Nota pública de Crítica, e Protesto contra o emprego de Prisão Temporária para reprimir movimento político legítimo
“Quem castiga nem é Deus, é os avessos”[1]
Em crítica e protesto contra a decretação ida prisão temporária do líder dos movimentos “Revolução Periférica” e “Entregadores Antifascistas,” Paulo Roberto da Silva Lima, o Galo, entregador de aplicativos e ativista político, e de sua companheira Gessica Barbosa, ocorrida em 28 de julho de 2021. o CRIMINOLOGIA BRASIL/APD, Núcleo de Pesquisas de Criminologia Política e Cultural, vinculado à Cadeira San Tiago Dantas, da Academia Paulista de Direito, vem esclarecer os contornos jurídicos e políticos e o contexto que envolve esse ato que se mostra inconstitucional.
A prisão teria sido decretada em razão dos protestos que levaram à queima parcial da conhecida e polêmica[2] Estátua de Borba Gato, escultura de autoria de Júlio Guerra, localizada no bairro de Santo Amaro, em São Paulo, cujo valor artístico é posto em dúvida até mesmo por seu autor.
O ato, segundo afirma Paulo, em entrevista concedida no dia da prisão[3], teve como objetivo abrir o debate sobre homenagens públicas a personagens da história brasileira supostamente identificados a práticas de violência e crimes contra o povo brasileiro. Frisou, ainda, na oportunidade, não ter havido intenção de causar dano a ninguém nem levar pânico à sociedade. Veja-se o que Paulo afirmou em rede social:
O líder do movimento, inclusive, dirigiu-se voluntariamente à Delegacia de Polícia, quando foi surpreendido com a expedição de um mandado de prisão temporária contra si e contra sua esposa, que sequer participou do ato. Veja, aqui, a nota:
O episódio chama a atenção, por um lado, para arbitrariedade da atuação do Poder Judiciário na decretação das prisões e, por outro, para a necessidade de uma reflexão mais aprofundada, pela sociedade brasileira, quanto à presença de monumentos públicos que ferem ou podem ferir, em alguma medida, a própria dignidade do povo brasileiro, em sua diversidade.
O Brasil passa por tempos em que direitos e garantias previstas no texto Constitucional e em Tratados Internacionais de Direitos Humanos são constantemente violados por aqueles que exercem mandatos eletivos nos mais importantes cargos da República, inclusive o maior deles, o que, sem dúvida, é um péssimo exemplo aos integrantes dos demais Poderes.
Todavia, a Constituição Federal e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, com seus direitos e garantias, estão em pleno vigor. O Poder Judiciário deve atuar não para promover um desvirtuado direito à segurança, mas sim a segurança dos direitos, na feliz expressão de Alessandro Baratta. A prisão-pena, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, viola a garantia da presunção de inocência, prevista no art. 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, não havendo motivo algum para se decretar a prisão temporária de acusado que compareceu voluntariamente à Delegacia, e de sua mulher, mãe de criança que necessita de seus cuidados, em violação ao que já decidiu o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus coletivo nº 143.641.
Indicam os elementos informativos já tornados públicos que o ato cometido por Paulo, não se revela penalmente relevante. O Direito Penal, enquanto existir, não deve servir para, sob o engodo das finalidades preventivas e retributivas da pena, reprimir levantes populares questionadores de simbologias atreladas, completamente ou ainda que em alguma medida, a valores pautados na exploração e opressão de pessoas, grupos, classes, movimentos sociais e entidades da sociedade civil, notadamente a escravidão de africanos, indígenas e seus descendentes„ de genocídio e outras violências, subtraindo do povo o debate sobre a legitimidade do ato político realizado e sobre a pertinência da permanência de ideias colonizadores, por meio de monumentos públicos, ocultando do debate sua finalidade exclusivamente política, por meio de repressão aos direitos fundamentais de expressão e de manifestação. Também não cabe ao Judiciário a censura do conteúdo ou interpretação histórica feita por movimentos, coletivos e entidades da sociedade civil, que encontram legitimação na forma de organização política que busca precisamente o direito de manifestação e de expressão crítica. Somente as graves violações dos Direitos Humanos, inclusive, podem ser objeto de tutela penal, e isso até que o debate público e democrático permita que a sociedade encontre modelos de solução de seus conflitos que possam substituir o Direito Penal, de modo a preservar melhor direitos e garantias. No caso, não há indício de que os acusados tenham violado Direitos Humanos. Ao contrário, a ausência de dolo específico e de violação ao bem jurídico tutelado pela norma penal é o que parece exsurgir dos indícios até aqui revelados, portanto, ao contexto fático e normativo atual. O ato político deve ser julgado pela sociedade e eventuais danos, se comprovados, podem ser discutidos nas esferas civil e administrativa, consoante os princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade do Direito Penal.
A exata atuação de Borba Gato como um personagem associado a práticas como a escravização de povos indígenas ou outros atos violentos é matéria de debates na historiografia, mas sua história de vida inegavelmente está associada aos Bandeirantes, cujo papel, especialmente na história do Estado de São Paulo, é cercado de uma visão idealizada, romântica e pouco comprometida com os fatos históricos. A estátua, aliás, corresponde a esforço oficial de identificação da história paulista à ação de bandeirantes, alçados a heróis, concepção hoje considerada estereotipada, mesmo equivocada, no sentido de desprezar outros componentes essenciais da história, sobretudo a contribuição nativa e os atos de violação de sua vida e de sua cultura. É inegável que nossa história é repleta de silêncios constrangedores, de traumas pouco ou nada elaborados e de violências contra etnias, gêneros e povos lançados à periferia dos direitos. A avaliação da legitimidade do ato cabe, assim, a amplo debate político-jurídico, exorbitando da função de uma parcela da comunidade jurídica de atuação nada plural e representativa, destituída de legitimidade político-social, não escolhida, na forma da Constituição para atuar desse modo e sem a promoção de qualquer diálogo com a sociedade e seus organismos e movimentos. Admitir atos assim configurados significa a perpetuação de uma postura elitista, pouco comprometida com a pluralidade de ideias, distante de produzir, como deseja a Constituição, o acolhimento necessário a um povo sofrido e vulnerável. Admitir, portanto, que a vida social se encaminhe sem a efetiva realização da justiça.
O encontro da sociedade com seu passado real, que Darcy Ribeiro nomeou de “moinho de gastar gente”, resultado da escravidão e do extermínio dos povos originários, é imperioso e latente, e os Bandeirantes, como apontava nosso antropólogo, podem ter sido responsáveis pela captura e escravização de mais de 300 mil índios.
Os movimentos e a mudança, no seio social, em si mesmos, não devem ser reprimidos. O efeito intimidatório da prisão dos manifestantes se depreende da decisão que decretou a prisão dos envolvidos, inviabilizando não apenas o diálogo, mas o movimento e a mudança. A crítica literária Walnice Nogueira Galvão afirma que “a essência da vida é o movimento e a mudança. Esse, o sentido dela: o de um processo dinâmico, sem pressa, constante na sua inconstância,” sentido que impregna, segundo a crítica literária brasileira o emprego de linguagem de Guimarães Rosa, nas veredas e personagens de seu Grande Sertão: “… os erros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? Por exemplo… No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…” Conclui Walnice que desejar ter certeza no seio do movimento e da mudança “é atentar contra a desordem natural das coisas, que é a sua ordem recôndita…”[4]
A prisão provisória travestida de pena, nesse cenário, é um mero fato nu e cru de poder, impede o movimento e sequestra, da própria sociedade, o diálogo. É preciso dar voz aos atores sociais, à sociedade e ao povo, seus movimentos, seus historiadores, filósofos, cientistas, juristas, enfim, para que se possa debater e enfrentar traumas, não devendo seus agentes públicos valerem-se de suas funções para falar e agir em nome da própria sociedade, sem mandato e negando o debate.
Vera Malaguti Batista afirma que o “real poder do sistema penal na América Latina é positivo, configurador e dirigido aos setores pobres e aos dissidentes, com o máximo de arbitrariedade seletiva.” Ao referir a obra de Nilo Batista, acena para a ideia de cidadania negativa, conferida aos setores vulneráveis da população, “ontem escravos e hoje massas marginalizadas urbanas, [que] só conhecem o avesso da cidadania através dos sucessivos espancamentos, massacres, chacinas e da opressão cotidiana dos organismos do sistema penal,” citando, ainda, Gizlene Neder, ao afirmar que a “eficácia das instituições de controle social está fundada na capacidade de intimidação que são capazes de exercer sobre estas massas vulneráveis.”[5] Basta lembrar, no caso presente, a origem social do acusado e de sua luta dissidente: os entregadores de aplicativos e os “breques dos apps”.
E por falar em “breques”, desobedecer, como afirma Georges Didi-Huberman, é tão antigo e tão urgente quanto desejar.[6] Freud, por sua vez, foi um dos primeiros a enunciar a indestrutibilidade do desejo. David Throreau foi além, ao fundar, nas democracias modernas, a ideia de desobediência civil. Walter Benjamin, embora tenha deixado em aberto muitas perguntas sobre os limites da violência, também registrou, em sua obra, a importância desse debate, alertando-nos de que “a violência como gesto [ou, como potência, e não como poder] ultrapassa todos os esquemas prévios de uma doutrina filosófica geral ou abstrata.”
Assim, desejo de movimento, dissidência e protesto, de um lado, e violência estatal, de outro lado, é o que se extrai do contexto atual de pouca liberdade e de muita opressão, cenário próximo do distópico. O Estado, que apresenta uma face representativa de pequena parcela da sociedade com traços paranoides, que, no fundo, tem medo do significado de um protesto, em que a imagem de uma figura associada à violência e aos crimes contra a humanidade é questionada publicamente. Uma parcela que quer impedir o atuar livre e legítimo do direito ao movimento e à mudança. Antecipar-se-ía, ao agir assim, no campo penal, à pena sem processo?
Nesse cenário, a Criminologia, especialmente no contexto latino-americano, deve-se propor a refletir a partir da margem, buscando sempre a preservação das vidas humanas e, “principalmente, prevenir massacres”, como defende Eugenio Zaffaroni em sua proposta de uma criminologia cautelar que seja, antes de tudo, atuante “em prol da aplicação científica de conhecimentos em uma ação constante, dirigida a evitar cadáveres antecipados e massacres” e que se ocupa “da redução dos níveis de violência social”[7]. Espera-se, portanto, do Poder Judiciário contenção e, dos especialistas, o papel de desnudar o ideal massacrador, presente nas estruturas dos Poderes, bem como em seu mundo paranoide, aparentemente neutro, que prega a antecipação de penas e o açodamento da atuação de um direito penal pretensamente fundado na ideia de risco.
Esses gestos de sublevação movimentam a sociedade e produzem um importante debate sobre um presente repleto de passado, não merecendo o tratamento conferido pelo Poder Judiciário.
Gonçalo Xavier
Coordenador-Adjunto do CRIMINOLOGIA BRASIL/APD
Alfredo Attié
Diretor do CRIMINOLOGIA BRASIL/APD
Titular da Cadeira San Tiago Dantas
Academia Paulista de Direito
Notas:
[1] João Guimarães Rosa.
[2] Notícia em Folha/UOL, clique para acessar.
[3] Notícia em Folha/UOL, clique para acessar
[4] As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1986.
[5] Difíceis Ganhos Fáceis. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
[6] Levantes. Sesc, São Paulo, 2017, pag. 358.
[7] A palavra dos mortos. São Paulo: Saraiva, 2012.