí­ti­ma uni­ver­sal.

São estratos (sta­tus), estru­turas que visam a impedir o aces­so e a comu­ni­cação entre rep­re­sen­tantes e rep­re­sen­ta­dos legit­i­ma­dos – ago­ra, fic­ti­ci­a­mente, ou, no lim­ite, fal­sa­mente – por escol­has pop­u­lares vici­adas pela imis­cuição de mecan­is­mos de detur­pação de cam­pan­has. Mecan­is­mos deriva­dos ou que con­stituem mes­mo um dos mod­os do esta­do de sítio.

Entre povo e poder pas­sam a resumir a comu­ni­cação no mod­e­lo dos “serviços de atendi­men­to ao con­sum­i­dor” (SAC): o povo con­some e o Esta­do pres­ta serviços ter­ce­i­riza­dos, por órgãos que os assumem, nas pri­va­ti­za­ções, ou usufruem de uma relação de parce­ria públi­co-pri­va­da.  As agên­cias “reg­u­lado­ras” pas­sam a ser meros fios de lig­ação entre os agentes e inter­ess­es de mer­ca­dos e rep­re­sen­tantes dos ter­ce­i­riza­dos – empre­sas ou cor­po­rações pri­vadas.

As estru­turas dos cor­pos inter­mediários, his­tori­ca­mente, cor­re­spon­dem a cas­tas ou esta­dos. Assim como ocor­reu com a relação de susera­nias, suce­di­da pela relação de sobera­nia, igual­mente o Esta­do tomou o lugar dos esta­dos, sta­tus, que eram car­ac­terís­ti­cas de dis­tinção conec­tadas às pes­soas, orig­i­nadas de sua inserção em deter­mi­na­dos gru­pos, con­ce­bidos e con­ceitu­a­dos jurídi­ca e politi­ca­mente. Na Antigu­idade, havia uma dinâmi­ca de sta­tus, que con­ce­dia a cada pes­soa um lugar na orga­ni­za­ção da vida pri­va­da e públi­ca: lib­er­tatis (grau de liber­dade), ciui­tatis (per­tenci­men­to públi­co, cidada­nia) e famil­i­ae (per­tenci­men­to domés­ti­co, na estru­tu­ra hierárquica famil­iar, com pleno dire­ito ou com dire­ito depen­dente de out­rem). Eram for­mas de con­ced­er e com­preen­der as capaci­dades jurídi­cas e seus lim­ites. No prossegui­men­to da cul­tura romana, mis­tu­ra­do a con­tribuições cul­tur­ais de out­ros povos, sob a coor­de­nação do pen­sa­men­to e da práti­ca reli­giosa (dos monoteís­mos), durante a chama­da Idade Média até a der­ro­ca­da do Anti­go regime, esta­men­tos, que cer­cavam ou siti­avam as relações pes­soais e o aces­so ao domínio das coisas e das pes­soas. Prati­ca­mente, cas­tas ou raças, seg­men­tan­do a sociedade e per­mitin­do ou proibindo, restringin­do ou amplian­do aces­sos, mudanças, inter­câm­bios, mas preser­van­do sem­pre uma hier­ar­quia, uma aura que impe­dia (do pon­to de vista nor­ma­ti­vo) as prox­im­i­dades.

O esta­do, par­ticí­pio do ver­no estar, indi­ca esta­bi­liza­ção, uma espé­cie de fait accom­pli, mais do que estáv­el, imutáv­el. É o ter­mo que será pos­to para definir a sociedade (chama­da equiv­o­cada­mente, como vimos, de) políti­ca. Ele lhe con­cede um caráter acaba­do, com­ple­to, cor­rob­o­ran­do a autori­dade que acom­pan­ha a alien­ação da força, que pas­sa a deter com (qua­si-) monopólio. O Esta­do, em sua for­mação, sub­trai e deslo­ca para si as capaci­dades jurídi­co-políti­cas de pes­soas e gru­pos, e as con­ser­va, con­ceben­do-as e conce­den­do-as como for­ma de del­e­gação de seu próprio e defin­i­ti­vo sta­tus.

Quan­do a ordem neolib­er­al se instau­ra, ela faz o res­gate dos esta­dos, reti­ran­do o espíri­to do Esta­do e recom­pon­do os cor­pos inter­mediários e seus priv­ilé­gios, acen­tua o sis­tema de cas­tas ou raças, des­ti­tuin­do a pre­ten­são da uni­ver­sal­i­dade. Esse novo sis­tema se uti­liza do Esta­do, em um primeiro momen­to, se não de modo con­stante, para jus­ti­ficar uma nova hier­ar­quia econômi­co-social: gru­pos, cas­tas, raças que se põem como supe­ri­ores, e que pas­sam a deter o priv­ilé­gio de viv­er no Esta­do, próx­i­mas ao Esta­do, usufruir de priv­ilé­gios na relação com o Esta­do.

Pau­lati­na­mente, ess­es novos esta­dos vão descar­tan­do o próprio Esta­do, reti­ran­do dele sua capaci­dade de com­pe­tir com suas capaci­dades jurídi­co-políti­cas, derivadas de sua força econômi­co-social. Retoman­do seu aspec­to de inter­posição entre a capaci­dade estatal e a soci­etal, e a querem desem­pen­har com monopólio.

O que os impede de monop­o­lizar a capaci­dade jurídi­co-políti­ca é, por um lado a per­manên­cia, mes­mo em déficit, da capaci­dade do Esta­do, e, por out­ro, tan­to a con­cor­rên­cia entre as várias oli­gar­quias, per­mitin­do, de tem­pos em tem­pos, con­sen­sos ou oli­gop­o­liza­ção da políti­ca, quan­to a resistên­cia de dese­jos e movi­men­tos democráti­cos. Para evi­tar essa resistên­cia e a aprox­i­mação entre povo e Esta­do, o esta­do de sítio com­ple­ta a revivescên­cia dess­es cor­pos inter­mediários.

O esta­do de sítio con­tem­porâ­neo vai se car­ac­teri­zar, então, por

  • a) intenção de restringir ou impedir pau­tas dos inter­ess­es e dire­itos legí­ti­mos democráti­cos;
  • b) cercea­men­to do fluxo de comu­ni­cação e decisão;
  • c) fix­ação de cer­co per­ma­nente em torno do Esta­do, por meio de vários assen­ta­men­tos de per­tur­bação;
  • d) vio­lên­cia dos dis­cur­sos anti­democráti­cos — os ataques vir­tu­ais e reais e as ameaças, além da efe­ti­vação de dis­paros e ataques físi­cos ao povo e às insti­tu­ições que resistem mais ou menos a essa porosi­dade com os gru­pos inter­mediários, aos três poderes e a suas praças de aces­so;
  • e) ruí­do como for­ma de man­i­fes­tação no cotid­i­ano da antipolíti­ca;
  • f) sítio das mídias soci­ais: redes (anti-)sociais ver­sus aces­so à infor­mação por mídias ver­dadeira­mente voca­cionadas ao tra­bal­ho de impren­sa; influ­en­ci­adores ver­sus rep­re­sen­tantes legí­ti­mos; seguidores ver­sus cidada­nia;
  • g) cer­co das fake news;
  • h) esface­la­men­to das estru­turas de comu­ni­cação real e de obtenção de infor­mação garan­ti­da, além da cap­tura das mídias tradi­cionais por gru­pos e inter­ess­es cor­po­ra­tivos;
  • i) usurpação e cor­rupção do dis­cur­so democráti­co; e assé­dio e toma­da das insti­tu­ições, que, para­doxal­mente, ata­cam;
  • j) dis­túr­bios que dis­sem­i­nam o medo e visam a dis­ci­pli­nar e encam­in­har as reivin­di­cações para o uso da força, das forças de segu­rança con­tra si , isto é, o próprio povo – com o agrava­men­to, no Brasil, em decor­rên­cia da mil­i­ta­riza­ção e das estru­turas tradi­cionais e per­ma­nentes de segu­rança, des­ti­nadas a defend­er o patrimônio dos que tudo têm con­tra os que nada pos­suem: um Esta­do que sem­pre se pôs con­tra o povo, que é con­stan­te­mente lança­do à per­ife­ria e dis­crim­i­na­do;
  • k) imposição de temas que prati­ca­mente exigem con­hec­i­men­to esotéri­co, de ini­ci­a­dos, téc­ni­co: a mist­i­fi­cação e miti­fi­cação da ciên­cia cor­re­spon­dente à desval­oriza­ção da ver­dade do méto­do da ciên­cia e do proces­so de edu­cação e de con­sti­tu­ição cien­tí­fi­ca;
  • l) orça­men­to demar­ca­do e inacessív­el às políti­cas públi­cas soci­ais e con­sti­tu­cionais;
  • m) usurpação das agên­cias do povo por mecan­is­mos de delim­i­tação de temas e seto­ri­al­iza­ção de reivin­di­cações, impedin­do a visão da com­ple­men­tariedade advin­da da trans­ver­sal­i­dade;
  • n) império do vir­tu­al: sites (sítios) como negação e sub­sti­tu­ição do espaço pub­li­co: redes anti­s­so­ci­ais, pri­vadas e o comér­cio dos cor­pos e dos dados;
  • o) dig­i­tal como meio;
  • p) jurídi­co como agên­cia;
  • q) econo­mia como úni­co dis­cur­so com­pe­tente, sub­ver­tendo mes­mo as próprias ten­ta­ti­vas (de cor­rentes) da ciên­cia econômi­ca de imporem lim­ites e caveat a suas afir­mações;
  • r) con­stantes dis­paros con­tra o saber, sua difusão e debate e os mod­os de infor­mação, for­mação e comu­ni­cação;
  • s) desafio per­ma­nente de meios téc­ni­cos à con­cretiza­ção da pre­sença;
  • t) a prevalên­cia dos mod­os de (anti-)comunicação vir­tu­al, inclu­sive em ativi­dades, mes­mo públi­cas — como a justiça -, que sola­pa a capaci­dade de desen­har e con­sti­tuir empa­tia e com­paixão com os dra­mas e o sofri­men­to, de se indig­nar con­tra os aten­ta­dos à dig­nidade humana e da natureza: o des­dém e a apa­tia com a dor alheia e a vio­lên­cia;
  • u) a revivescên­cia das ordens: religião e riqueza;
  • v) a ameaça, a guer­ra, o exter­mínio como maneiras de ser de um uma per­for­mance gov­er­na­men­tal estatal­i­forme, que cor­re­sponde à fal­si­fi­cação do Esta­do, que fala por, e se serve de, e visa a enrique­cer as mídias pri­vadas e a indús­tria béli­ca. como modo de atu­ação e dis­cur­so pre­ten­sa­mente reme­tendo a for­mas tradi­cionais de atu­ação do Esta­do e das sociedades políti­cas, em ger­al;
  • w) a gov­er­nação como admin­is­tração desin­te­grado­ra e inter­es­sa­da;
  • x) a con­sti­tu­ição de vários cam­pos e gru­pos em esta­do de ilic­i­tude, em cumpli­ci­dade com, ou com porosi­dade em relação aos aparatos estatais: cor­po­rações de força econômi­ca, social, mil­i­tar.

São algu­mas das várias fac­etas desse fenô­meno que con­ju­ga esta­do de sítio e cor­po­ra­tivis­mo. O que se pode obser­var é que o cer­co se faz por meio de estru­turas e proces­sos de ordem mate­r­i­al e ima­te­r­i­al, que visam não ape­nas a difi­cul­tar as conexões e a comu­ni­cação, mas igual­mente a visão e a per­cepção das próprias relações.

Esta­b­ele­cem o con­torno da atu­ação das oli­gar­quias e de imple­men­tação e exer­cí­cio do autori­taris­mo con­tem­porâ­neo, que se difunde no espaço/tempo que con­figu­ra o Esta­do e a sociedade. Ameaçam e se põem frontal­mente con­tra o regime democráti­co e põem em risco o proces­so que vive­mos de sua ampli­ação e enriquec­i­men­to. Um fenô­meno que, par­tic­u­lar­mente no Brasil, está logran­do minar a relação de rep­re­sen­ta­tivi­dade e legit­im­i­dade do exer­cí­cio do poder democráti­co por seu gov­er­no.

  1. O Estado de Sítio. Teocracia/Teoeconomia; Agronejo/Colonialismo

A estru­tu­ra e o sis­tema jurídi­co-políti­cos con­tem­porâ­neos exper­i­men­tam mais essa crise, em con­clusão.

 Essa crise pode ser com­preen­di­da de vários mod­os, assim como expli­ca­da de várias maneiras. De modo ger­al, há um debate acer­ca do que se tem denom­i­na­do de esfera públi­ca, enten­di­da como essen­cial para a existên­cia da democ­ra­cia con­tem­porânea. Essa esfera seria con­sti­tuí­da não ape­nas de um espaço (real ou vir­tu­al) comum, no qual o debate sobre as questões públi­cas (ou as questões indi­vid­u­ais e cole­ti­vas de inter­esse públi­co) se desen­volve, mas igual­mente como ambi­ente de exer­cí­cio autônomo ou het­erônomo de uma moral­i­dade públi­ca. Essa moral­i­dade teria, em decor­rên­cia ou como resul­ta­do do proces­so do con­sti­tu­cional­is­mo con­tem­porâ­neo, ao se despren­der da esfera mera­mente das con­vicções pri­vadas, pas­sa­do a ser com­preen­di­da como dire­ito con­sti­tu­cional, tor­nan­do-se, por­tan­to, uma insti­tu­ição. O com­por­ta­men­to humano na esfera públi­ca pas­sou a ser con­strangi­do por uma série de dire­itos e deveres, enun­ci­a­dos explici­ta­mente nos doc­u­men­tos con­sti­tu­cionais. Ess­es doc­u­men­tos enun­cia­ri­am por meio de uma lin­guagem pre­ten­sa­mente neu­tra, ou, pelo menos, impar­cial, quer diz­er, pro­nun­ci­a­da ou pro­pos­ta pelo todo, aspec­tos con­sid­er­a­dos indis­cutíveis ou fun­da­men­tais da con­cepção de humanidade ou de condição humana, ten­do, por­tan­to, eficá­cia poten­cial­mente uni­ver­sal. Essa visão de esfera públi­ca cor­re­spon­de­ria à reivin­di­cação europeia de herdeira da civ­i­liza­ção helêni­ca, em proces­so con­tín­uo de con­ver­são dos demais povos, afe­ta­dos pela cos­mo­visão con­sid­er­a­da ade­qua­da ou supe­ri­or da con­vivên­cia humana, indi­vid­ual e plur­al.

Já fiz criticar essa cos­mo­visão e seu empreendi­men­to históri­co de dom­i­nação, opressão e explo­ração dos espaços, dos seres e dos povos do mun­do, no proces­so de col­o­niza­ção.[22] Igual­mente, cri­tiquei as pre­ten­sões desse con­sti­tu­cional­is­mo e do dire­ito con­sti­tu­cional que teria ger­a­do.[23]

O que pre­ten­di realizar até aqui, no pre­sente arti­go, foi apon­tar o aspec­to bas­tante fic­cional, pre­ten­sioso e ilusório dessa con­cepção de esfera públi­ca, medi­ante uma críti­ca ao mes­mo tem­po históri­ca e teóri­co-prag­máti­ca. Mostrar como essa con­cepção é mes­mo fala­ciosa, por virar os olhos para as difi­cul­dades havi­das no cur­so do esta­b­elec­i­men­to do con­sti­tu­cional­is­mo a que recorre, como se se tratasse de um artefa­to per­feito, elab­o­ra­do com as mel­hores intenções. Ain­da, que essa esfera públi­ca não pas­sa da atu­al­iza­ção dos proces­sos con­sti­tu­cionais dos quais se con­sid­era herdeira, escon­den­do essa her­ança por meio de uma pre­ten­sa visão exte­ri­or do lega­do que assume. Lega­do do qual não se enver­gonha, muito emb­o­ra ciente de suas raízes vici­adas, e que procu­ra apre­sen­tar de modo vir­tu­oso e ide­al. Em uma palavra, dese­jaria ter feito demon­strar como as reivin­di­cações e os resul­ta­dos desse con­sti­tu­cional­is­mo são respon­sáveis pela própria crise, que procu­ram definir sem aban­donar os vícios que escon­dem.

Para tan­to, salien­tei um aspec­to que con­sidero cru­cial dessa crise, em con­tex­to de ataque à democ­ra­cia, à equidade e de bus­ca de refaz­er e impor o autori­taris­mo.

Acred­itei ter podi­do explicar esse con­fli­to e dado a respos­ta, ao menos par­cial, às questões que abor­dei, assim como, de modo mais amp­lo e analíti­co, à com­preen­são desse fenô­meno críti­co con­tem­porâ­neo, que envolve out­ras questões, numa análise do que chamei de esta­do de sítio, basi­ca­mente o cer­co que se empreende ao espaço e ao tem­po da políti­ca e de seu poder, por estru­turas antipolíti­cas de força, que pre­ten­dem, não ape­nas no Brasil, mas glob­al­mente, desvin­cu­lar a exper­iên­cia cole­ti­va da democ­ra­cia e da justiça, ou mes­mo des­faz­er a con­sti­tu­ição históri­ca do espaço e do tem­po da políti­ca, por meio da repri­va­ti­za­ção dos mod­os e dos meios de rela­ciona­men­to humano e nat­ur­al.

É essa análise que quis levar a cabo, breve­mente, no pre­sente arti­go. Esse cer­co em torno do espaço/tempo da políti­ca mar­ca a cena de. nos­sa exper­iên­cia comum con­tem­porânea.

Tradi­cional­mente, o ter­mo esta­do de sítio é empre­ga­do em situ­ações de con­fli­to e guer­ra. Ele instru­men­tal­i­zou, juridica­mente, em segui­da à Rev­olução France­sa, o esta­do ou modo de faz­er o com­bate denom­i­na­do de guer­ra de sítio. Na trans­fig­u­ração de uma situ­ação de fato beli­cosa para uma reg­u­lação nor­ma­ti­va, o movi­men­to pas­sou a ter con­tornos de legit­im­i­dade, mas não mais volta­do para o a situ­ação embate de defe­sa (exter­no). Não mais para um inimi­go exter­no. O esta­do de sítio é uma con­fig­u­ração jurídi­co-políti­ca de segu­rança, volta­do a pro­te­ger a orga­ni­za­ção estatal de um inimi­go inter­no, que ameaça a existên­cia do regime (repub­li­cano) e seu desen­volvi­men­to. A questão está em saber quem é esse inimi­go inter­no.

Foi nes­sa definição do inimi­go inter­no que o con­sti­tu­cional­is­mo e o dire­ito con­sti­tu­cional expuser­am sua capaci­dade de sub­ver­são e per­ver­si­dade, negado­ras do impul­so rev­olu­cionário que, proposi­tal­mente, apre­sen­tavam como inspi­rador e jus­ti­fi­cador dos insti­tu­tos que cri­aram – após o apla­ca­men­to da ener­gia rev­olu­cionária e, acred­i­to ter con­segui­do demon­strar, con­tra as final­i­dades e dese­jos da rev­olução.

A lei mil­i­tar france­sa de 10 de jul­ho de 1791 esta­b­ele­cia que have­ria três tipos de praça de guer­ra e pos­tos mil­itares: os con­cer­nentes a l’état de paix, l’é­tat de guerre e l’é­tat de siège. Três esta­dos de con­fli­to diver­sos: a paz, a guer­ra e o esta­do de sítio. Isso sig­nifi­ca que a sociedade pas­sa­va a ser com­preen­di­da como um proces­so per­ma­nente de con­fli­to, con­ce­bido como três modal­i­dades de esta­do de guer­ra, para os quais se armam pos­tos mil­itares e praças de guer­ra, isto é, um con­stante mili­ci­a­men­to, um âni­mo mil­i­tante.  Nes­sa mil­itân­cia per­va­si­va, mes­mo o esta­do de paz era con­sid­er­a­do como um modo de praça de guer­ra e de atu­ação mil­i­tar. A par de seu estatu­to civ­il, envolvia‑o uma pos­tu­ra tipi­ca­mente guer­reira (anti­civ­il, por­tan­to, mas pos­ta sob a jus­ti­fica­ti­va de sua manutenção). Há uma tutela mil­i­tar con­stante sobre o modo como a sociedade se com­por­ta e dá ense­jo a graus diver­sos de con­fli­to. A paz é um perío­do de guer­ra pre­sente, latente: encober­to, suben­ten­di­do. Essa guer­ra pode eclodir e dar ense­jo a dois out­ros mod­os de con­fli­to man­i­festo: a guer­ra, pro­pri­a­mente, pela dis­posição exter­na, por­tan­to, defe­sa, e o sítio, que migra para o âmbito inter­no, no con­fli­to rel­a­ti­vo à segu­rança.

O inimi­go exter­no é a força estrangeira. O inter­no, a própria cidada­nia, quer diz­er, o povo, con­sid­er­a­do em sua condição de per­ma­nente aptidão para a ocu­pação definido­ra da políti­ca: democ­ra­cia. Essa aptidão é chama­da de per­tur­bação da ordem e obje­to da atu­ação mais repres­so­ra das for­cas mil­itares, que suprimem todo poder civ­il e assumem suas funções.

No esta­do de paz, é a polí­cia e todos os atos de poder civ­il emana­dos das autori­dades e de out­ros fun­cionários civis, pos­tos pela Con­sti­tu­ição, que velarão pela manutenção das leis, a autori­dade dos agentes mil­itares poden­do se esten­der sobre as per­tur­bações e sobre out­ros assun­tos, depen­den­do do serviço que prestem.

No esta­do de guer­ra, os fun­cionários civis não deixarão de cumprir suas funções de cuidar da ordem e da polí­cia inte­ri­or, mas poderão ser req­ui­si­ta­dos pelo coman­do mil­i­tar para desem­pen­har as funções que importem para a manutenção da segu­rança. Há uma com­bi­nação entre assem­bleia e rei, na dec­re­tação de quais praças estarão em esta­do de guer­ra.

Final­mente, no esta­do de sítio, toda autori­dade dos fun­cionários civis para a manutenção da ordem e para a polí­cia inte­ri­or pas­sarão ao comen­do mil­i­tar, que as exercerá exclu­si­va­mente, sob sua respon­s­abil­i­dade pes­soal.

O Esta­do de Sítio, volta­do a com­bat­er as per­tur­bações de ordem inter­na per­maneceu “reg­u­la­do” dessa for­ma vaga e ampla até 1849, quan­do, após muitas decisões da Corte de Cas­sação france­sa, foi deter­mi­na­da uma mel­hor deter­mi­nação de seu con­teú­do e lim­i­tação mais pre­cisa do âmbito de atu­ação mil­i­tar.

Não é por out­ro moti­vo, em face da ampli­tude e inde­ter­mi­nação orig­i­nais do esta­do de sítio, que os golpes bus­cam abri­go insti­tu­cional em sua dec­re­tação, ten­tan­do dar moldu­ra legal a um ato grave de vio­lação jurídi­co-políti­ca.

Mas é sobre­tu­do da con­cepção de que o esta­do de sítio (esta­do man­i­festo de guer­ra inter­na) é per­ma­nente, e que abar­ca de modo mais rad­i­cal o esta­do de paz (seu esta­do latente), que a situ­ação de risco à democ­ra­cia e incre­men­to autoritário tira usa ener­gia.

Essa con­cepção está lig­a­da à do renasci­men­to dos cor­pos inter­mediários e instru­men­tal­iza a per­sis­tente intenção, a ameaça e a ten­ta­ti­va con­stante que fazem de invadir o espaço/tempo jurídi­co-políti­cos.

A perigosa ideia de que a sociedade civ­il é pací­fi­ca e pas­si­va seria uma ficção, pos­ta pelo Neolib­er­al­is­mo, não existe sem antecedentes, então. O esta­do de guer­ra per­ma­nente sub­verte a ideia de que a sociedade (anti-)política mod­er­na, ou o Esta­do, teria sido fun­da­da por um pacto de ces­sação da vio­lên­cia. A vio­lên­cia con­tin­ua a cir­cu­lar no inte­ri­or dessa sociedade, mas se con­cen­tra em alguns cam­pos e nas mãos de alguns gru­pos. Con­tra o poder do Esta­do – que dete­ria, na con­cepção con­sagra­da por Max Weber, ou, mais pre­cisa­mente, pos­tu­lar­ia o monopólio do exer­cí­cio legí­ti­mo da vio­lên­cia — exercem uma força que per­mite a alguns ocu­parem posições priv­i­le­giadas, impedin­do o aces­so da maio­r­ia a espaços mate­ri­ais e ima­te­ri­ais, pri­van­do a sociedade de con­vivên­cia. Ess­es exercem a força seja em razão de fatores econômi­cos ou soci­ais, seja em razão pura­mente de faz­erem atu­ar a força que pos­suem, em ger­al deter­mi­na­da pela posse de armas e de out­ros mecan­is­mos dinâmi­cos de infli­gir medo, empreen­der coerção.

O inter­es­sante é obser­var que essa ideia de que o con­jun­to das pes­soas seria uma mas­sa que não com­põe cole­tivi­dade nem sociedade, des­ti­tuí­da de laços de iden­ti­fi­cação comum, pre­cisou ser for­mu­la­da por fig­uras que se uti­lizaram do Esta­do, e exerce­r­am funções de coman­do no Esta­do, para que fos­sem intro­duzi­das e difun­di­das de modo inci­si­vo na práti­ca e no pen­sa­men­to con­tem­porâ­neos. Mar­gareth Thatch­er, no Reino Unido e Ronald Rea­gan, nos Esta­dos Unidos, uti­lizaram-se de seus papéis de líderes de Gov­er­no para diz­er que o Esta­do era desnecessário, ine­fi­ciente e respon­sáv­el pelos prob­le­mas da humanidade. Ao mes­mo tem­po, afir­maram que a sociedade civ­il não exis­tia, só haven­do indi­ví­du­os, que dis­putari­am bens e val­ores mate­ri­ais em bus­ca da própria feli­ci­dade, em uma com­petição abso­lu­ta, que com­po­ri­am uma mas­sa indifer­en­ci­a­da, jamais um povo habil­i­ta­do a uma capaci­dade, ori­un­da de sua com­posição ou orga­ni­za­ção.

O Neolib­er­al­is­mo, por­tan­to, faz extin­guir as ideias de uma sociedade unifi­ca­da cul­tural­mente, advin­da da ficção lib­er­al. Não há mais povo nem nação. O povo (por exem­p­lo, nos Esta­dos Unidos e na con­cepção de Rousseau) ou a nação (na visão, por exem­p­lo, de Sieyès) encar­nar­i­am, segun­do o desen­ho e o con­tex­to ret­ro­spec­tivos que fun­da­men­taram os dese­jos e os pro­je­tos rev­olu­cionários, assim como o traça­do prospec­ti­vo do con­sti­tu­cional­is­mo e do proces­so con­sti­tu­cional pós- (e anti-) rev­olu­cionários, o ide­al de uma sociedade uni­da por car­ac­terís­ti­cas ima­te­ri­ais, pre­ten­sa­mente tradi­cionais. Já para a con­cepção neolib­er­al essa ficção da tradição assume aspec­tos de frag­men­tação e difer­ença, com a existên­cia e a jus­ti­fi­cação de gru­pos priv­i­le­gia­dos, em detri­men­to de povos dis­crim­i­na­dos. Aque­les guardari­am os val­ores do bem, enquan­to ess­es, a ameaça de um mal inven­ta­do ao sabor das cir­cun­stân­cias. Essa con­cepção neolib­er­al faz um pacto defin­i­ti­vo com o racis­mo e a escrav­iza­ção do tra­bal­ho, que a ordem lib­er­al, por con­veniên­cia, afir­ma­va com­bat­er.

Nes­sa sed­i­men­tação de uma tradição con­ve­niente, o Neolib­er­al­is­mo retoma a aliança com o dis­cur­so teo-cráti­co e teo-econômi­co. Uma nar­ra­ti­va reli­giosa bas­tante inven­ti­va e detur­pado­ra dos próprios tex­tos em que afir­ma se basear, vai jus­ti­ficar desigual­dades soci­ais, pre­gar a sub­serviên­cia a padrões hierárquicos de (anti-) social­i­dade, a atom­iza­ção social e o exer­cí­cio do poder como modo de per­pet­u­ação de uma orga­ni­za­ção domés­ti­ca opres­so­ra. Para isso, ele faz um novo pacto com as religiões monoteís­tas, con­ce­bidas de maneira às vezes fun­da­men­tal­ista, out­ras, hipócri­ta. Duas faces da mes­ma moe­da, em que a reli­giosi­dade é desre­speita­da e pre­coniza­da como for­ma de dom­i­nar ou de aceitar a dom­i­nação. Seu corolário é, como sem­pre, o moral­is­mo fal­so por definição.

A par dessa fal­sa e manip­u­la­da reli­giosi­dade, a cul­tura é tam­bém desvir­tu­a­da, nesse proces­so de invasão vir­tu­al dos fun­da­men­tos de uma socia­bil­i­dade já frag­iliza­da. Note-se, por exem­p­lo, no Brasil, a difusão de uma maneira agrone­ja de expressão. O setor hegemôni­co agropecuário de pro­dução e comér­cio expor­ta­dor, chama­do pre­ten­siosa­mente de agroin­dus­tri­al ou de agronegó­cio (pref­er­en­cial­mente pelo uso do ter­mo agrobusi­ness) cria e finan­cia uma cul­tura monó­tona e monocórdi­ca de entreten­i­men­to, que reflete e copia fór­mu­las estereoti­padas de com­por­ta­men­to de comu­nidades rurais norte-amer­i­canas: a cul­tura do cow­boy estiliza­da, que descar­ac­ter­i­za ves­tuário, músi­ca e vocab­ulário, empo­bre­ci­dos pela estandard­iza­ção e repro­dução exaus­ti­va de temas de sen­ti­men­tal­is­mo, evi­den­te­mente fal­so, e de autoafir­mação per­ante uma real­i­dade inex­is­tente. O agrochic, for­ma de neo-nou­veau­richisme, com­pli­ca a cópia da vida e da indu­men­tária rancheiras, pelo acrésci­mo de sím­bo­los de riqueza, na trans­for­mação do cor­po pelos exager­a­dos recur­sos estéti­co e fisi­cul­tur­al.

A mono­cul­tura diz respeito à diz­imação do espaço agrí­co­la e pecuário, pelo avas­sal­ador pre­domínio do lat­ifún­dio e das exten­sas áreas de arren­da­men­to, volta­dos à explo­ração e exaustão da ter­ra, por lim­i­tadís­si­mo número e qual­i­dade de grãos e ani­mais, muitos mes­mo exóti­cos – que se repro­duzem na pais­agem quase-urbana dos con­domínios hor­i­zon­tais, em que o desen­ho arquitetôni­co tam­bém tem como tôni­ca o “vis­to lá fora” e o despre­zo pelas plan­tas e pais­agens nati­vas. Essa mono­cul­tura que destrói a natureza e esgo­ta a ter­ra, que cria hor­i­zontes descon­so­la­dos, enfadon­hos e des­o­ladores, repro­duz-se na cul­tura rur­al ressen­ti­da, que impõe a repetição insu­portáv­el dos mes­mos sons, mes­mos instru­men­tos, mes­mos rit­mos, mes­mos pas­sos, mes­mas danças, mes­mas ima­gens, mes­mos orna­men­tos, mes­mas palavras, mes­mos gestos, ene­bri­a­dos por um psitacis­mo que quer con­vencer a si e a seus con­sum­i­dores e con­sum­i­do­ras, embria­ga­dos pela imposição de uma feli­ci­dade fátua, da veraci­dade do que todos sabem ser pas­teur­iza­do, kitsch.

Esse setor agrone­jo, que repete, repro­duz e apro­fun­da o movi­men­to col­o­nizador, dom­i­na a econo­mia e a cul­tura do espaço do espetácu­lo e do tem­po da per­for­mance. A cul­tura, nesse sen­ti­do ambíguo, empo­brece-se e aliena-se. E se alia ao grande cap­i­tal das empre­sas inter­na­cionais pro­du­toras de insumos e de maquinário de grande porte, que tor­na agres­si­vo os próprios atos ances­trais de arar, plan­tar e col­her, ao lhes dar uma aparên­cia de empreendi­men­to indus­tri­al, na trans­for­mação sim­ples – orna­da de grande engen­ho – das usi­nas e dos grandes pos­tos de armazena­men­to, empórios e por­tos. Ocu­pam o imag­inário social, seu tem­po e emper­ram sua mobil­i­dade e sua capaci­dade de ino­vação ver­dadeira, a par­tir da recri­ação, que seria dese­jáv­el, dos aspec­tos mais autên­ti­cos dos mod­os de ser, de con­viv­er e de faz­er plu­rais. Essa classe dom­i­nante agrone­ja tam­bém invade o espaço do que se diz, noti­cia, impor­ta e expor­ta. Ocu­pa a pau­ta do social, do políti­co e do econômi­co. Onera orça­men­to e dese­qui­li­bra a bal­ança com­er­cial, de ambos os lados, impedin­do o cur­so de um proces­so dese­ja­do de desen­volvi­men­to e de sus­tentabil­i­dade. Fixa, na com­ple­men­tariedade da ideia de desen­volvi­men­to, que se desen­ro­la nos País­es que impor­tam o pro­du­to de menor val­or agre­ga­do, o ciclo de sub­de­sen­volvi­men­to, de cujas con­se­quên­cias pre­tende se afas­tar, por seu padrão de con­sumo. Dois cic­los que se expli­cam, em sua oposição, e se com­ple­men­tam, em sua dependên­cia.

A aliança desse setor dá-se, igual­mente, com o finan­ceiro. Num proces­so cada vez mais desigual de acu­mu­lação de riqueza e, na out­ra pon­ta, empo­brec­i­men­to da imen­sa maio­r­ia. A col­o­niza­ção, ago­ra, é per­va­si­va. O desapos­sa­men­to e a destru­ição nat­ur­al adquirem uma lóg­i­ca per­ver­sa de fábri­ca, em que setores for­mais e empre­sari­ais, ou infor­mais e ile­gais, de explo­ração indi­vid­ual ou cole­ti­va – como na min­er­ação, por exem­p­lo – empreen­dem uma lóg­i­ca de parce­ria. Con­tin­u­am a se uti­lizar de finan­cia­men­to e sub­sí­dios, ao mes­mo tem­po em que recla­mam do Esta­do e de sua capaci­dade cada vez mais restri­ta de con­t­role e fis­cal­iza­ção.

  1. Fragmentação da Soberania. O Povo para Dentro e para Fora

Esta­do e sociedade, no Brasil, estão sep­a­ra­dos por um grande fos­so, cava­do por um apara­to anti­con­sti­tu­cional prepara­do a mil mãos.

É a essa ordem estrat­i­fi­ca­da e de inten­sa dis­pu­ta ter­ri­to­r­i­al, na qual a noção de admin­is­traçãoprevalece sobre a de con­sti­tu­ição,[24] que per­tence a noção de guer­ra de sítio, da qual vai derivar o con­ceito e a insti­tu­ição do esta­do de sítio. Como pre­ten­di demon­strar, essa noção, que vai per­me­ar a exper­iên­cia con­tem­porânea políti­ca e jurídi­ca, e que per­manece viva nos chama­dos dire­ito con­sti­tu­cional e con­sti­tu­cional­is­mo con­tem­porâ­neos, está vin­cu­la­da à tam­bém sobre­vivên­cia – e ressurgên­cia com inten­sa força – dos cor­pos inter­mediários. Há uma relação instru­men­tal recíp­ro­ca e fun­da­men­tal entre cor­pos inter­mediários e esta­do de sítio, que expli­ca, de min­ha per­spec­ti­va, o dra­ma con­sti­tu­cional e democráti­co que ora viven­ci­amos. Expli­ca o fos­so exis­tente entre Esta­do e sociedade, a pre­sença de inúmeros agentes ou agên­cias inter­mediárias entre o Esta­do e o con­jun­to da cidada­nia, num cer­co que impede a real­iza­ção da con­sti­tu­ição e restau­ra o império do admin­is­tra­ti­vo (e do econômi­co), em detri­men­to do jurídi­co (e do con­sti­tu­cional).

O autori­taris­mo ou a tira­nia con­tem­porâ­neos decor­rem da imposição cul­tur­al da ideia de que, para a mas­sa, a coesão somente se impõe pela força, exer­ci­da por um líder caris­máti­co, que usurpa o espaço públi­co e pas­sa a agir em pre­ten­so nome do povo, mas em rep­re­sen­tação dire­ta de inter­ess­es de gru­pos econômi­cos, soci­ais e mil­itares.

O esforço comum dos povos que ain­da vivem e son­ham a democ­ra­cia e a capaci­dade que a existên­cia políti­ca e jurídi­ca pos­sui de pro­por­cionar o bem viv­er, a feli­ci­dade de que falavam os Anti­gos e reivin­di­ca­va o espíri­to rev­olu­cionário dos Mod­er­nos é essen­cial, porque é o úni­co cam­in­ho para des­faz­er as rodas do para­fu­so que ten­tam impor a supressão das liber­dades pela imple­men­tação de novos autori­taris­mos.

Assim, a per­gun­ta está em saber que (des)caminhos e rit­mos estão pos­tos a enfrentar esse movi­men­to aparente­mente avas­sal­ador da nova lóg­i­ca oligárquica.  Como sem­pre, ess­es espaços e tem­pos da dis­cór­dia cidadã, do lev­ante ou sub­l­e­vação, da ocu­pação ou dis­sensão e da liber­dade,[25] estão pos­tos na for­ma de agir e faz­er dos povos, con­sid­er­a­dos em seu con­jun­to, por­tan­to, não ape­nas na con­tra­posição nacional, mas, sobre­tu­do, inter­na­cional, aos regimes de dom­i­nação, opressão e explo­ração.

Não ape­nas resistên­cia, mas, sobre­tu­do, ação democráti­ca.

Diante do sítio ou cer­co que impede a relação povo-políti­ca, que for­mas podem obser­var para resta­b­ele­cer e con­tin­uar a con­strução democráti­ca, é o que pas­so a procu­rar esta­b­ele­cer.

Cer­ca­do em seu próprio ter­ritório, que não con­segue mais admin­is­trar, o Esta­do se vol­ta para fora. É como que empurra­do para fora.

Cer­ca­do ter­ri­to­r­i­al e fun­cional­mente, o Esta­do bus­ca bre­chas para reen­con­trar o seu povo.

Mas são o povo, inter­na­mente, e o con­jun­to dos povos, na sociedade inter­na­cional que, em primeiro lugar, serão os agentes vir­tu­osos dessa ten­ta­ti­va de reconexão.

Nos dois casos, exter­no e inter­no, essa reconexão se dá pela ideia de povos ou nações, recu­peran­do, de modo diver­so e orig­i­nal, as abstrações que fun­daram a sobera­nia mod­er­na e o Neolib­er­al­is­mo refutou, como com­ple­men­to de sua negação da sobera­nia.

O que é esse povo e o que sig­nifi­ca essa nação na atu­al­i­dade é pre­ciso perquirir e resolver, para dar ao poder (κρατία) o real e atu­al con­torno de sua atu­al­i­dade e tit­u­lar­i­dade (δῆμος).

À analise que fiz ante­ri­or­mente, a que reme­to leito­ra e leitor, das car­ac­terís­ti­cas desse povo para den­tro ou para si,[26] gostaria de acres­cen­tar algu­mas obser­vações breves, ten­do em vista a con­tra­posição do povo aos mod­os do esta­do de sítio e dos cor­pos inter­mediários.

Emb­o­ra a frag­men­tação que define a con­cepção dos cor­pos inter­mediários encon­tre cor­re­la­to na inten­si­dade da diver­si­dade – e reivin­di­cações de iden­ti­dade – do povo con­tem­porâ­neo, parece-me evi­dente que forças cen­trípetas de cole­tivi­dade de ação e de sol­i­dariedade, de bus­ca de enraiza­men­to ou de laços com ances­tral­i­dade, a par de união e mes­mo de fusão cul­tur­al, con­trapõem-se à for­ma como atua e pos­tu­la a real­i­dade o regime neolib­er­al.

Não há muito espaço para que me deten­ha no destrin­char dessas car­ac­terís­ti­cas, pelo que peço, uma vez mais, licença a quem acom­pan­ha min­ha reflexão, para referir out­ro tra­bal­ho em que ess­es temas encon­tram mel­hor explic­i­tação.[27]

Mas há o movi­men­to do povo para fora, a que cor­re­sponde a fuga dos mod­os de atu­ar dos gov­er­nos, siti­a­dos pelas estru­turas neolib­erais, no sen­ti­do das relações com­ple­mentares inter­na­cionais, procu­ran­do uma aliança entre novos atores estatais e de empa­tia plan­etária das gentes.

Tra­ta-se, antes de tudo, da pos­si­bil­i­dade de restau­ração da anti­ga con­cepção do ius gen­tium, que com­po­ria, com o ius ciuile e o ius nat­u­rale, a tríade definido­ra da situ­ação cidadã no mun­do da ciuitas. O ius nat­u­raleseria aque­le que a natureza teria ensi­na­do a todos os ani­mais, que tran­scen­de­ria, pois, o humano, numa com­posição uni­ver­sal da natureza. O ius civile, o dire­ito rel­a­ti­vo a nor­mas escritas e cos­tumes especí­fi­cos a cada sociedade políti­co-jurídi­ca. O ius gen­tium, afi­nal, o dire­ito comum a todos os povos.

Não se tra­ta, bem assim, do dire­ito inter­na­cional, na con­cepção mod­er­na, mas, pro­pri­a­mente, aque­le que é com­pos­to, em con­jun­to, pela con­tribuição das múlti­plas nações e de seu impul­so de coop­er­ação civ­i­lizador. Não impos­to, por­tan­to, pelas tan­tas hege­mo­nias mundi­ais, mas tra­bal­ha­do em colab­o­ração hor­i­zon­tal entre os vários povos.

Não cor­re­sponde aos esforços de con­strução da ordem inter­na­cional d(a  chama­da era d)os dire­itos, mas, como vis­lum­bro, de uma nova Era das Deveres e Obri­gações,[28] ini­ci­a­da, a par­tir da déca­da de 1970, pelos doc­u­men­tos inter­na­cionais de pre­ocu­pação e de índole ambi­en­tal, bem como pelos doc­u­men­tos de pre­ocu­pação cole­ti­va e afir­ma­ti­va da sol­i­dariedade, como a Declar­ação Africana dos Dire­itos Humanos e dos Povos.

Assim, é na aprox­i­mação entre os povos e entre os País­es que preser­vam coal­izões democráti­cas, como resul­ta­do dos jogos eleitorais, muito emb­o­ra os riscos e prob­le­mas que fal­seiam e frag­ilizam o mecan­is­mo da rep­re­sen­tação legí­ti­ma. País­es como o Méx­i­co, a Colôm­bia, o Uruguai, o Chile e o Brasil, nas Améri­c­as.

Esse abri­go exter­no, hos­pi­tal­i­dade que fun­da­men­ta o jurídi­co.[29]

A democ­ra­cia é na ver­dade, o regime da igual­dade da pre­sença no espaço/tempo públi­ca e da palavra. Quem está pre­sente? E quem bus­ca impedir essa pre­sença, fazen­do do gov­er­no uma abstração dis­tante?

Vimos como, na con­tem­po­ranei­dade da oli­gar­quia neolib­er­al, se esta­b­elece o dis­tan­ci­a­men­to, a par­tir da recom­posição orig­i­nal do esta­do de sítio e dos cor­pos inter­mediários.

Será que os povos espel­ham essa con­fig­u­ração, por meio de cor­pos inter­mediários que emanam de si e de estru­turas de ocu­pação que minam o esta­do de guer­ra per­ma­nente?

Essa é a inda­gação fun­da­men­tal, para aten­der­mos qual é o par dialógi­co dessas práti­cas atu­ais e dis­cur­si­vas do sítio e da inter­me­di­ação frag­men­tária.

A frag­men­tação ocorre, por­tan­to, tam­bém, do lado do povo. Isso não ape­nas porque há uma dis­per­são de pau­tas, por um povo, que se vê, iden­ti­fi­ca-se, expres­sa-se e apre­sen­ta-se como muitos povos, com múlti­plas raízes – que bus­ca con­hecer e recu­per­ar, para moldar um dis­cur­so mais coer­ente e ati­vo, para con­stru­ir reivin­di­cações mais pre­cisas, para além das estru­turas do uni­ver­sal­is­mo das declar­ações inter­na­cionais.

Fun­da­men­tal­mente, há a procu­ra por meio dess­es novos dis­cur­sos de dis­pu­ta do domínio da lin­guagem, que con­sti­tui novos espaços/tempos públi­cos, e essas novas práti­cas con­sagram novas for­mas de con­ce­ber e exercer o poder, ao dar con­cre­tude a seu ele­men­to pre­cisa­mente democráti­co: o δμος adquire con­tornos mais definidos, uma face mais real­ista.

Um dos aspec­tos deci­sivos é que os vários povos encon­tram no âmbito inter­na­cional novos fóruns de comu­ni­cação e delib­er­ação, por­tan­to, con­stituem novos espaços públi­cos de com­posição de dire­ito, com­pon­do novos deveres que serão apli­ca­dos, a par­tir de fora, do espaço inter­na­cional ou transna­cional, aos Esta­dos. São as nor­mas stan­dards, de origem na escrit­u­ra do dire­ito do comér­cio inter­na­cional, que servi­am a impor um dire­ito traslada­do dos pro­tag­o­nistas dessa visão mer­can­til do mun­do, mas que, ago­ra, pas­sam a ser for­mu­ladas por gru­pos soci­ais, como as orga­ni­za­ções não-estatais (non-gov­ern­ment orga­ni­za­tions, NGO, ONG), ou por movi­men­tos ou cole­tivos soci­ais, ain­da por agentes indi­vid­u­ais que se inserem, como obser­vadores ou colab­o­radores nos organ­is­mos inter­na­cionais capazes de pro­por e mes­mo impor novas nor­mas para serem ado­tadas por país­es, mem­bros ou não dess­es organ­is­mos. Apare­cem sob o nome de novas e mel­hores práti­cas e se tor­nam nor­mas jurídi­cas ou quase-jurídi­cas.

Por meio dess­es gru­pos, esta­b­ele­cem-se, igual­mente, espaços de for­mação, molda­da pelo inter­esse em cri­ar capaci­dades de for­mu­lação de práti­cas, nor­mas e políti­cas, por meio da con­strução de pro­je­tos, apre­sen­ta­dos a agentes nacionais ou inter­na­cionais de finan­cia­men­to.

São novos par­a­dig­mas de par­tic­i­pação e de legit­im­i­dade, sem a inter­fer­ên­cia da rep­re­sen­tação. E per­mitem que esse novo espaço/tempo da políti­ca e do dire­ito for­je uma con­cepção de paz difer­ente daque­la pre­coniza­da pelos organ­is­mos inter­na­cionais cri­a­dos após os con­fli­tos inter­na­cionais do Sécu­lo XX.

Por exem­p­lo, a Orga­ni­za­ção das Nações Unidas pun­ha como obje­ti­vo fun­da­men­tal da ordem inter­na­cional o fim das guer­ras inter­na­cionais, as guer­ras entre Esta­dos. Essa ordem nova pre­tendia, sobre­tu­do, encer­rar o modo de solução de con­fli­tos por meio do uso de armas. Esta­va volta­da, pre­cipua­mente, a find­ar o ciclo de embat­es entre as potên­cias europeias.

Até recen­te­mente, esse pro­je­to foi efi­caz, ao empreen­der dois movi­men­tos: o primeiro de domes­ticar os con­fli­tos, nos dois sen­ti­dos do ter­mo “domes­ticar”, isto é, tornar dis­ci­plinadas e inter­nalizar as guer­ras. O segun­do, o de reti­rar as guer­ras do ambi­ente europeu, em par­tic­u­lar, e do Norte Glob­al, em ger­al, restringin­do-as a con­fli­tos inter­nos dos País­es fora dessa área. Reti­rar, por­tan­to, o caráter políti­co das guer­ras e tor­na-las par­tic­u­lar­izadas, na for­ma de embat­es reli­giosos, étni­cos, etc. Nesse sen­ti­do, as guer­ras pas­saram a ser assun­to domés­ti­co e pri­va­do a regiões e País­es. A ordem inter­na­cional não mais agia como agente da guer­ra, mas na for­ma da inter­venção human­itária: inter­venção como mecan­is­mo do dire­ito de guer­ra).

É impor­tante obser­var que a Era dos Dire­itos não suprim­iu o mecan­is­mo da guer­ra, mas ape­nas o domes­ti­cou, esta­b­ele­cen­do regras para a sua con­sid­er­ação jurídi­ca, no embate entre as partes envolvi­das, e para a juri­ci­dade da inter­venção.

Muito bem, na Era dos Deveres e Respon­s­abil­i­dades, a paz pas­sa a ter um sen­ti­do mais ati­vo. Não se tra­ta mais e ape­nas da situ­ação de supressão da vio­lên­cia explíci­ta. Propõe-se uma paz que supri­ma todos os mod­os de vio­lên­cia, mate­ri­ais e ima­te­ri­ais. Além dis­so, que haja uma pos­tu­ra ati­va dos Esta­dos e da sociedade inter­na­cional, no sen­ti­do de difusão cul­tur­al de uma cul­tura da paz que deixe de ser somente um esta­do de latên­cia de con­fli­tos (guer­ra e sítio, como acentuei).

A paz pas­sa a ser uma for­ma de supressão abso­lu­ta da pos­si­bil­i­dade de recur­so à vio­lên­cia inter­na e inter­na­cional para solu­cionar con­fli­tos, com­preen­di­dos como mod­os de expressão de divergên­cias na con­vivên­cia, e que deter­mi­nam maneiras de atu­ação pre­ven­ti­va e restau­ra­ti­va, de imped­i­men­to não pro­pri­a­mente de con­tra­posições, con­sid­er­adas nat­u­rais ao con­ví­cio social, mas de essas se tornarem sistêmi­cas ou estru­tu­rais. Uma cul­tura de con­stante escu­ta de reclam­os e de aber­tu­ra de canais de livre expressão e de respon­sivi­dade ou respon­s­abil­i­dade no fornec­i­men­to de respostas e de meios de res­olução dos prob­le­mas. Ou seja, faz­er justiça e impedir a per­pet­u­ação e a mul­ti­pli­cação de injustiças em todos os ambi­entes.

Mais do que uma paz pos­i­ti­va, tra­ta-se de uma paz pre­sente, modo difu­so de com­preen­der a própria sociedade políti­ca autên­ti­ca, que diz­er, a democ­ra­cia.

À dis­sensão, a cri­ação, con­strução e a ocu­pação do espaço/tempo da políti­ca cor­re­sponde a expressão da dis­sensão que pas­sa a ter na própria políti­ca que define a maneira de sua solução, em eter­no empreendi­men­to de difusão e con­cen­tração da liber­dade.

Em sín­tese, con­tra o esta­do de sítio, a ocu­pação democráti­ca e a paz; con­tra os cor­pos inter­mediários, a expressão dos povos que com­põem deveres e respon­s­abil­i­dades. A diver­si­dade dess­es povos sub­sti­tui a fal­sa uni­ver­sal­i­dade, que era e ain­da é uma imposição de mod­os de ser e faz­er dos Esta­dos e das oli­gar­quias que se con­sid­er­am hegemôni­cas — dis­farçan­do o serem mino­rias sob o nome de povo ou nação ou de van­guardas elit­is­tas. “Elit­is­tas” não no sen­ti­do de serem escol­hi­das, mas no sen­ti­do de se auto escol­herem.; “van­guardas” não no sen­ti­do de dotadas de capaci­dade de avanço e pro­tag­o­nis­mo, mas ape­nas como se pre­ten­dem denom­i­nar.

Dessa for­ma, a par­tic­i­pação pas­sa a pau­lati­na­mente ser recom­pos­ta e se tornar o modo de faz­er políti­ca, com o rea­pos­sa­men­to da legit­im­i­dade, antes pre­tendi­da ape­nas pela for­ma da rep­re­sen­tação.

É pre­ciso, pois, recu­per­ar tam­bém a ideia de legit­im­i­dade, que foi aban­don­a­da quan­do a ordem da dom­i­nação oligárquica quis dar a imagem de um mun­do total­mente sub­meti­do a nor­mas jurídi­cas, em que a solução das questões soci­ais se resumiria a um uni­ver­so mera­mente garan­tista da rule of law, o império da lei. O dire­ito, porém, vai além da ideia de lei e se per­faz não pela obe­diên­cia ou sub­mis­são, mas pelo faz­er em con­jun­to, con­stru­ir mod­os de con­vivên­cia cada vez mel­hores e não se sub­me­ter a mod­e­los preesta­b­ele­ci­dos, impos­tos. O dire­ito é autono­mia e não het­erono­mia.

Como autono­mia, o dire­ito pre­cisa da legit­im­i­dade. Não se diz só como lei. O dire­ito, por­tan­to, deri­va da democ­ra­cia.

São essas as ano­tações que apre­sen­to para a com­preen­são daqui­lo que, con­trapon­do-se ao movi­men­to da dom­i­nação das novas oli­gar­quias, con­sti­tui não uma nova democ­ra­cia, mas o movi­men­to con­stante de aper­feiçoa­men­to do regime do povo.

 

(Como citar este arti­go: ATTIÉ, Alfre­do. “Autori­taris­mos Neolib­erais: o Esta­do de Sítio” in Acad­e­mia Paulista de Dire­ito. Breves Arti­gos, pub­li­ca­do em 22.03.2025. Aces­so em https://apd.org.br/estado-de-sitio-e-autoritarismos-neoliberais-por-alfredo-attie/)

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NOTAS

[1]  É o resumo de min­ha con­tribuição aos even­tos, ocor­ri­dos, respec­ti­va­mente, em quinze de dezem­bro de 2024 e vinte e sete de fevereiro de 2025, em respos­ta ao gen­til con­vite, em ver­dade, à per­ti­nente e vee­mente con­vo­cação do Insti­tu­to Novos Par­a­dig­mas para a for­mu­lação de pro­postas para o mun­do con­tem­porâ­neo, no Ciclo de Dis­cussões lev­a­do a cabo no G20 Social, no Rio de Janeiro, e no even­to que ante­cedeu à posse do atu­al Pres­i­dente da repúbli­ca Ori­en­tal do Uruguai, Yamandú Orsi, da Frente Ampla, em torno do tema Democ­ra­cia, Equidade e Enfrenta­men­to do Autori­taris­mo, do qual tive o praz­er de par­tic­i­par, ao lado de queri­dos ami­gos e ami­gas, sob a coor­de­nação do jurista, ex-Min­istro, ex-Gov­er­nador do Rio Grande do Sul, ex-Prefeito de Por­to Ale­gre, Tar­so Gen­ro. A exper­iên­cia foi extrema­mente rica, graças à con­tribuição das pes­soas e das insti­tu­ições e dos movi­men­tos da sociedade civ­il, a par de rep­re­sen­tantes do Gov­er­no, do Brasil, do Uruguai, do Chile e de out­ros País­es.

[2] Alfre­do Attié é jurista, filó­so­fo e escritor, Doutor em Filosofia da Uni­ver­si­dade de São Paulo, onde estu­dou Dire­ito (FD.USP) e História (FFLCH.USP). É Pres­i­dente da Acad­e­mia Paulista de Dire­ito e Tit­u­lar da Cát­e­dra San Tia­go Dan­tas, na qual sucede a Gof­fre­do da Sil­va Telles Jr. Con­sel­heiro da Fun­dação Esco­la de Soci­olo­gia e Políti­ca de São Paulo. Autor dos livros:  Dire­ito e Econo­mia: Pon­to e Con­trapon­to Civ­i­liza­cionais (no pre­lo, São Paulo: Tirant, 2025); África Con­sti­tu­inte (no pre­lo, São Paulo: Tirant, 2025); Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos (São Paulo: Tirant, 2023); O Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito (São Paulo: Tirant, 2021), Towards Inter­na­tion­al Law of Democ­ra­cy (Valên­cia: Tirant Lo Blanch, 2022); A Recon­strução do Dire­ito: Existên­cia. Liber­dade, Diver­si­dade (Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003); e Mon­tesquieu (Lis­boa: Chi­a­do, 2018), tam­bém é mestre em Filosofia e Teo­ria do Dire­ito pela FD.USP e em Dire­ito Com­para­do pela Cum­ber­land School of Law, foi Procu­rador do Esta­do de São Paulo, Advo­ga­do e Juiz de Dire­ito e exerce a função de Desem­bar­gador do Tri­bunal de Justiça paulista. Mem­bro de enti­dades inter­na­cionais, par­tic­i­pan­do ati­va­mente de foros para a defe­sa e con­strução dos dire­itos humanos, a paz, a democ­ra­cia e a pro­teção do meio ambi­ente.  Site: http://apd.org.br; E‑mail: aattiejr@gmail.com; Mais infor­mações em http://lattes.cnpq.br/8117126316669740. ORCID: https://orcid.org/0000–0001-7854–7696.

[3]C’est signe de guerre! — C’est sûr ! — C’est signe de rien. — C’est selon. — Assez. C’est la chaleur … — Suf­fit. — Elle sif­fle trop fort. — Elle assour­dit surtout. — C’est un sort sur la cité ! — Aïe ! Cadix ! Un sort sur toi ! — Silence ! Silence ! ” CAMUS, Albert. L’État de Siège : Spec­ta­cle en Trois Par­ties. Paris : Gal­li­mard, 1948. Traduzi, livre­mente.

[4]Ai-je par­lé du ciel, juge ? J’ap­prou­ve ce qu’il fait de toutes façons. Je suis juge à ma manière. J’ai lu dans les livres qu’il vaut mieux être le com­plice du ciel que sa vic­time. Id. ibid. Traduzi, livre­mente.

[5]“… unde Iusti­tia, Fides, Aequitas? Nempe ab iis qui haec dis­ci­pli­n­is infor­ma­ta alia moribus con­fir­marunt, sanxerunt autem alia leg­ibus.”  CICERO. De Re Pub­li­ca. I,2. Traduzi, livre­mente.

[6] ATTIÉ, Alfre­do. Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito. São Paulo: Tirant, 2022; ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfre­do. “Anti­con­sti­tu­cional­i­dade e Antipolíti­ca” in Democ­ra­cia e Dire­itos Fun­da­men­tais, Por­to Ale­gre: Insti­tu­to Novos Par­a­dig­mas, pub­li­ca­do em 04/08/2021, acessív­el em https://direitosfundamentais.org.br/anticonstitucionalidade-e-antipolitica/.

[7] Sobre a difer­ença entre pacto e con­tra­to ver: ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023.

[8] Öffentlichkeit, pub­lic sphere, espace pub­lic.

[9] ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023.

[10] Para a difer­ença entre o con­sti­tu­cional e o admin­is­tra­ti­vo, ver ATTIÉ, Alfre­do. Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito. São Paulo: Tirant, 2021.

[11] Veja-se, à guise de exem­p­lo, o arti­go ATTIÉ, Alfre­do. “Rev­olução Con­sti­tu­cional Igno­ra­da”, em Brasil 247, pub­li­ca­do em 13 de Agos­to de 2023, disponív­el em https://www.brasil247.com/blog/revolucao-constitucional-ignorada.  Pre­tendo, em breve, apro­fun­dar essa análise, em livro que fará a críti­ca do Dire­ito Con­sti­tu­cional, pro­pon­do e bus­can­do realizar uma abor­dagem difer­ente e plás­ti­ca das Con­sti­tu­ições.

[12] Ver ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfre­do. Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito. São Paulo: Tirant, 2021; ATTIÉ, Alfre­do. Towards Inter­na­tion­al Law of Democ­ra­cy. Valen­cia: Tirant, 2022; ATTIÉ Jr, Alfre­do. A Recon­strução do Dire­ito: Existên­cia, Liber­dade, Diver­si­dade. Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003.

[13] A exper­iên­cia europeia tornou-se rel­e­vante em decor­rên­cia da imposição de suas doutri­nas e práti­cas admin­is­tra­ti­vas e con­sti­tu­cionais no cur­so da con­ver­são, explo­ração e opressão decor­rentes de sua col­o­niza­ção de out­ras partes e out­ros povos do Mun­do, proces­so evi­den­te­mente efi­ciente, como resul­ta­do da vio­lên­cia que lhe era implíci­ta, na bus­ca inces­sante de destru­ir a especi­fi­ci­dade de out­ras exper­iên­cias e doutri­nas. Ver ATTIÉ Jr, Alfre­do. A Recon­strução do Dire­ito: Existên­cia, Liber­dade, Diver­si­dade. Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003.

[14] Tra­bal­ho essa dis­tinção entre pen­sa­men­to e pro­je­to rev­olu­cionários, por um lado, e con­sti­tu­cional­is­mo, por out­ro, em ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023.

[15] No pan­fle­to Qu’est-ce que le Tiers-État? que viria se tornar a obra inau­gur­al do con­sti­tu­cional­is­mo con­tem­porâ­neo europeu, com larga influên­cia no mun­do colo­nial, respon­sáv­el pela inserção na teo­ria do dire­ito con­sti­tu­cional da noção de poder con­sti­tu­inte.

[16] ATTIÉ Jr. Alfre­do. A Recon­strução do Dire­ito Existên­cia, Liber­dade, Diver­si­dade. Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003.

[17] Veja-se, recen­te­mente, ATTIÉ, Alfre­do. “Justiça para as Cidades” in A Ter­ra é Redon­da, pub­li­ca­do em 28.06.2024, disponív­el em https://aterraeredonda.com.br/justica-para-as-cidades/; e ATTIÉ, Alfre­do “Méx­i­co – a Refor­ma do Poder Judi­ciário” in A Ter­ra é Redon­da, pub­li­ca­do em 28.10.2024, disponív­el em https://aterraeredonda.com.br/mexico-a-reforma-do-poder-judiciario/.

[18] Ver ATTIÉ, Alfre­do. Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito. São Paulo: Tirant, 2021.

[19] No Brasil, ver as leis 9.427, de 26 de dezem­bro de 1996, 9.472, de 16 de jul­ho de 1997, 9.478, de 6 de agos­to de 1997, 9.782, de 26 de janeiro de 1999, 9.961, de 28 de janeiro de 2000, 9.984, de 17 de jul­ho de 2000, 9.986, de 18 de jul­ho de 2000, 233, de 5 de jun­ho de 2001, 11.182, de 27 de setem­bro de 2005, 10.180, de 6 de fevereiro de 2001; e 13.848, de 25 de jun­ho de 2019, e a Medi­da Pro­visória 2.228–1, de 6 de setem­bro de 2001.

[20] No Brasil, o momen­to de iní­cio de inserção das agên­cias data de 1997, após o iní­cio pre­cisa­mente, do proces­so de pri­va­ti­za­ções.

[21] Lei Com­ple­men­tar nº 179/2021, no Brasil,

[22] ATTIÉ Jr, Alfre­do. A Recon­strução do Dire­ito: Existên­cia, Liber­dade, Diver­si­dade. Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003.

[23] ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023.

[24] ATTIÉ, Alfre­do. Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito. São Paulo: Tirant, 2021.

[25] ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023; ATTIÉ, Alfre­do. “Liber­dade, Dis­sensão, Sub­l­e­vação: movi­men­tos, sen­ti­men­tos e ver­sões da políti­ca e do dire­itoin Solon, Ari et al. (coord.) Múlti­p­los Olhares sobre o Dire­ito: Hom­e­nagem aos 80 anos do Pro­fes­sor Eméri­to Cel­so Lafer, vol­ume I, São Paulo: Quarti­er Latin, 2022, p. 547–575.

[26] ATTIÉ, Alfre­do. Brasil em Tem­po Acel­er­a­do: Políti­ca e Dire­ito. São Paulo: Tirant, 2021.

[27] ATTIÉ, Alfre­do. África Con­sti­tu­inte. São Paulo: Tirant, 2025, no pre­lo.

[28] ATTIÉ, Alfre­do. Dire­ito Con­sti­tu­cional e Dire­itos Con­sti­tu­cionais Com­para­dos. São Paulo: Tirant, 2023.

[29] ATTIÉ Jr, Alfre­do. A Recon­strução do Dire­ito: Existên­cia, Liber­dase, Diver­si­dade. Por­to Ale­gre: Fab­ris, 2003.